Para se sentir cidadão, o homem contemporâneo precisa de dispor de infra-estruturas sociais que lhe garantam a dignidade, devendo, ao mesmo tempo, assegurar o equilíbrio no sistema ecológico. Estimado leitor, compreenda, a seguir, os sintomas que tornam a capital moçambicana, Maputo, numa cidade criminosa.
Em 2007, segundo as estatísticas oficiais, a cidade de Maputo possuía 1.094.315 de habitantes, sob a direcção do presidente do Conselho Municipal Eneas Comiche. De forma clara e pública, o sociólogo moçambicano, Carlos Serra, fez a seguinte denúncia: “O aquecimento global de que tanto se fala fez aumentar, na última década, alguns centímetros ao nível do mar”. E argumentou: “Há anos, antes de existir a barragem dos Pequenos Libombos, todas as semanas, a draga da capitania dragava o canal do porto de Maputo.
A barragem terá sido construída sem uma eventual análise do impacto no ambiente. Desde a sua edificação que não há dragagem, logo não há reposição das areias de aluvião do rio na baía.
Devido às suas correntes, o mar retira areias, quer da baía quer das margens que são a marginal”. Embora a sua carta-denúncia, emitida ao governante e por extensão ao Governo, tenha sido profundamente fundamentada, a sua mensagem – como, provavelmente, acontecerá com esta matéria – não foi acatada.
Mais do que expressão de algum tipo de nostalgia ou de saudosismo, constatar que, antigamente, “atrás da marginal existia um pântano de mangal costeiro onde, na maré cheia, o mar se espraiava” – e chamar a atenção para o problema que, devido à sua degradação, surgiria –, revela uma consciência ambientalista de que a maior parte dos moçambicanos ainda carece.
Entretanto, em contra-senso, ignorando-se que “o peso dos edifícios impede o lençol freático de trabalhar segundo as suas próprias regras, esse mangal/pântano foi ocupado, roubado ao mar” para dar lugar à criação de prédios. Porque “a duna costeira – formada por um ecossistema equilibrado de areias, plantas que a suportavam e árvores – rapidamente foi destruída pela intervenção humana”, naturalmente, como consequência, “deixa de haver ponto de quebra da força do mar”, gerando-se uma “incapacidade de infiltração da água na duna costeira”.
Primeira atrocidade ecológica
Embora o crime ambiental seja um conceito lato e, por isso, de difícil definição, muitas vezes, torna-se complicado ignorar uma sucessão de atrocidades ecológicas que (desde o tempo colonial até aos dias actuais) continuam a ocorrer no centro de Maputo, quase sempre, contra planos aprovados pelo Governo.
O primeiro acto que tornou Maputo nesta cidade criminosa, como testemunha o célebre arquitecto moçambicano, José Forjaz, sucedeu ao longo da década de 1960, “quando naquela região que pertencia à Administração de Marracuene, se permitiu a destruição do mangal com a construção do bairro do Triunfo.
Na altura, a Administração de Lourenço Marques, o antigo topónimo desta urbe, tinha negado autorizar a realização de construções naquele espaço”. Esse foi o primeiro erro ecológico (diga-se, grave), porque se violou o princípio da proteção das terras baixas e dos mangais.
No entanto, os homens não se redimiram da sua falha. Os seus desvios agravaram-se com o curso do tempo de tal sorte que, diz o arquitecto, “se gerou uma posição tacitamente aceite por todas as pessoas, sobretudo pelas autoridades administrativas, como natural”.
É que da forma como o assunto está a ser tratado, edificando-se empreendimentos económicos na frente marítima – muitas vezes sem se acautelar dos seus impactos ambientais – compreende-se que está a ser autorizada a destruição progressiva e intensiva do mangal. Embora haja, na referida região, um aglomerado de residências que historicamente se chamam Triunfo, tal bairro não existe.
“Esse nome tem a ver com o triunfo sobre a natureza. Pensa-se que nós triunfamos porque conseguimos colocar um assentamento humano numa área completamente inóspita, que é o mangal que ali há”, esclarece o jurista-ambientalista moçambicano, Carlos Serra, reiterando que o bairro chama-se Costa do Sol. Portanto, aquelas casas foram erguidas à custa de assentamentos de areia e da primeira perda da cobertura do mangal que exercia um papel muito importante no equilíbrio ecológico. Um crime ambiental.
A própria construção da Avenida Marginal demasiado próxima à linha praia-mar foi um erro, porque a circulação constante na praia produziu uma degradação imediata da vegetação que ali se tinha. “A perda da vegetação nativa – que ocorre desde o período colonial – conduziu à degradação das dunas, o que acelerou a erosão costeira, porque a vegetação autóctone exclui qualquer tipo de árvores que se possam recolocar”. Já naquela época, para corrigir os erros cometidos, plantou-se ao longo da marginal um conjunto de eucaliptos e casuarinas. O problema é que – de acordo com estudos especializados – essas espécies aceleram a erosão costeira.
Desta experiência, a praia da Costa do Sol, cujas terras estão completamente erodidas, é uma prova. Presentemente, decorre em Maputo o projecto da recuperação da orla marítima, uma iniciativa espectacular, que seria muito melhor se, desde logo, se reconstituíssem as dunas e, com elas, se introduzisse a vegetação nativa para retê-las.
O problema é que, com a edificação do Mercado do Peixe, parece que se vai cometer um novo erro. O ambientalista explica que “ainda que digam que o fizeram, nenhum estudo de impacto ambiental poderia concluir que existe viabilidade para se implantar um mercado na última zona dunar de que dispomos em Maputo”.
Maputo está doente
Embora se dissemine que Maputo é uma cidade próspera, bela, limpa, segura e solidária – discurso constructo que faz com que os (demais) moçambicanos visualizem nesta uma espécie de Meca para a qual devem peregrinar todos os seus problemas – a verdade é que a nossa urbe-mãe padece de inúmeros problemas.
No ano 2007, tínhamos o já referido índice demográfico e um parque automóvel constituído por 240 mil carros. Segundo o Instituto Nacional de Transportes Terrestres, esse número duplicou. No final de 2013, em Maputo havia 408,618 viaturas que – como aconteceu em 2007 – nunca conseguem satisfazer as necessidades de transporte dos munícipes. Se por um lado, a densidade populacional tenha evoluído, por outro, a capacidade de resposta às suas demandas sociais regrediu.
No mesmo intervalo de tempo, também há um 5 de Fevereiro de 2008 em que populares se manifestaram contra a crise de transportes, na verdade, uma espécie de pretexto para se contestar o custo de vida que, há bastante tempo, se fazia sentir.
Pelos mesmos motivos, porém, desta vez, com impactos catastróficos – houve roubos, sabotagem e destruição de infra-estruturas sociais, incluindo o ferimento e mortes de civis vítimas de balas perdidas – fenómeno similar replicou-se entre 1 e 2 de Setembro de 2010. Em 2011, a Empresa dos Transportes Públicos de Maputo anunciou que, para fazer face ao problema dos transportes, precisava de adquirir mais 180 autocarros para adicioná-los à frota de 198 de que dispunha.
Por sua vez, a Federação Moçambicana dos Transportes Rodoviários necessitava de 1.500 autocarros com uma capacidade superior a 30 lugares para estancar o drama. Falou-se e escreveu-se bastante acerca desta realidade, mas nada foi resolvido. Muito recentemente, em 2013, mais uma crise – resultante do custo de vida e de alguma injustiça social – rebentou no seio de quem tem a missão de salvaguardar a vida humana.
Durante cerca de um mês, os médicos protagonizaram uma greve nacional cujo epicentro se verificou em Maputo. Eles reivindicavam a melhoria da situação salarial e das condições laborais, entre outros problemas. Acabaram por abortar a sua contestação.
Em resultado desta situação, neste segundo decénio do século XXI – em jeito de desafogo, afirma certo peão – “continuamos a ser uma cidade capital completamente desprovida de um sistema de transportes. Em consequência disso, a grande maioria dos cidadãos maputenses circula em condições desumanas”.
Todos estes tópicos de que, de forma esparsa, nos lembramos aqui, provavelmente, não são crimes ambientais no sentido jurídico da palavra, mas configuram a dimensão mais dura da realidade porque os seus efeitos se fazem sentir no homem, componente essencial do/no sistema ecológico.
Situação revoltante
No bairro suburbano de Hulene, onde se encontra a maior urna da imundície urbana, há moçambicanos que coabitam com o lixo em montão. Mas o problema da sujidade não é exclusivo das zonas suburbanas.
Como atesta uma pesquisa recente, realizada pela Associação Internacional de Voluntários Leigos, diariamente, a cidade de Maputo produz 1.100 toneladas de resíduos sólidos, 900 das quais são depositadas na lixeira de Hulene. Três mil toneladas de resíduos, produzidos anualmente, são compostas por material plástico. A má gestão desse tipo de lixo é um atentado grosseiro ao sistema ecológico, incluindo a vida humana.
O arquitecto José Forjaz é mais incisivo na sua análise à situação. Diz ele que “99,9 porcento dos nossos concidadãos não têm a noção clara do que é um território ecologicamente sustentável. Neste número incluo as autoridades administrativas, em geral”.
Por sua vez, Carlos Serra, o jurista-ambientalista, corrobora com essa sentença e argumenta que a inconsciência ambiental é generalizada e tem a ver com a dominante insensibilidade da nossa população em assuntos ecológicos.
Estas situações reforçam a crença de que, muitas vezes, estes crimes não se devem a algum tipo de instinto criminoso. Eles têm a ver com a ignorância existente em relação à cultura ecologista. É evidente que uma urbe que possuísse uma população mais esclarecida – e para isso era necessário que todo o povo moçambicano tivesse outro nível cultural que ainda não atingimos – haveria uma reacção popular mais forte. Talvez, poder-se-ia lutar contra estes desvios urbanísticos.
Por exemplo, a recente autorização para a construção de um banco no Parque dos Continuadores e a destruição parcial de um jardim, na Avenida 24 de Julho, para dar lugar à implantação de um edifício, não só atestam uma série de atentados contra os espaços verdes de Maputo, como também revelam a profunda ignorância de quem está na posição de tomada de decisão em relação à relevância de se manter o equilíbrio ecológico.
“Julgam que todos estes pequenos favores que fazem aos seus correligionários políticos não geram impactos ambientais. A verdade é que produzem consequências ecológicas muito graves. As gerações futuras vão pagar um preço muito alto pelo que está a acontecer agora”, alerta Forjaz.
Por isso, o que nós precisamos – com alguma urgência a nível do município – é de uma forte abordagem ambiental para a cidade. Ou seja, é importante que a componente ecológica seja considerada uma prioridade no desenvolvimento urbano. “O problema é que os políticos não entendem que quem defende o ambiente, automaticamente, oferece uma vida melhor à humanidade”.
Todos os dias, em Maputo, indivíduos de todas as idades disputam um assento nos “my love”, como se chamam as carrinhas de caixa aberta em que, neste Moçambique contemporâneo, agindo contra a própria vontade, forçados pela realidade, eles atentam contra a própria integridade física a fim de se deslocarem de e para qualquer ponto da cidade.
A mendicidade e a abundância de meninos de rua, além de homens e mulheres que – dado o custo de vida com que se debatem – se prostituem para garantirem a sua própria sobrevivência, são alguns fenómenos revoltantes que chocam com o nosso olhar socialmente indiferente. Toda esta loucura social, e mais alguma coisa, vista a olho nu, manifesta-se perante uma gritante incapacidade de resposta para controlar o trauma diário que causa à maioria dos (seus) habitantes em condição miserável.
Maputo não está a conseguir fazer jus ao discurso constructo com o qual as nossas administrações a vendem aos turistas, afinal – na verdade, como comenta o jornalista Alexandre Chaúque – a cidade era bela quando “não havia tantos carros a quererem passar todos de uma só vez. (…) Outra vergonha são os ‘chapas’ que circulam… sem obedecerem à conduta estabelecida pelo código de estrada”. E desabafa: “Fico com a impressão de que os ‘chapeiros’ mandam mais que o Presidente da República”. “Como compreender, por exemplo, que um semáforo activado não cumpra a sua função porque o cidadão não respeita o sinal, ou o desmantelamento do comércio na via pública sob o pretexto de saneamento, se tal comércio informal proporciona boa percentagem das receitas fiscais urbanas?”
Esta é a questão de Rafael Bernardo Mouzinho que, em Maputo, vê uma espécie de “praga de pessoas como de viaturas”. Diante de tudo isto, o antigo Primeiro-Ministro moçambicano, Aires Ali, rebela-se e defende que a cidade de Maputo “não se quer fora do verde que vivifica, não se quer longe da geografia do seu nascimento. Ela quer ser limpa, elegante, bela e cosmopolita”.
Paradoxos e incertezas
Conforme o discurso oficial, Maputo está a observar um processo de modernização. Os constantes edifícios que se erguem, diz-se, atestam essa transformação. Mas enquanto proliferam as iniciativas de criação de habitações – como, por exemplo, os projectos Intaka, Casa Jovem e a Vila Olímpica –, a capacidade socioeconómica para os jovens adquiri-los contrai-se. Por essa razão, a maior parte de nós os jovens tem sérias dificuldades para obter uma habitação digna.
O consultor Inácio Noa enfatiza que para a camada juvenil o problema de habitação é sentido duma forma clara e é explicado pela dificuldade no acesso à terra e pela falta de condições financeiras para construir moradias.
O crescimento demográfico (estima-se que em 2025 seremos 33.2 milhões de habitantes, 34.9 porcento dos quais viverão nas cidades) é também um assunto ecológico porque, além de implicar um aumento da pressão quanto ao emprego, à segurança alimentar e ao crescimento urbano acelerado, contribui para a degradação do ambiente e no crescimento do sector informal.
De todos os modos, é animador saber que o aumento da população urbana, como explica o economista moçambicano Prakash Ratilal, acrescenta novos desafios e oportunidades na criação de emprego, de transportes públicos, habitação, saneamento, salubridade, na produção e consumo de alimentos e na segurança dos cidadãos.
Outro factor tranquilizador ainda é que, se estas oportunidades se concretizarem, haverá impactos directos no crescimento económico. No entanto, em sentido contrário, a situação será desoladora: “A taxa aliada de crescimento da população poderá assim tornar-se uma séria ameaça de estabilidade social, económica e também política”.
Por essa razão, se construir edifícios novos é modernizar o país, esse pressuposto deve perpassar esta simples especulação desenfreada do solo urbano, para benefício de entidades privadas e administrativas, cujo objectivo primário, único e último é render muito dinheiro em pouco tempo, em prejuízo da ecologia.
A nossa experiência citadina mostra-nos que a disfunção do sistema de esgotos e saneamento do meio, os passeios diariamente maltratados e nunca repostos em ordem, atentando contra a circulação de qualquer mortal, a falta de um sistema de transportes públicos adequados, a invasão das viaturas – em resultado da insuficiência de parques de estacionamento – ao espaço do peão, a não disponibilização da energia eléctrica em quantidade e qualidade suficientes, a superprodução e a má gestão do lixo poluindo o ar, entre outras ocorrências com que todos nós nos confrontamos, nesta Maputo contemporânea, são factos que nos recusam o estatuto de capital de um país e de uma cidade moderna.
Precisamos de compreender que a modernidade tem a ver com a habilidade de se garantir a disponibilização e o funcionamento de todas as condições infra-estruturais suficientes para se manter a dignidade humana. A densificação da nossa cidade deve ser acompanhada de uma capacidade proporcional de infra-estruturas sociais.
Inundamos a praia com lixo
No porto com o mesmo topónimo da cidade, nas proximidades da Fortaleza de Maputo, na Avenida 10 de Novembro, o impacto económico do mar é imediatamente exibido pela feira de mariscos ali estabelecida. Vendem-se produtos diversificados como, por exemplo, peixe na sua variada forma e tipo, camarão, lulas, caranguejos e ameijoas.Moçambicanos e moçambicanas de idades diferentes protagonizam esta actividade comercial a partir da qual não só se garante a subsistência diária das famílias, como também a estabilidade económica e a formação, em termos de ensino, dos seus filhos.
Um pouco depois do Shopping de Maputo, o maior centro comercial do país, sobretudo nas noites de Verão, ocorre uma feira gastronómica complementada com diversas bebidas alcoólicas.
Por se encontrar na referida avenida, os jovens, os seus principais utentes, chamam-na “Na 10”. Ali, mais uma vez, homens e mulheres de negócio instalam pequenos stands comerciais (móveis e imóveis) e preparam refeições para comerciar.
A Avenida 10 de Novembro é um verdadeiro espaço de diversão e lazer nocturno a céu aberto. Parqueiam-se viaturas, toca-se música a um volume ensurdecedor, diverte-se, durante toda a noite, criando-se uma espécie de submundo na cidade de todos nós em que quase tudo – incluindo actos que atentam contra o pudor e a postura municipal como, por exemplo, cenas de sexo – acontece ao relento.
Alcoolizados, alguns quase inconscientes, os utentes daquela zona de diversão desferem duros golpes e ofensas ambientais no mar, transformando-o numa espécie de urna em que depositam garrafas de cerveja e preservativos recém-utilizados. Vale a pena recordar-se de que, em 2013, o Governo moçambicano criou um regulamento que disciplina os moçambicanos em relação à absorção do álcool.
No entanto, apesar dos 2.5 milhões de pessoas que morrem por ano em sinistros originados por excesso do consumo de álcool, a constatar pela realidade, a boa intenção da regra soou mal aos ouvidos dos visados. Entretanto, se, como ilustram as fotografias, o lixo que se deposita na praia da Katembe – para onde vamos, a partir do centro da cidade – é naturalmente expelido na costa, pouco se pode dizer dos impactos que causa na saúde do mar e dos seres aquáticos.
O jurista-ambientalista Carlos Serra, a par dos seus colegas, também teve uma experiência lamentável na Avenida 10 de Novembro. Recorda-se ele de que, “muito recentemente, a fazer filmagens na cidade, encontrámos pessoas – as mesmas que cozinham e vendem refeições – que haviam pernoitado ali. Algumas estavam deitadas, junto das suas panelas e comidas, num lugar com um odor nauseabundo de vómitos, urina e lixo”.
Nas primeiras horas do dia, antes de os zeladores da limpeza fazerem a recolha da imundície resultante da diversão, sempre voluptuosa da noite anterior, é possível ver-se na estrada um monte de lixo constituído por garrafas partidas, restos de comida, material plástico como, por exemplo, copos e pratos descartáveis ao longo do troço onde se encontra o edifício em que, semanalmente, o Governo se reúne em Conselho de Ministros. Aqui não há respeito pelas autoridades.
O mar está a ‘comer’ a terra…
Vista daqui, praia da Katembe, a cidade de Maputo está a densificar-se com um monte de pedra e betão – em forma de edifícios. É como se na capital moçambicana, onde a quantidade de viaturas (quase) supera a de pessoas, não existisse nenhuma forma de vida. Mas aqui, onde nos encontramos, fica-se com a impressão de que reagindo aos crimes ambientais, o mar está a ‘comer’ a terra, ao mesmo tempo que, em sentido contrário, a terra, através das residências que se edificam na frente marítima estivesse a aproximar-se mais do mar.
O fenómeno é intrigante. Conforme afirmámos nos primeiros parágrafos desta matéria, por várias razões – mas definitivamente, por não existir uma tipificação penal, o que implicaria uma sanção e uma pena para o infractor – sob o ponto de vista jurídico, em Moçambique não existe nenhum tipo de crime ambiental.
E aqui, vale a pena, a explicação do jurista Carlos Serra: “Embora tenhamos todas estas infracções a acontecerem, juridicamente, neste momento não podemos falar de crimes ambientais porque um desvio só se torna criminoso quando uma lei penal o tipifica como tal, o que se considera uma ofensa grave em termos jurídicos, e estabelece-se uma pena”.
Em 2006, o Conselho de Ministros aprovou um regulamento – referente à proteção do ambiente marinho e costeiro – que, entre muitos aspectos, “os torna dignos de proteção especial, porque prevê uma proibição de se poluírem as praias, definindo, nesse sentido, uma infração e uma sanção”.
A postura municipal de Maputo antevê que, quando infringida, o ofensor incorre numa sanção de multa de 100 meticais. No entanto, se essa mesma infração for cometida na praia, a sanção agrava-se para 2 mil meticais.
O drama é que nada funciona, porque não existe nenhuma fiscalização. Além do mais, de uma forma geral, o nosso sistema de educação – formal e informal – nunca considerou as questões ambientais uma prioridade. “A educação ambiental está a ser considerada um apêndice, um complemento, e não algo prioritário que devia fazer parte do plano curricular”, lamenta Carlos Serra.
Relativamente à questão de a distância entre o mar e a terra-firme estar a tornar-se ínfima – o que significa que a praia pode estar a desaparecer – o arquitecto moçambicano, José Forjaz, atribui a responsabilidade às dinâmicas marinhas, um fenómeno global cujas causas, para si, ainda são desconhecidas.
“Não se tem a noção exacta do que está a acontecer. Trata-se de fenómenos imprevisíveis, mesmo para os mais altos níveis de conhecimento científico, porque são universais. Não são inerentes exclusivamente à costa moçambicana”. E não lhe faltam argumentos: “Há muitos locais no mundo onde a praia está a ser ‘comida’ e outros onde ela está a ser aumentada. Quando pequeno, eu costumava ir tomar banho na praia da Figueira da Foz, em Portugal, que era uma prainha de 50 metros. Agora possui 500. Mas há outra praia, no sul de Lisboa, que está a desaparecer. Portanto, estamos diante de fenómenos muito complexos que não podem ser atribuídos a uma má gestão urbana das zonas ribeirinhas”.
Carlos Serra generaliza a situação. Para si, em toda a faixa moçambicana está-se a verificar uma redução significativa da componente territorial, por causa da deslocação da linha praia-mar para o continente. Dada a grande familiaridade com que nos relacionamos como o local, em Maputo, a situação é assustadora.
“Tenho memórias desses fenómenos ao longo dos últimos 40 anos. Por exemplo, na Ilha da Xefina fala-se de um intervalo dentre 800 metros no mínimo até um quilómetro que perdemos na contracosta”. Em tudo isto, conforme José Forjaz, vezes há em que intervenções humanas agravam a situação, enquanto outras melhoram-na durante algum tempo, “porque contra o mar não há forças artificiais capazes de salvaguardar um status quo permanente”.
De uma ou de outra forma, em relação à Katembe, Carlos Serra assegura que “é possível, a não ser que coloquemos areia, ficarmos sem a praia. Portanto, estamos diante de um problema que só não vê quem não quer”.
Muito Lixo e perigo à espreita
Entre os restos de barcos que, há anos, se encontram nas águas da Katembe encardindo-as, o lixo que se deita a partir da Avenida 10 de Novembro e que é, naturalmente, expelido para a praia e os resíduos que cada cidadão, indelicadamente, deposita no mar, ficamos sem saber o que é menos grave.
A verdade é que a praia da Katembe está a ficar imunda. Por outro lado, os resíduos que se produzem a partir da Avenida 10 de Novembro são deslocados para um lugar inimaginável, a costa do Língamo. Naquele mangal existem toneladas de lixo plástico que chegam lá seguindo o efeito das marés e infiltram-se acumulando-se com tempo.
Neste momento é difícil definir, entre todos estes, o principal perigo grande e real, porque a praia da Costa do Sol, por exemplo, se debate com o problema da inquinação desde o tempo colonial. O progressivo inquinamento, por falta de tratamento dos esgotos e por não se restringir o descarregamento de afluentes nocivos industriais na baía, cria uma situação sanitariamente grave, sobretudo, quando as praias são muito usadas, como acontece no Verão.
José Forjaz classifica a inquinação marinha como um crime ambiental muito grave e preocupante, porque gera um “perigo iminente e profundo para centenas de milhares de banhistas”. Nesse sentido, refuta o facto de não haver nenhum programa – da parte do Governo – para consciencializar e prevenir as pessoas, pese embora se conheça a situação.
Enfim, até o músico e escritor moçambicano, Hortêncio Langa – que na década de 1990 criou a mais célebre ode à cidade de Maputo – tem imensas dificuldades em reconhecer a beleza da urbe. “Eu não visito nenhuma praia em Maputo, porque todas são superlotadas de banhistas e têm o problema do lixo e das águas sujas. As pessoas compram comidas e bebidas e – depois de consumi-las – atiram a sujidade ao mar. Não há nenhum trabalho de educação cívica. Por isso, a situação em que nos encontramos é terrível”.
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