A situação complicada na Costa do Marfim devia ser um pretexto para uma reflexão sobre as doenças políticas africanas. O estado de África não é o resultado da acção do homem branco ou da globalização. A culpa está - apenas e só - nas elites africanas.
I. Para começo de conversa, recomenda-se a tradução de "The State of Africa", um livro central de Martin Meredith , que procura fazer o rescaldo dos cinquenta anos da África pós-colonialismo. E o desiderato de Martin Meredith não podia ser mais pessimista: o futuro de África nunca foi tão negro como hoje. A responsabilidade deste desastre, diz-nos Meredith, cabe, em primeiro lugar, aos líderes africanos. Ou seja, o autor evita a tradicional narrativa que culpabiliza o Ocidente pelas maleitas africanas. Sem paternalismo eurocêntrico, Meredith aponta o dedo à corrupção e nepotismo das elites africanas. Os grandes líderes do período da libertação adquiriram uma aura de santidade e de intocabilidade; esta aura rapidamente desembocou num poder absoluto que corrompeu os ditos libertadores e a restante elite africana. Este ponto de Meredith torna-se absolutamente claro quando olharmos para Mugabe e para o silêncio acrítico dos outros líderes africanos em relação ao ditador do Zimbabwe. Por outras palavras, na primeira geração de líderes africanos pós-independência, quase ninguém escapou ao axioma de Lord Acton: "o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente".
II. Em África, os líderes nunca abdicaram (abdicam) do poder. Mais: o poder passou a ser apenas um mecanismo de enriquecimento pessoal. Segundo o Banco Mundial, 40% da riqueza africana está situada offshore, isto é, os líderes africanos capturam a riqueza dos seus países e enviam-na para contas privadas no estrangeiro. Homens como Nguema (Guiné Equatorial) e Eduardo dos Santos (Angola) transformam as contas do petróleo em convenientes segredos de estado. E qual foi o resultado desta estranha forma de fazer política? Resposta: África é a região mais pobre do mundo e continua a sua trajectória de divergência em relação às outras regiões; hoje, a maioria dos estados africanos é mais pobre (em PIB per capita) do que era em 1980 e, nalguns casos, em 1960; metade dos 880 milhões de africanos vive com menos de um dólar por dia; a riqueza combinada de África é de 420 biliões de dólares, apenas 1.3% do PIB mundial; África é a única região do mundo onde a iliteracia continua a ser uma coisa banal; a África subsariana representa 10% da população mundial, mas tem 70% dos casos de infecção pelo vírus HIV.
III. Para Meredith, a única solução para este drama passa pela ajuda ocidental, dado que os estados africanos já perderam a capacidade para saírem desta espiral pelo seu próprio pé. Neste sentido, Meredith critica a falta de eficácia da ajuda ocidental e, acima de tudo, devasta a forma como o Ocidente recusa rever o seu proteccionismo agrícola. Os subsídios aos agricultores ocidentais e as tarifas colocadas aos produtos africanos destroem por completo a possibilidade de um renascimento económico africano. Porém, apesar das críticas ao Ocidente, Martin Meredith é claro: os principais responsáveis pelo desastre africano são os líderes africanos que foram incapazes de desenvolver efectivas soluções de governo durante meio século de independência.
Henrique Raposo, Expresso, 27/12/10
No comments:
Post a Comment