O moçambicano já sabe que pode dizer que não. Moçambique tem problemas, mas tem também muito a seu favor, até os recursos, energéticos e agrícolas, que não são explorados. E tem elite, classe média alta, classe média emergente e muitos jovens com vontade de fazer diferente. Um dia vão todos sair à rua a gritar, ou então vão chegar ao poder.
Anabela Adrianopoulos e Christine Ramela moram a poucos quarteirões uma da outra, no eixo da Avenida 24 de Julho. Anabela e Christine conhecem Amade Camal, que vive na mesma zona de Maputo. A casa de Emanuel Gomes Silva também não é longe. Só Azagaia, que todos eles conhecem, não vive por aqui, mas na Matola, outra cidade, satélite e industrial.
A classe média de Maputo, uma "classe emergente", como diz Christine Ramela, conhece-se. Como a elite conhece a elite e o povo não se conhece porque o povo é vasto, num país de 20 milhões.
Anabela é uma figura pública, a Oprah moçambicana, dizem-nos. Camal é um empresário bem-sucedido e também é uma figura pública, já foi deputado por Nampula, no Norte, aparece na televisão, publica artigos nos jornais.
Christine trabalha na agência de publicidade DDB, é directora do Departamento de Atendimento ao Cliente, chefia uma equipa de sete mulheres numa agência que emprega 70 pessoas.
Azagaia é o rapper mais conhecido e relevante do país: em 2008, quando lançou a música Povo no Poder, foi acusado de ser "perigoso para a segurança do Estado" e "chamado à Procuradoria-Geral da República".
Camal emprega 700 pessoas, entre o negócio dos automóveis e outros. Emanuel gere um supermercado onde trabalham 50 pessoas, no bairro da Coop. É uma das lojas Woolworths, um supermercado de luxo, "para classe média e alta", onde uma embalagem com fatias de salame custa 229 meticais (cinco euros) e uma garrafa de vinho tinto Duas Quintas custa 713 (15 euros).
Durante os protestos da semana passada contra o aumento dos preços, quando 13 pessoas foram mortas pela polícia e mais de 500 ficaram feridas, Christine ficou em casa. Azagaia também, em frente à televisão, e a ver que quem pilhava trazia um saco de arroz. Estavam a pilhar para comer. Camal ainda foi dar uma volta pela marginal, de carro, e viu mulheres a formarem barreiras e a cobrar aos carros que queriam passar. Mais sensatas, ameaçavam mas não lançavam as pedras que tinham nas mãos.
Emanuel ficou em casa no primeiro dia dos protestos, a 1 de setembro, mas no dia seguinte já teve de ir trabalhar, ordens do patrão. Como não havia mais nada aberto, venderam tudo e fecharam mais cedo, para Emanuel conseguir ir da Coop, onde trabalha, ao centro, onde vive. Anabela também esteve a ver televisão e a escrever no Facebook, onde foi pondo poemas de Brecht. "Do rio que tudo arrasta se diz que é violento / Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem." Lembrou-se do poema das margens que comprimem - era o que ela "estava a sentir".
Todos se sentiram solidários com quem estava na rua, a queimar pneus, mesmo se nenhum deles se imagina a queimar um só pneu.
Que olhem por nós
"Se tivesse circulado uma mensagem a dizer "vamos todos marchar na [Avenida] Eduardo Mondlane", até eu ia. Porque estou contra. Mesmo a classe média, mesmo quem vive com dois salários, se vê aflita. Se os sindicatos aqui fossem como na África do Sul, também sairia toda a gente à rua. Nem que fosse para uma passeata pacífica. O moçambicano já aprendeu que se pode expressar. Podes ter retaliações, mas podes ousar. It"s ok not to be happy e protestar. Somos pacíficos, queremos contribuir para o desenvolvimento, mas também queremos que olhem por nós", diz Christine, à conversa na esplanada da agência, mesmo em frente ao Instituto Franco-Moçambicano, um dos pólos culturais da cidade, que já tem vários, como a Semana da Moda ou o Docanema, um festival de documentário que começou na sexta-feira. São quase 19h30, Christine nunca sai do trabalho antes das 20h.
Para Christine, o aumento do custo de vida significa cortar em jantares e almoços e ponderar despedir uma das duas empregadas: "Em algum momento vou ter de abdicar de uma delas. Mas não quero, são as duas mães solteiras. Então, em vez de as aumentar, posso fazer uma cesta básica para elas, pelo menos a farinha, o óleo..." Christine tem 29 anos e duas filhas, uma a viver com ela, outra em Las Palmas, capital das Canárias, com o pai, onde Christine já viveu.Para Anabela, que tem três filhas, mas só uma ainda em casa, adolescente, o aumento do custo de vida significa que em vez de pagar doze mil meticais (250 euros) pelas compras do supermercado paga 24 mil (500 euros). "Eu fui fazer compras, o rancho do mês, e há dois meses, antes de ir de férias, a minha conta de supermercado com as mesmas coisas foi menos de metade. Doze paus, doze mil, onze mil e pouco, era a minha última conta. No fim de Agosto fui às compras, 24 paus de supermercado."
Emanuel não sabe se iria a uma manifestação, mas pensaria nisso. E sabe que "há um ano o euro estava a 37 e agora ali naquela loja de câmbio está a 48", diz a apontar para o outro lado da rua, da esplanada da churrascaria Piri-Piri para o Polana Shopping Center, que tem uma loja da Cota Câmbio. Emanuel recebe em meticais e paga a renda em dólares. Por isso, sabe bem como aumentou o custo de vida. E ele não ganha o que ganham os seus empregados. "Eles estão satisfeitos com os anúncios do Governo. Acham que valeu a pena, que isto agora vai melhorar, pelo menos um bocadinho."
Novos ricos e BMW X5
Camal conversou connosco no seu gabinete do stand da Quality Cars, do grupo Sir, na Avenida Karl Marx, onde hoje se vendem carros de topo de gama a novos ricos que podem pagar 120 mil dólares por um Range Rover ou por um BMW X5 - quando deveriam pagar bem mais, mas ficam, por uma razão ou por outra, isentos de impostos, porque são empresários ou dirigentes.
É Camal que diz que o 5 de Fevereiro - como ficaram conhecidos os protestos de 2008, contra o aumento dos "chapas", os mini-autocarros que transportam toda a gente que vive nos subúrbios e trabalha na cidade de cimento- começou com o povo, mas que "o 1 de Setembro já foi a classe média baixa com o povo e na próxima já vai ser a classe média e a classe média alta com o resto". E se "as medidas anunciadas pelo Governo", que têm a ver com congelamento de aumentos mas também com cortes nas despesas públicas e nos gastos dos dirigentes, forem puro populismo, "o ciclo vai reduzir" e os próximos protestos não demorarão dois anos. "Quando se junta dois grupos distintos mas a sofrerem o mesmo problema, cria-se a situação ideal para os tumultos."
Camal vive bem e pensa que em Moçambique ainda se vive bem. "Estou convencido de que o nosso empobrecimento não é tão grande como os analistas dão a entender. Mas podíamos estar numa situação muito melhor se o Governo aproveitasse melhor o que tem", afirma.
"A maior parte da capacidade financeira ou económica dos moçambicanos vem da terra, ou porque se criam animais ou porque se produz, pouco que seja. Normalmente não se paga renda, mesmo nos subúrbios, porque se é dono da palhota. Um terreno de 200 metros quadrados à volta da cidade custa 10 mil meticais [cerca de 200 euros]. Em parte nenhuma do mundo custa [só] isto. O que faz a sociedade moçambicana passar da passividade ao protesto são as duas ou três coisas para que, de facto, se usa dinheiro. O membro da família que trabalha usa o salário para pagar o transporte, para se deslocar, para o pão e para o açúcar. É para isso que vai o salário da maioria. Quando estes itens sobem, eles sentem imediatamente o sufoco. Para o resto, não dependem do mercado."
O povo não tem água, não tem electricidade. O "povo usa petróleo". Quem "compra água e luz já é uma classe média" e esse "foi o rastilho". O que aumentou foi o pão, a água, a luz, o arroz e o açúcar - o combustível para os carros e para os transportes já tinha aumentado e o povo tinha aguentado.Angola não é Moçambique
Azagaia já deu concertos em Portugal, na Dinamarca, em Angola. Mas não vive da música, vive de ser redactor publicitário, mesmo desde que em 2007 lançou a música que mudou a sua vida, As Mentiras da Verdade. Tem 26 anos e está a estudar, no segundo ano de Ciências da Comunicação. É casado com uma professora e tem uma filha de dois anos.
"Não vivemos tão bem, mas também não vivemos mal. Há muitas oportunidades que me são negadas por causa da minha postura. É uma vida mediana. Decididamente, podia ser melhor. Para ser melhor, eu teria de abdicar de muita coisa. Como eu não estou disposto, fica por aí. Essa é uma grande pressão. A resposta do sistema é muito severa. Tem muitos que não são promovidos, não conseguem o emprego. Tem muita gente que só não adere a estes movimentos por medo de perder o pão. É preciso ter uma certa coragem para enfrentar algumas privações em nome dos princípios. Alguns momentos são de frustração. Mas sinto-me bem", diz Azagaia, que marcou encontro na esplanada do Acácia, um restaurante no Jardim dos Professores, em frente ao Liceu Josina Machel (antigo Salazar), com vista para a baía.
É com a sua camisola de malha e riscas claras, calças bege e ténis Converse pretos que conta a sua aventura angolana em Dezembro, quando 6000 pessoas gritaram Zedu, a abreviatura de José Eduardo dos Santos, no meio das suas letras de crítica social. "A música Combatentes da Fortuna tem um coro que só faço ao vivo, onde pergunto "Quem vendeu a minha pátria?" E no meio, eles respondiam "Zedu, Zedu". A seguir cantei A Marcha, que diz "Ladrões fora, corruptos fora, assassinos fora", enquanto eles diziam "Zedu fora, Zedu fora, Zedu fora"."
"Deixaram-nos apreensivos. Angola não é Moçambique. Pensei que podia acontecer alguma coisa, a guarda da presidência é do que se tem medo lá. Disseram-me que nunca tinham visto nada assim, tanta gente a gritar contra o Presidente", conta Azagaia.
Nas últimas eleições legislativas de 2009, "com tudo o que se pode dizer que houve de fraude, a verdade é que a maioria foi lá e votou Frelimo", o partido que está no poder desde a independência, comenta Anabela. "Como já tinha acontecido com o MPLA em Angola."
"Olha, eu acho que há dois problemas: há muita falta de educação cívica e de educação política. Temos uma dificuldade imensa em saber, o moçambicano tem esse problema, não tem uma educação para a cidadania, ainda não sabe muito bem o que é isso de ser cidadão, para fazer valer direitos mas também para cumprir com o que são obrigações e deveres", diz Anabela, enquanto bebe um capuccino ao pé de casa, na pastelaria Cristal. "Passámos de um Estado de monopartidarismo para este pluripartidarismo. Falta educação política. Não vejo honestamente que haja nos próximos tempos o surgimento da tal terceira força de que se fala tanto."
Anabela, 23 anos na televisão pública e agora na privada Record, tem preocupações económicas, políticas e sociais. "Do ponto de vista económico, a situação está insustentável. Há muito desemprego e como consequência há muita marginalidade. Há muita delinquência. Há uma doença que é social, de facto, que é a questão da droga. Mas ninguém fala disso porque só se fala da sida", enumera Anabela.
Emanuel nota tantas diferenças desde que voltou. Nasceu em Lourenço Marques (actual Maputo) há 56 anos e foi embora aos 20 anos, para Portugal. "Voltei em Fevereiro de 1998, para ficar. Voltei para a minha terra." Chegou e 15 dias depois já tinha emprego, nem teve tempo de "matar saudades". Há dez anos que trabalha no mesmo supermercado da Coop, no mesmo sítio, a 100 metros da Praça da OMM, onde os protestos da semana passada foram duros e feios. "Há 12 anos quase não havia carros. Não havia este trânsito. Não havia nada disto. O movimento nas ruas é impressionante. Havia muito menos brancos. Entretanto vieram tantos, não do meu grupo de amigos, esses ficaram lá."No centro há prédios novos, outros em construção. Há novos centros comerciais e, lá em baixo, na marginal, há o Clube Naval, com a esplanada e a piscina. Cá em cima há esplanadas cobertas, onde se comem bons bolos ou se almoça ou janta quase a qualquer hora. Há restaurantes italianos e portugueses e moçambicanos. E em frente, há gente a vender estátuas e malas de tecido e caixas de madeira e pulseiras que parecem de tartaruga ou de dente de elefante e panos pintados que se chamam capulanas, estendidos no chão ou pendurados em cordas penduradas nas árvores.
Camal, 54 anos, que diz que é "do país todo" e não de uma cidade ou de uma província, é o mais optimista com o país, apesar de se descrever "como um crítico, antes de mais, um autocrítico" e de se dizer "não dogmático" no momento de votar. "O que falta ao país é libertar-se dos libertadores", diz, a pensar nos novos dirigentes, nas novas gerações, nas pessoas que têm a idade de Azagaia ou de Christine ou dos seus filhos. "O 5 de Fevereiro foi o fim do contrato social entre o povo e a Frelimo, que desde a independência fazia o que queria", acrescenta.
"Estou convencido de que com os anos de independência que temos, de paz, não estamos tão mal. Quem me conhece, sabe que critico a falta de liberdade de expressão, a qualidade da educação, da segurança. Mas comparativamente com países que têm o mesmo Produto Interno Bruto, podemos dizer que temos uma liberdade de expressão óptima, um sistema de educação alargado à base satisfatório, um sistema de saúde popular acima de muitos países e uma segurança aceitável. Temos serviços públicos melhores do que Angola e então do que a Guiné nem se fala. Dentro da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa], só Cabo Verde é que deve ter uma organização social melhor do que a nossa. Ora isso satisfaz-me, mas gostava que fôssemos melhores e, repito, podíamos ser, sem acrescentar investimento", defende o empresário, herdeiro de um negócio de três gerações que adaptou aos tempos e às exigências e está quase a passar à quarta. A filha, Sheila, tem 31 anos e quando ela disser "podes ir-te embora" ele vai.
A ler Craveirinha
Camal é um "autodidacta", aprendeu a fazer - aos 20 anos já era ajudante de bate-chapa e antes trabalhava nas férias.
Anabela, à sua maneira, também, apesar de ela sublinhar que a geração anterior deixou referências, apesar de ter feito teatro desde miúda e de ter estudado - Medicina e, neste momento, Psicologia Clínica. Christine nunca estudou publicidade nem pensou que acabaria nesta área, mesmo se admite que tinha "o bichinho do marketing" algures dentro de si.
Emanuel só queria voltar para a sua "terra" e que a vida lhe corresse melhor.
Azagaia tinha os pais que gostavam de música e ouviam, e ele a escrever poesia e a ler José Craveirinha, o poeta que morreu em 2003. Depois, descobriu o poder da palavra, gostou e nunca mais parou.
Emanuel gosta de poder sair do trabalho e de "beber um copo com os amigos" e é isso que está a fazer enquanto conversamos, em redor de copos de cerveja Laurentina e de pratos de chamuças, rissóis e moelas. "Sair da cidade não dá com os meus horários, só ao fim-de-semana, mas a vida é boa, não dá para ser rico, mas dá para viver bem. Vou a Portugal todos os anos, visitar os meus pais a Lisboa. Mas fico com uma vontade louca de me vir embora."Divorciado e sem filhos, Emanuel não troca Maputo por nada. "Muito pacífico é o nosso povo. Mesmo com tantas dificuldades, está sempre a sorrir e a dançar."
Camal correu o mundo, "das Ásias às Américas", "a acelerar muito" pelas pistas de corridas que lhe deram as taças que ainda guarda no escritório. Mas embora ainda viaje, esteja sempre a partir e a regressar, para a África do Sul ou para a Europa, é em Moçambique que mais descansa, nos seus hotéis de Inhambane. "Tenho tudo bem organizado. Consigo ir uns dias e aproveitar para ler e descansar. Eu quero reformar-me mas não é para deixar de trabalhar. É para poder fazer o que gosto." O que Camal também gosta de fazer é correr: "Todos os dias dez quilómetros, no miradouro e na marginal." Menos no último mês, o do jejum do Ramadão para os muçulmanos, que acabou na quinta-feira e durante o qual Camal engordou três quilos, por não correr e por comer tudo à noite e de tudo, convidado para quebrar o jejum aqui e ali.
The View sem Whoopi
Anabela vai em breve começar um périplo por vários países para fazer uma série sobre 12 mulheres africanas para a Record Brasil, para o programa Mulheres do Mundo. Mas a sua grande aposta é o programa Agora É Que São Elas, com um painel fixo de quatro mulheres para além dela, uma espécie de The View, o talk show da ABC, à moçambicana, sem a Whoopi Goldberg. "Falta-me uma artista assim mais doidona. Isso é que eu não tenho. Mas tenho muitas opções, mulheres fantásticas."
O seu gora É Que São Elas está em fase de pré-produção e deve ir para o ar em Outubro e ali se vai discutir tudo e chamar tudo pelo nome, como Anabela sempre pôde fazer, pelo menos desde que está nas televisões privadas.
"Sei que eles me acham assim uma rebeldinha. Não é bem enfant terrible. Mas dizem-me "tu estás na mesma", e tudo bem, eu falo o mesmo. Todos os meus programas. Tive durante três anos um programa diário que era o Diálogos, recebi prémios por ele, era um programa de educação para a cidadania. Todos os dias abria com um texto conciliatório ou provocativo, mas educativo, e fechava da mesma maneira." Aos 51 anos, avó desde os 39, Anabela trabalha 14 a 16 horas por dia e não se vê de outra maneira.
Duas vezes viúva, "sempre quando já não estavam comigo", conta que os amigos lhe perguntam, os casados e os não casados, se imagina a sua vida com um homem. A resposta é naturalmente "não, obrigada". Ela que saiu de casa aos 19 anos depois de o primeiro marido ter chegado um dia às 23h. "Quero os remotos ao lado da minha king size."
Anabela, natural de Nampula, mistura de uma avó muçulmana e de um avô grego ortodoxo, saiu de casa "pouco arranjada" por ser feriado, mas de jeans e T-shirt e unhas cor-de-rosa está tão poderosa como deve ser diante de uma câmara de televisão. Como certamente seria quando, há uns anos, teve de ir a Portugal "raptar" uma das filhas a um ex-marido que acabaria por voltar para Moçambique, ser deputado pela Renamo, o maior partido da oposição, e assassinado.
Por "estar na mesma" e dizer o que pensa, não é convidada para ser "embaixadora das crianças desvalidas", mas ela prefere ter sido convidada pela Graça Machel para integrar um grupo de dez mulheres, a Rede de Mulheres Líderes e Proeminentes de África, criada em 2007.
O ventre democrático
Azagaia, filho de mãe moçambicana e de pai cabo-verdiano que se naturalizou moçambicano, veio aos dez anos para Maputo com a mãe e os irmãos. Nasceu no distrito na Namaacha, fronteiriço com a Suazilândia. "O primeiro livro do Craveirinha que li devia ter uns 13, 14 anos. O meu pai sempre teve alguns livros em casa, é técnico agrícola. A minha mãe sempre esteve ligada a negócios, comprava para revender, era muito comum naquela altura. Eu queria muito escrever como o José Craveirinha. Os primeiros poemas que eu escrevi tinham todos aquele tom reivindicativo. Mas os dele eram todos ligados à libertação e quando eu os li já não estávamos nessa altura. Lembro-me de um poema que eu escrevi para aí com 15 anos e que dizia que Moçambique já pariu o ventre democrático."
Vir da Namaacha para Maputo foi entrar em contacto com o breakdance, com os grupos da altura, entre os quais "havia alguma rivalidade, às vezes violenta". Entre 1993 e 1996, Azagaia, que ainda não era Azagaia, ouvia muito o brasileiro Gabriel, o Pensador, mas também os portugueses Black Company ou, mais tarde, Boss AC - e começou a pensar que podia escrever versos de rap.
"Era um mundo novo que eu estava a descobrir, diferente da literatura. Continuei sempre a ler e a escrever os meus poemas, mas havia o lado da música rap, que era também uma forma de me afirmar, usar calças grandes para me integrar. Criei um grupo, o Dinastia Bantu. Já estávamos a pensar na fusão, enquanto os outros grupos rap eram fotocópia dos americanos. Depois fiquei só eu e outra pessoa e nessa altura adoptámos estes nomes, eu era o Azagaia, ele o Escudo. E era essa dupla de defesa e ataque. Na altura, ainda não tinha esta consciência social que tenho hoje." Azagaia é um instrumento de combate nos povos bantu.
O Dinastia Bantu lançou um disco, o Siavuma, que vem de um poema de Craveirinha e é "uma espécie de ámen que se diz nas orações". A sorte não sorriu à dupla, mas na comunidade de hip hop o disco foi ouvido e ficou conhecido. Depois, o Escudo deixou a música e o Azagaia "estava um bocado perdido" e é perdido que escreve e grava As Mentiras da Verdade. "A música é lançada como single a promover o disco e toda a gente perguntava e questionava o conteúdo. Dei-me conta de que se estava a abrir um novo mundo. Essa foi a música responsável por todas as transformações que se seguiram na minha vida." E então o disco Babalaze, parte do nome de um livro de Craveirinha, acabou com duas identidades, uma com músicas pré-As Mentiras da Verdade e outra com as músicas escritas no pós-lançamento.
"Eu fiquei fascinado com as coisas com as quais estava a ter contacto. A minha música estava a ser consumida, ouvida e analisada pela classe académica. Fui-me sentindo mais atraído pela política e pela sociedade, por perceber como é que elas se relacionam. Depois nasceu uma trilogia, As Mentiras das Verdades, As Verdades e As Mentiras, que fala da maneira como os africanos vivem, da falsa ideia de sucesso que muitas vezes é o calcanhar de Aquiles para o desenvolvimento, dos líderes atraídos por pequenos presentes que os desviam da verdade, do propósito de liderar o seu povo."
Música e publicidade
Azagaia cresceu na música e a música em Moçambique cresceu com Azagaia. Ele foi o primeiro no país a anunciar um dia para lançar um disco.
Christine diz que a publicidade também cresceu com a música. "No princípio fazia-se copy paste de campanhas da África do Sul ou da Europa. Mas isso já não chega, o consumidor precisa de sentir que aquela mensagem é para ele. Está muito mais exigente. Isso também tem a ver com o próprio desenvolvimento do país, com a exposição." A indústria musical, por exemplo, cresceu, em termos de videoclips, com a publicidade. "Os produtores e os realizadores são os mesmos. Pode até parecer que foi algo repentino, mas não foi", explica a jovem mãe de duas filhas, uma de onze anos, outra de seis, ela que é filha de uma moçambicana e de um sul-africano.Christine viveu dois anos no Botswana, em 2000, onde primeiro se interessou pela publicidade. Voltou e começou a trabalhar na área. A seguir viveu em Espanha, Las Palmas e depois voltou novamente para Maputo. Acabou na DDB, onde começou como gestora de clientes. Vai fazer agora dois anos em Outubro que passou a ser directora comercial.
Basta andar nas ruas de Maputo e ver televisão para perceber que a publicidade está em pleno crescimento e já deu muitos passos. "Já começa a haver empresas com departamentos de imagem e até os departamentos do Governo sentem a necessidade de ter pessoas a fazer comunicação e imagem", diz Christine.
É na rua que se vêem ainda os cartazes da Frelimo da campanha do ano passado. Slogans como "A Frelimo é que fez, a Frelimo é que faz" ou "Guebuza luta contra a pobreza". Porque há pobreza e não vale a pena ignorar, mais vale dizer que se vai combater. Em simultâneo, garante-se que "A Frelimo promete, a Frelimo faz".
Qualidade de vida
"As pessoas perguntam-me porque é que eu voltei da Europa. Para mim, acima de tudo, é a qualidade de vida. Não digo da saúde, da educação... É poder aproveitar minimamente as coisas boas, ir uma vez por mês à Costa do Sol, à beira-mar, com as miúdas. Quem não pode sentar-se e comer como eu, pode sentar-se ao lado e comer o frango que é assado ali. Acima de tudo, há tempo para estar com os amigos e para educar os filhos. A vida aqui está a ficar mais rápida, mas sempre se consegue. Depois, o moçambicano é super-humilde, é simpático, é acolhedor. E é nesse tipo de ambiente que eu quero que as minhas filhas cresçam, pelo menos até certo momento", explica.
Christine vai pelo menos uma vez por mês à África do Sul, mas nunca seria capaz de viver lá, "numa casa blindada". Vai até Nelspruit: "Nem considero ir à África do Sul. Vou respirar um pouco mais a civilização, o lado inglês da história, bons vinhos, é o escape mais urbano." No fim-de-semana seguinte, pode ir almoçar à Costa do Sol ou aceitar o convite para um churrasco em casa de um amigo e encontrar dez dos 20 amigos e discutir a desvalorização do metical ou a falta de casas para os jovens comprarem.
Fora dos subúrbios ou dos bairros populares, na fronteira entre os subúrbios e o centro, comprar casa é difícil, alugar é muito caro. Azagaia vai ficar por isso a viver no Bairro da Liberdade, na Matola. "A vida podia ser melhor", mas ele não se queixa muito. E não deixa de vir ao centro, ao Jardim dos Professores, onde a esplanada do restaurante Acácia tem uma vista linda, a baía toda à frente e a ilha da Jefina no meio, lá ao fundo.
Sofia Lerena, em Maputo, Público
Anabela Adrianopoulos e Christine Ramela moram a poucos quarteirões uma da outra, no eixo da Avenida 24 de Julho. Anabela e Christine conhecem Amade Camal, que vive na mesma zona de Maputo. A casa de Emanuel Gomes Silva também não é longe. Só Azagaia, que todos eles conhecem, não vive por aqui, mas na Matola, outra cidade, satélite e industrial.
A classe média de Maputo, uma "classe emergente", como diz Christine Ramela, conhece-se. Como a elite conhece a elite e o povo não se conhece porque o povo é vasto, num país de 20 milhões.
Anabela é uma figura pública, a Oprah moçambicana, dizem-nos. Camal é um empresário bem-sucedido e também é uma figura pública, já foi deputado por Nampula, no Norte, aparece na televisão, publica artigos nos jornais.
Christine trabalha na agência de publicidade DDB, é directora do Departamento de Atendimento ao Cliente, chefia uma equipa de sete mulheres numa agência que emprega 70 pessoas.
Azagaia é o rapper mais conhecido e relevante do país: em 2008, quando lançou a música Povo no Poder, foi acusado de ser "perigoso para a segurança do Estado" e "chamado à Procuradoria-Geral da República".
Camal emprega 700 pessoas, entre o negócio dos automóveis e outros. Emanuel gere um supermercado onde trabalham 50 pessoas, no bairro da Coop. É uma das lojas Woolworths, um supermercado de luxo, "para classe média e alta", onde uma embalagem com fatias de salame custa 229 meticais (cinco euros) e uma garrafa de vinho tinto Duas Quintas custa 713 (15 euros).
Durante os protestos da semana passada contra o aumento dos preços, quando 13 pessoas foram mortas pela polícia e mais de 500 ficaram feridas, Christine ficou em casa. Azagaia também, em frente à televisão, e a ver que quem pilhava trazia um saco de arroz. Estavam a pilhar para comer. Camal ainda foi dar uma volta pela marginal, de carro, e viu mulheres a formarem barreiras e a cobrar aos carros que queriam passar. Mais sensatas, ameaçavam mas não lançavam as pedras que tinham nas mãos.
Emanuel ficou em casa no primeiro dia dos protestos, a 1 de setembro, mas no dia seguinte já teve de ir trabalhar, ordens do patrão. Como não havia mais nada aberto, venderam tudo e fecharam mais cedo, para Emanuel conseguir ir da Coop, onde trabalha, ao centro, onde vive. Anabela também esteve a ver televisão e a escrever no Facebook, onde foi pondo poemas de Brecht. "Do rio que tudo arrasta se diz que é violento / Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem." Lembrou-se do poema das margens que comprimem - era o que ela "estava a sentir".
Todos se sentiram solidários com quem estava na rua, a queimar pneus, mesmo se nenhum deles se imagina a queimar um só pneu.
Que olhem por nós
"Se tivesse circulado uma mensagem a dizer "vamos todos marchar na [Avenida] Eduardo Mondlane", até eu ia. Porque estou contra. Mesmo a classe média, mesmo quem vive com dois salários, se vê aflita. Se os sindicatos aqui fossem como na África do Sul, também sairia toda a gente à rua. Nem que fosse para uma passeata pacífica. O moçambicano já aprendeu que se pode expressar. Podes ter retaliações, mas podes ousar. It"s ok not to be happy e protestar. Somos pacíficos, queremos contribuir para o desenvolvimento, mas também queremos que olhem por nós", diz Christine, à conversa na esplanada da agência, mesmo em frente ao Instituto Franco-Moçambicano, um dos pólos culturais da cidade, que já tem vários, como a Semana da Moda ou o Docanema, um festival de documentário que começou na sexta-feira. São quase 19h30, Christine nunca sai do trabalho antes das 20h.
Para Christine, o aumento do custo de vida significa cortar em jantares e almoços e ponderar despedir uma das duas empregadas: "Em algum momento vou ter de abdicar de uma delas. Mas não quero, são as duas mães solteiras. Então, em vez de as aumentar, posso fazer uma cesta básica para elas, pelo menos a farinha, o óleo..." Christine tem 29 anos e duas filhas, uma a viver com ela, outra em Las Palmas, capital das Canárias, com o pai, onde Christine já viveu.Para Anabela, que tem três filhas, mas só uma ainda em casa, adolescente, o aumento do custo de vida significa que em vez de pagar doze mil meticais (250 euros) pelas compras do supermercado paga 24 mil (500 euros). "Eu fui fazer compras, o rancho do mês, e há dois meses, antes de ir de férias, a minha conta de supermercado com as mesmas coisas foi menos de metade. Doze paus, doze mil, onze mil e pouco, era a minha última conta. No fim de Agosto fui às compras, 24 paus de supermercado."
Emanuel não sabe se iria a uma manifestação, mas pensaria nisso. E sabe que "há um ano o euro estava a 37 e agora ali naquela loja de câmbio está a 48", diz a apontar para o outro lado da rua, da esplanada da churrascaria Piri-Piri para o Polana Shopping Center, que tem uma loja da Cota Câmbio. Emanuel recebe em meticais e paga a renda em dólares. Por isso, sabe bem como aumentou o custo de vida. E ele não ganha o que ganham os seus empregados. "Eles estão satisfeitos com os anúncios do Governo. Acham que valeu a pena, que isto agora vai melhorar, pelo menos um bocadinho."
Novos ricos e BMW X5
Camal conversou connosco no seu gabinete do stand da Quality Cars, do grupo Sir, na Avenida Karl Marx, onde hoje se vendem carros de topo de gama a novos ricos que podem pagar 120 mil dólares por um Range Rover ou por um BMW X5 - quando deveriam pagar bem mais, mas ficam, por uma razão ou por outra, isentos de impostos, porque são empresários ou dirigentes.
É Camal que diz que o 5 de Fevereiro - como ficaram conhecidos os protestos de 2008, contra o aumento dos "chapas", os mini-autocarros que transportam toda a gente que vive nos subúrbios e trabalha na cidade de cimento- começou com o povo, mas que "o 1 de Setembro já foi a classe média baixa com o povo e na próxima já vai ser a classe média e a classe média alta com o resto". E se "as medidas anunciadas pelo Governo", que têm a ver com congelamento de aumentos mas também com cortes nas despesas públicas e nos gastos dos dirigentes, forem puro populismo, "o ciclo vai reduzir" e os próximos protestos não demorarão dois anos. "Quando se junta dois grupos distintos mas a sofrerem o mesmo problema, cria-se a situação ideal para os tumultos."
Camal vive bem e pensa que em Moçambique ainda se vive bem. "Estou convencido de que o nosso empobrecimento não é tão grande como os analistas dão a entender. Mas podíamos estar numa situação muito melhor se o Governo aproveitasse melhor o que tem", afirma.
"A maior parte da capacidade financeira ou económica dos moçambicanos vem da terra, ou porque se criam animais ou porque se produz, pouco que seja. Normalmente não se paga renda, mesmo nos subúrbios, porque se é dono da palhota. Um terreno de 200 metros quadrados à volta da cidade custa 10 mil meticais [cerca de 200 euros]. Em parte nenhuma do mundo custa [só] isto. O que faz a sociedade moçambicana passar da passividade ao protesto são as duas ou três coisas para que, de facto, se usa dinheiro. O membro da família que trabalha usa o salário para pagar o transporte, para se deslocar, para o pão e para o açúcar. É para isso que vai o salário da maioria. Quando estes itens sobem, eles sentem imediatamente o sufoco. Para o resto, não dependem do mercado."
O povo não tem água, não tem electricidade. O "povo usa petróleo". Quem "compra água e luz já é uma classe média" e esse "foi o rastilho". O que aumentou foi o pão, a água, a luz, o arroz e o açúcar - o combustível para os carros e para os transportes já tinha aumentado e o povo tinha aguentado.Angola não é Moçambique
Azagaia já deu concertos em Portugal, na Dinamarca, em Angola. Mas não vive da música, vive de ser redactor publicitário, mesmo desde que em 2007 lançou a música que mudou a sua vida, As Mentiras da Verdade. Tem 26 anos e está a estudar, no segundo ano de Ciências da Comunicação. É casado com uma professora e tem uma filha de dois anos.
"Não vivemos tão bem, mas também não vivemos mal. Há muitas oportunidades que me são negadas por causa da minha postura. É uma vida mediana. Decididamente, podia ser melhor. Para ser melhor, eu teria de abdicar de muita coisa. Como eu não estou disposto, fica por aí. Essa é uma grande pressão. A resposta do sistema é muito severa. Tem muitos que não são promovidos, não conseguem o emprego. Tem muita gente que só não adere a estes movimentos por medo de perder o pão. É preciso ter uma certa coragem para enfrentar algumas privações em nome dos princípios. Alguns momentos são de frustração. Mas sinto-me bem", diz Azagaia, que marcou encontro na esplanada do Acácia, um restaurante no Jardim dos Professores, em frente ao Liceu Josina Machel (antigo Salazar), com vista para a baía.
É com a sua camisola de malha e riscas claras, calças bege e ténis Converse pretos que conta a sua aventura angolana em Dezembro, quando 6000 pessoas gritaram Zedu, a abreviatura de José Eduardo dos Santos, no meio das suas letras de crítica social. "A música Combatentes da Fortuna tem um coro que só faço ao vivo, onde pergunto "Quem vendeu a minha pátria?" E no meio, eles respondiam "Zedu, Zedu". A seguir cantei A Marcha, que diz "Ladrões fora, corruptos fora, assassinos fora", enquanto eles diziam "Zedu fora, Zedu fora, Zedu fora"."
"Deixaram-nos apreensivos. Angola não é Moçambique. Pensei que podia acontecer alguma coisa, a guarda da presidência é do que se tem medo lá. Disseram-me que nunca tinham visto nada assim, tanta gente a gritar contra o Presidente", conta Azagaia.
Nas últimas eleições legislativas de 2009, "com tudo o que se pode dizer que houve de fraude, a verdade é que a maioria foi lá e votou Frelimo", o partido que está no poder desde a independência, comenta Anabela. "Como já tinha acontecido com o MPLA em Angola."
"Olha, eu acho que há dois problemas: há muita falta de educação cívica e de educação política. Temos uma dificuldade imensa em saber, o moçambicano tem esse problema, não tem uma educação para a cidadania, ainda não sabe muito bem o que é isso de ser cidadão, para fazer valer direitos mas também para cumprir com o que são obrigações e deveres", diz Anabela, enquanto bebe um capuccino ao pé de casa, na pastelaria Cristal. "Passámos de um Estado de monopartidarismo para este pluripartidarismo. Falta educação política. Não vejo honestamente que haja nos próximos tempos o surgimento da tal terceira força de que se fala tanto."
Anabela, 23 anos na televisão pública e agora na privada Record, tem preocupações económicas, políticas e sociais. "Do ponto de vista económico, a situação está insustentável. Há muito desemprego e como consequência há muita marginalidade. Há muita delinquência. Há uma doença que é social, de facto, que é a questão da droga. Mas ninguém fala disso porque só se fala da sida", enumera Anabela.
Emanuel nota tantas diferenças desde que voltou. Nasceu em Lourenço Marques (actual Maputo) há 56 anos e foi embora aos 20 anos, para Portugal. "Voltei em Fevereiro de 1998, para ficar. Voltei para a minha terra." Chegou e 15 dias depois já tinha emprego, nem teve tempo de "matar saudades". Há dez anos que trabalha no mesmo supermercado da Coop, no mesmo sítio, a 100 metros da Praça da OMM, onde os protestos da semana passada foram duros e feios. "Há 12 anos quase não havia carros. Não havia este trânsito. Não havia nada disto. O movimento nas ruas é impressionante. Havia muito menos brancos. Entretanto vieram tantos, não do meu grupo de amigos, esses ficaram lá."No centro há prédios novos, outros em construção. Há novos centros comerciais e, lá em baixo, na marginal, há o Clube Naval, com a esplanada e a piscina. Cá em cima há esplanadas cobertas, onde se comem bons bolos ou se almoça ou janta quase a qualquer hora. Há restaurantes italianos e portugueses e moçambicanos. E em frente, há gente a vender estátuas e malas de tecido e caixas de madeira e pulseiras que parecem de tartaruga ou de dente de elefante e panos pintados que se chamam capulanas, estendidos no chão ou pendurados em cordas penduradas nas árvores.
Camal, 54 anos, que diz que é "do país todo" e não de uma cidade ou de uma província, é o mais optimista com o país, apesar de se descrever "como um crítico, antes de mais, um autocrítico" e de se dizer "não dogmático" no momento de votar. "O que falta ao país é libertar-se dos libertadores", diz, a pensar nos novos dirigentes, nas novas gerações, nas pessoas que têm a idade de Azagaia ou de Christine ou dos seus filhos. "O 5 de Fevereiro foi o fim do contrato social entre o povo e a Frelimo, que desde a independência fazia o que queria", acrescenta.
"Estou convencido de que com os anos de independência que temos, de paz, não estamos tão mal. Quem me conhece, sabe que critico a falta de liberdade de expressão, a qualidade da educação, da segurança. Mas comparativamente com países que têm o mesmo Produto Interno Bruto, podemos dizer que temos uma liberdade de expressão óptima, um sistema de educação alargado à base satisfatório, um sistema de saúde popular acima de muitos países e uma segurança aceitável. Temos serviços públicos melhores do que Angola e então do que a Guiné nem se fala. Dentro da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa], só Cabo Verde é que deve ter uma organização social melhor do que a nossa. Ora isso satisfaz-me, mas gostava que fôssemos melhores e, repito, podíamos ser, sem acrescentar investimento", defende o empresário, herdeiro de um negócio de três gerações que adaptou aos tempos e às exigências e está quase a passar à quarta. A filha, Sheila, tem 31 anos e quando ela disser "podes ir-te embora" ele vai.
A ler Craveirinha
Camal é um "autodidacta", aprendeu a fazer - aos 20 anos já era ajudante de bate-chapa e antes trabalhava nas férias.
Anabela, à sua maneira, também, apesar de ela sublinhar que a geração anterior deixou referências, apesar de ter feito teatro desde miúda e de ter estudado - Medicina e, neste momento, Psicologia Clínica. Christine nunca estudou publicidade nem pensou que acabaria nesta área, mesmo se admite que tinha "o bichinho do marketing" algures dentro de si.
Emanuel só queria voltar para a sua "terra" e que a vida lhe corresse melhor.
Azagaia tinha os pais que gostavam de música e ouviam, e ele a escrever poesia e a ler José Craveirinha, o poeta que morreu em 2003. Depois, descobriu o poder da palavra, gostou e nunca mais parou.
Emanuel gosta de poder sair do trabalho e de "beber um copo com os amigos" e é isso que está a fazer enquanto conversamos, em redor de copos de cerveja Laurentina e de pratos de chamuças, rissóis e moelas. "Sair da cidade não dá com os meus horários, só ao fim-de-semana, mas a vida é boa, não dá para ser rico, mas dá para viver bem. Vou a Portugal todos os anos, visitar os meus pais a Lisboa. Mas fico com uma vontade louca de me vir embora."Divorciado e sem filhos, Emanuel não troca Maputo por nada. "Muito pacífico é o nosso povo. Mesmo com tantas dificuldades, está sempre a sorrir e a dançar."
Camal correu o mundo, "das Ásias às Américas", "a acelerar muito" pelas pistas de corridas que lhe deram as taças que ainda guarda no escritório. Mas embora ainda viaje, esteja sempre a partir e a regressar, para a África do Sul ou para a Europa, é em Moçambique que mais descansa, nos seus hotéis de Inhambane. "Tenho tudo bem organizado. Consigo ir uns dias e aproveitar para ler e descansar. Eu quero reformar-me mas não é para deixar de trabalhar. É para poder fazer o que gosto." O que Camal também gosta de fazer é correr: "Todos os dias dez quilómetros, no miradouro e na marginal." Menos no último mês, o do jejum do Ramadão para os muçulmanos, que acabou na quinta-feira e durante o qual Camal engordou três quilos, por não correr e por comer tudo à noite e de tudo, convidado para quebrar o jejum aqui e ali.
The View sem Whoopi
Anabela vai em breve começar um périplo por vários países para fazer uma série sobre 12 mulheres africanas para a Record Brasil, para o programa Mulheres do Mundo. Mas a sua grande aposta é o programa Agora É Que São Elas, com um painel fixo de quatro mulheres para além dela, uma espécie de The View, o talk show da ABC, à moçambicana, sem a Whoopi Goldberg. "Falta-me uma artista assim mais doidona. Isso é que eu não tenho. Mas tenho muitas opções, mulheres fantásticas."
O seu gora É Que São Elas está em fase de pré-produção e deve ir para o ar em Outubro e ali se vai discutir tudo e chamar tudo pelo nome, como Anabela sempre pôde fazer, pelo menos desde que está nas televisões privadas.
"Sei que eles me acham assim uma rebeldinha. Não é bem enfant terrible. Mas dizem-me "tu estás na mesma", e tudo bem, eu falo o mesmo. Todos os meus programas. Tive durante três anos um programa diário que era o Diálogos, recebi prémios por ele, era um programa de educação para a cidadania. Todos os dias abria com um texto conciliatório ou provocativo, mas educativo, e fechava da mesma maneira." Aos 51 anos, avó desde os 39, Anabela trabalha 14 a 16 horas por dia e não se vê de outra maneira.
Duas vezes viúva, "sempre quando já não estavam comigo", conta que os amigos lhe perguntam, os casados e os não casados, se imagina a sua vida com um homem. A resposta é naturalmente "não, obrigada". Ela que saiu de casa aos 19 anos depois de o primeiro marido ter chegado um dia às 23h. "Quero os remotos ao lado da minha king size."
Anabela, natural de Nampula, mistura de uma avó muçulmana e de um avô grego ortodoxo, saiu de casa "pouco arranjada" por ser feriado, mas de jeans e T-shirt e unhas cor-de-rosa está tão poderosa como deve ser diante de uma câmara de televisão. Como certamente seria quando, há uns anos, teve de ir a Portugal "raptar" uma das filhas a um ex-marido que acabaria por voltar para Moçambique, ser deputado pela Renamo, o maior partido da oposição, e assassinado.
Por "estar na mesma" e dizer o que pensa, não é convidada para ser "embaixadora das crianças desvalidas", mas ela prefere ter sido convidada pela Graça Machel para integrar um grupo de dez mulheres, a Rede de Mulheres Líderes e Proeminentes de África, criada em 2007.
O ventre democrático
Azagaia, filho de mãe moçambicana e de pai cabo-verdiano que se naturalizou moçambicano, veio aos dez anos para Maputo com a mãe e os irmãos. Nasceu no distrito na Namaacha, fronteiriço com a Suazilândia. "O primeiro livro do Craveirinha que li devia ter uns 13, 14 anos. O meu pai sempre teve alguns livros em casa, é técnico agrícola. A minha mãe sempre esteve ligada a negócios, comprava para revender, era muito comum naquela altura. Eu queria muito escrever como o José Craveirinha. Os primeiros poemas que eu escrevi tinham todos aquele tom reivindicativo. Mas os dele eram todos ligados à libertação e quando eu os li já não estávamos nessa altura. Lembro-me de um poema que eu escrevi para aí com 15 anos e que dizia que Moçambique já pariu o ventre democrático."
Vir da Namaacha para Maputo foi entrar em contacto com o breakdance, com os grupos da altura, entre os quais "havia alguma rivalidade, às vezes violenta". Entre 1993 e 1996, Azagaia, que ainda não era Azagaia, ouvia muito o brasileiro Gabriel, o Pensador, mas também os portugueses Black Company ou, mais tarde, Boss AC - e começou a pensar que podia escrever versos de rap.
"Era um mundo novo que eu estava a descobrir, diferente da literatura. Continuei sempre a ler e a escrever os meus poemas, mas havia o lado da música rap, que era também uma forma de me afirmar, usar calças grandes para me integrar. Criei um grupo, o Dinastia Bantu. Já estávamos a pensar na fusão, enquanto os outros grupos rap eram fotocópia dos americanos. Depois fiquei só eu e outra pessoa e nessa altura adoptámos estes nomes, eu era o Azagaia, ele o Escudo. E era essa dupla de defesa e ataque. Na altura, ainda não tinha esta consciência social que tenho hoje." Azagaia é um instrumento de combate nos povos bantu.
O Dinastia Bantu lançou um disco, o Siavuma, que vem de um poema de Craveirinha e é "uma espécie de ámen que se diz nas orações". A sorte não sorriu à dupla, mas na comunidade de hip hop o disco foi ouvido e ficou conhecido. Depois, o Escudo deixou a música e o Azagaia "estava um bocado perdido" e é perdido que escreve e grava As Mentiras da Verdade. "A música é lançada como single a promover o disco e toda a gente perguntava e questionava o conteúdo. Dei-me conta de que se estava a abrir um novo mundo. Essa foi a música responsável por todas as transformações que se seguiram na minha vida." E então o disco Babalaze, parte do nome de um livro de Craveirinha, acabou com duas identidades, uma com músicas pré-As Mentiras da Verdade e outra com as músicas escritas no pós-lançamento.
"Eu fiquei fascinado com as coisas com as quais estava a ter contacto. A minha música estava a ser consumida, ouvida e analisada pela classe académica. Fui-me sentindo mais atraído pela política e pela sociedade, por perceber como é que elas se relacionam. Depois nasceu uma trilogia, As Mentiras das Verdades, As Verdades e As Mentiras, que fala da maneira como os africanos vivem, da falsa ideia de sucesso que muitas vezes é o calcanhar de Aquiles para o desenvolvimento, dos líderes atraídos por pequenos presentes que os desviam da verdade, do propósito de liderar o seu povo."
Música e publicidade
Azagaia cresceu na música e a música em Moçambique cresceu com Azagaia. Ele foi o primeiro no país a anunciar um dia para lançar um disco.
Christine diz que a publicidade também cresceu com a música. "No princípio fazia-se copy paste de campanhas da África do Sul ou da Europa. Mas isso já não chega, o consumidor precisa de sentir que aquela mensagem é para ele. Está muito mais exigente. Isso também tem a ver com o próprio desenvolvimento do país, com a exposição." A indústria musical, por exemplo, cresceu, em termos de videoclips, com a publicidade. "Os produtores e os realizadores são os mesmos. Pode até parecer que foi algo repentino, mas não foi", explica a jovem mãe de duas filhas, uma de onze anos, outra de seis, ela que é filha de uma moçambicana e de um sul-africano.Christine viveu dois anos no Botswana, em 2000, onde primeiro se interessou pela publicidade. Voltou e começou a trabalhar na área. A seguir viveu em Espanha, Las Palmas e depois voltou novamente para Maputo. Acabou na DDB, onde começou como gestora de clientes. Vai fazer agora dois anos em Outubro que passou a ser directora comercial.
Basta andar nas ruas de Maputo e ver televisão para perceber que a publicidade está em pleno crescimento e já deu muitos passos. "Já começa a haver empresas com departamentos de imagem e até os departamentos do Governo sentem a necessidade de ter pessoas a fazer comunicação e imagem", diz Christine.
É na rua que se vêem ainda os cartazes da Frelimo da campanha do ano passado. Slogans como "A Frelimo é que fez, a Frelimo é que faz" ou "Guebuza luta contra a pobreza". Porque há pobreza e não vale a pena ignorar, mais vale dizer que se vai combater. Em simultâneo, garante-se que "A Frelimo promete, a Frelimo faz".
Qualidade de vida
"As pessoas perguntam-me porque é que eu voltei da Europa. Para mim, acima de tudo, é a qualidade de vida. Não digo da saúde, da educação... É poder aproveitar minimamente as coisas boas, ir uma vez por mês à Costa do Sol, à beira-mar, com as miúdas. Quem não pode sentar-se e comer como eu, pode sentar-se ao lado e comer o frango que é assado ali. Acima de tudo, há tempo para estar com os amigos e para educar os filhos. A vida aqui está a ficar mais rápida, mas sempre se consegue. Depois, o moçambicano é super-humilde, é simpático, é acolhedor. E é nesse tipo de ambiente que eu quero que as minhas filhas cresçam, pelo menos até certo momento", explica.
Christine vai pelo menos uma vez por mês à África do Sul, mas nunca seria capaz de viver lá, "numa casa blindada". Vai até Nelspruit: "Nem considero ir à África do Sul. Vou respirar um pouco mais a civilização, o lado inglês da história, bons vinhos, é o escape mais urbano." No fim-de-semana seguinte, pode ir almoçar à Costa do Sol ou aceitar o convite para um churrasco em casa de um amigo e encontrar dez dos 20 amigos e discutir a desvalorização do metical ou a falta de casas para os jovens comprarem.
Fora dos subúrbios ou dos bairros populares, na fronteira entre os subúrbios e o centro, comprar casa é difícil, alugar é muito caro. Azagaia vai ficar por isso a viver no Bairro da Liberdade, na Matola. "A vida podia ser melhor", mas ele não se queixa muito. E não deixa de vir ao centro, ao Jardim dos Professores, onde a esplanada do restaurante Acácia tem uma vista linda, a baía toda à frente e a ilha da Jefina no meio, lá ao fundo.
Sofia Lerena, em Maputo, Público
2 comments:
Bonito texto. Gostei muito. Fala de pessoas conhecidas e que sao referencia para muitos mocambicanos, tanto pelo seu trabalho honesto, como pela sua militancia em causas sociais e a favor dos mais desfavorecidos.
Obrigado
Também digo que gostei muito do texto. É como textos da Ana Dias Cordeiro.
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