Wednesday 6 May 2009

O regime de Machel era stalinista? - (2ª Parte)

Pretoria (Canal de Moçambique) - O grande erro da Frelimo foi não ter tirado partido da popularidade de que gozava a nível nacional por altura do golpe de Estado de 25 de Abril, aceitando a realização de eleições livres tal como havia sido preconizado no programa original da Frente de Libertação de Moçambique no qual, Eduardo Mondlane, inspirando-se em Abraham Lincoln, havia feito questão de inserir o princípio do “estabelecimento de um governo do povo, pelo povo e para o povo”. A falta de visão demonstrada pelos descolonizadores em Lusaka em 1974, não viria, felizmente, a repetir-se em Roma em 1992 pois aí a Frelimo teve o discernimento de rejeitar a legitimação democrática pelo cano das espingardas, estabelecendo, em vez disso, as bases para uma alternância democrática por meio eleições que se pretendia fossem livres, justas e transparentes.
Com a morte de Eduardo Mondlane e o subsequente afastamento de Uria Simango da direcção da Frelimo, a Frente passou a ser dirigida por uma corrente que a si própria se designava de linha revolucionária. Esta tinha uma componente militar, representada por Samora Machel, como presidente e comandante das forças armadas, e uma componente política em que pontificavam figuras como Marcelino dos Santos, e Joaquim Chissano, responsável pela segurança e com formação adquirida na União Soviética, havendo ainda figuras que orbitavam em redor da nova direcção da Frelimo, como Jorge Rebelo, Sérgio Vieira, Óscar Monteiro, entre outros. A componente política da linha revolucionária assumia-se como sendo de orientação marxista-leninista, tendo sofrido influências de círculos pró-soviéticos na Europa e Argélia e numa altura em que ainda prevalecia como válida a corrente stalinista. Essa componente permaneceu fiel à tendência stalinista, interpretando as denúncias de Nikita Khrushchev, que a conta-gotas lhe chegavam tardiamente de Moscovo, como uma “auto-crítica” aos inevitáveis “erros de percurso”. É essa componente que após a independência de Moçambique influencia a orientação ideológica da República Popular de Moçambique, aposta numa economia planificada, e procede à redefinição do não-alinhamento, rejeitando o princípio da equidistância, aliando-se a Moscovo e Havana na defesa do conceito de que o chamado bloco socialista foi sempre parte integrante do Movimento dos Não-alinhados.
Os primeiros traços da tendência stalinista no seio da Frelimo de Samora Machel emergem durante o governo de transição com a realização dos julgamentos em massa de Nachingwea. Tal como os julgamentos organizados por Stalin no âmbito das Grandes Purgas de 1934-1939, a Frelimo também fez desfilar os seus “inimigos do povo”, os “contra-revolucionários” e os “sabotadores da revolução”, ardilosamente atraídos do exílio uns, sonegados da própria colónia outros, com a conivência dos senhores de Abril. Sem direito a defesa legalmente constituída, as vítimas do processo de Nachingwea, em que Samora Machel pessoalmente desempenhou o papel de procurador e juiz de causa própria, viriam todas elas a ser condenadas à “reeducação”, pena não prevista em nenhum código penal. A onda de julgamentos em massa prosseguiria depois da independência, desta vez abrangendo os chamados “comprometidos” e “vacilantes”.
A primeira Constituição que passou a vigorar a partir da independência teve a particularidade de ter sido aprovada, não por uma Assembleia Constituinte, representativa das diversas sensibilidades da sociedade moçambicana, mas por um punhado de membros de uma formação política que a si própria outorgou constitucionalmente o estatuto de “força dirigente do Estado e da sociedade” para depois se declarar como “partido de vanguarda marxista-leninista”. Estavam assim criados todos os requisitos para a edificação de um Estado totalitário, em que os poderes executivo e legislativo se concentraram nas mãos de uma única pessoa – o presidente da República, que era também chefe do governo, presidente da Assembleia Popular e comandante em chefe das Forças de Defesa e Segurança – e cuja imagem passou a ser promovida como a de “líder incontestado e incontestável”(4) e de “dirigente máximo da revolução”, num decalque da designação dada ao chefe máximo da revolução cubana. Mais original, um antigo ministro das finanças(5), qualificaria o mesmo líder de “bestial”. Neste esforço de culto da personalidade, limitou-se a referência feita ao papel desempenhado por Eduardo Mondlane na conquista da independência nacional, tendo a sua família sido impedida de publicar a autobiografia do primeiro presidente da Frelimo sob o pretexto de que a obra “iria ofuscar a imagem de Samora Machel que entretanto necessitava de ser promovida, especialmente no sul de Moçambique”. (6)
O novo regime passou a governar por decreto, arregimentando toda a sociedade, submetendo-a a um “pensamento comum”: desde os sindicatos à comunicação social, passando pela advocacia, a saúde, o ensino e até mesmo as instituições culturais e recreativas. Reprimiram-se contundentemente tradições seculares e crenças religiosas, disciplinou-se o gosto de cada cidadão pela leitura, música e cinema, e limitou-se ou proibiu-se até a criatividade de escritores, músicos e poetas. Pela via do decreto, os moçambicanos cedo viram surgir uma nova polícia política no país. Uma “monstruosidade jurídica” (7) foi como o jurista moçambicano, João Trindade, descreveu o decreto presidencial que instituiu o Serviço Nacional de Segurança Popular (SNASP), cuja direcção tinha “poderes para ordenar e realizar, ou mandar realizar, as diligências, buscas e apreensões que entender convenientes, proceder às requisições necessárias, instruir processos e deter pessoas, determinando-lhes o destino que achar mais conveniente, nomeadamente o de as remeter à autoridade policial competente, ou aos tribunais, ou para campos de reeducação”. O decreto determinava ainda que as pessoas sob investigação e instrução do SNASP “não beneficiarão do disposto no artigo 315° do Código do Processo Penal” em vigor no país e que estipulava que “o arguido, em sete dias a contar da notificação do despacho que designa dia para a audiência, apresenta, querendo, a contestação, acompanhada do rol de testemunhas”. (8)
Tal como o regime de Stalin, o de Samora Machel ficará eternamente conotado com os campos de reeducação espalhados como pequenas ilhas por zonas remotas e inóspitas do país, em género de “arquipélago” a que Solzhenitsyn se referiu na sua magistral obra. De acordo com o jurista Mário Mangaze, “os tribunais não desempenhavam qualquer papel quer na detenção, quer no envio de pessoas para os campos de reeducação, nem tão pouco no próprio processo de reeducação.” Segundo ainda Mangaze, “o Ministério Público tinha o acesso vedado aos campos de reeducação”. (9) Os tribunais não tinham qualquer palavra a dizer quanto à duração do processo de reeducação a que um indivíduo fosse submetido, nem tão pouco o governo tinha uma ideia precisa a esse respeito.
Marcelino dos Santos chegou a dizer aos reeducandos do campo de reeducação de Cudzo (”Sacuzi”) na província de Sofala, que “a reeducação não tinha prazo fixo”. Em vez de funcionarem sob a tutela das instituições judiciais, esses campos estavam sob a jurisdição directa do Ministério da Segurança-Snasp (como eram os casos de Ruarua e Moçambique D, em Cabo Delgado, e M’telela, no Niassa), mas a grande maioria funcionava sob a alçada do Ministério do Interior por intermédio da Direcção Nacional dos Serviços de Reeducação.
O princípio norteador do sistema de reeducação ressurgiria anos mais tarde no âmbito da Operação Produção, tendo as consequências dessa medida assumido proporções ainda mais dramáticas do que as levas dos anos anteriores.
Na entrevista recente ao jornal O País, José Luís Cabaço reconheceu que a “Operação Produção foi um grande erro”. Cabaço admitiu ainda que como membro do Comité Central não havia tido oportunidade para expor as suas ideais sobre essa operação, o que vem confirmar a tese de Radoslav Selucky de que os comités centrais dos partidos comunistas “funciona(m) como braço executivo do Bureau Político e do Secretariado, os quais apresentam ao Comité Central decisões já tomadas para serem anotadas e aprovadas,” pese embora o facto de, estatutariamente, ele ser “o supremo órgão do Partido entre os congressos”. (10)
Este tipo de relações entre os órgãos de direcção do Partido Frelimo repetir-se-ia na forma como funcionava a Assembleia Popular, tida como órgão legislativo supremo. Durante o regime de Samora Machel, esse órgão integrava apenas membros da confiança do partido no poder. Os cadernos eleitorais eram inexistentes por nunca ter-se realizado qualquer recenseamento eleitoral. Durante a vigência da Assembleia Popular, na maior parte dos casos os deputados aprovavam leis que já haviam sido postas em prática sem que tivessem passado por debates, quer na generalidade, quer na especialidade. Casos concretos foram os da lei que instituiu a pena de morte em Março de 1979 e a que reintroduziu a prática colonial da chicotada em 1983. Ambas as leis foram aprovadas pela Assembleia Popular depois das primeiras execuções por fuzilamento terem tido lugar e após a aplicação de chicotadas em público, com a particularidade dos dois diplomas terem efeitos retroactivos.
NOTAS:

4. Segundo declarava Marcelino dos Santos.
5. Rui Baltazar
6. Citado em “O meu coração esta nas mãos de um negro”, Janet Mondlane e Nadja Manghezi. Maputo: Centro de Estudos Africanos, 1999.
7. Citado em “Mozambique: The tortuous road to democracy”, João M. Cabrita. Londres: Palgrave 2000)
8. Ibidem
9. Ibidem
10. Czechoslovakia: The Plan that Failed. Por Radoslav Selucky. Londres: Thomas Nelson & Sons Ltd. 1970.


NOTA DO JOSÉ:
Mais um valioso contributo para a verdadeira História de Moçambique!
É importante analisarmos a História moçambicana pois ela tem sido mal contada. Este branqueamento da História infelizmente não é inédito, assistimos a esse fenómeno em outras latitudes em relação ao nazismo, ao fascismo, ao racismo, ao comunismo, etc. Temos de confrontar o nosso passado pois se não sabemos de onde viemos deficilmente saberemos para onde vamos, não se pode contar uma História baseada em mentiras e meias-verdades.
O grande problema é que por vezes a História repete-se porque não aprendemos com os erros. No caso de Moçambique, temos de ser vigilantes pois alguns intervenientes nessas páginas feias do nosso passado, continum a ter influencia política.

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