Wednesday 3 November 2010

A recusa de ser irrelevante

Não é fácil qualificar em poucas palavras os tumultos populares que agitaram o Grande Maputo nos passados dias 1 e 2 de Setembro.
Mas foram, antes de mais, um protesto. Um protesto da camada social maioritária na área urbana e periurbana, contra a decisão governamental de aumentar os principais bens de primeira necessidade, mas também contra o desprezo pelas suas dificuldades que detectam nessa decisão e contra aquilo que consideram um abandono e uma quebra do dever básico de quem os governe: o dever de, independentemente de tirar proveito da sua posição, garantir aos governados um mínimo básico de bem-estar e condições de subsistência.
Um protesto que se expressa através de barricadas de pneus queimados, de pedradas contra automóveis e outros símbolos de propriedade, em confrontos com a polícia, porque não descortinam à sua volta formas institucionais ou informais de serem ouvidos e tidos em conta por parte de quem governa. Assim, acaba por se tratar, também, de um protesto contra uma forma de exercício do poder em que, recostado numa esmagadora maioria parlamentar, o partido que ocupa o aparelho de estado desde a independência governa sem diálogo ou auscultação, excepto dentro das suas próprias fronteiras partidárias.
Por outras palavras, não deixando de ser um protesto económico, aquilo que se passou foi sobretudo um protesto político. Não propriamente contra quem governa, mas contra a forma como as “pessoas comuns” consideram que o faz – comportando-se não como um pai mas como um padrasto e tornando-as irrelevantes.

FILME DOS ACONTECIMENTOS

Nos últimos dias de Agosto, começaram a circular mensagens de telemóvel apelando a uma “greve”1 no dia 1 de Setembro, com o objectivo de reverter os aumentos de preços da água, electricidade, arroz, pão e outros bens essenciais. Terminavam com um apelo ao seu reencaminhamento. Visto que, apesar das suas dificuldades de subsistência, em quase todas as famílias existe pelo menos um telemóvel (de que usam sobretudo o SMS por razões de custo), rapidamente se tornou geral o conhecimento do protesto.
Contudo, nada tinha acontecido até à hora de ir para o trabalho, pelo que aquela minoria da população periurbana que tem emprego formal se chegou a deslocar para a “cidade de cimento”. Nem a peculiar sugestão, dada por um representante do governo num matutino programa de rádio, de que os mais pobres substituíssem o pão por batatadoce, parece ter aquecido os ânimos. Não obstante, mal as primeiras barricadas foram conhecidas (de novo por SMS, ou por ser avistado o seu fumo) outras eram criadas, num mecanismo de bola de neve.
Uma boa parte de quem as erguia eram jovens, que normalmente estão desempregados mas desempenham todo o tipo de actividades que conseguem, participando na subsistência precária e incerta de famílias alargadas em que cada um contribui com o que pode. Também muitas mulheres, simultaneamente donas de casa e angariadoras de meios através das formas possíveis. Fechadas as escolas, juntaram-selhes crianças. No entanto, nas conversas que depois mantive em diversos bairros populares, mesmo as pessoas que não participaram directamente nos confrontos se referiam ao que aconteceu dizendo «nós fizemos», e não «eles fizeram». Ou seja, os participantes visíveis e activos foram considerados, pelos restantes, os representantes de toda a comunidade.
Houve também tentativas de desfile em direcção ao centro de Maputo, mas a principal ordem dada aos polícias foi não deixarem os manifestantes chegar à “cidade de cimento”. Equipadas, estranhamente, com menos lançadores de balas de borracha e de gás lacrimogéneo do que em 2008, as forças policiais dispararam as suas kalashnikovs e pistolas sobre as multidões que se iam formando, tendo sido confirmados 13 mortos e centenas de feridos por baleamento.
Registaram-se ainda saques de produtos alimentares, quer nalguns armazéns de empresas que a população associa aos ricos governantes, quer a lojas instaladas em contentores por imigrantes africanos – neste último caso, com um fenómeno de posterior devolução desses produtos que mereceria, por si só, um outro artigo.
Ao atribuir os acontecimentos a «aventureiros, malfeitores e bandidos», o Ministro do Interior indignou a generalidade da população periurbana. A segunda reacção não veio do governo, mas do porta-voz do partido governante, que reafirmou os aumentos e apelou a mais trabalho – igualmente a tónica da posterior comunicação do Presidente da República. Também esta linha de discurso foi sentida como insultuosa: «Trabalhar mais? Mas onde?»; «Se não tem emprego, tem que trabalhar muito para fazer uma quinhenta.2 Mais que esses folgados!»
Ao fim do segundo dia, os confrontos esmoreceram. Os manifestantes e suas famílias não estavam precavidos com reservas de alimentos e dinheiro, pelo que os mercados populares foram muito concorridos durante o fim-de-semana, tentando obter ambas as coisas. Entretanto, representantes estatais mantinham reuniões com as instituições de Breton Woods e réplicas dos protestos foram abafadas noutras cidades, através de prisões “preventivas” e reacções imediatas. Na segunda-feira, dia 6, cruzavam-se SMSs a favor e contra novas manifestações, mas a expectativa das pessoas centrava-se nos resultados da primeira reunião formal do governo. Este manteve as suas decisões anteriores de nada alterar, ao mesmo tempo que o acesso a SMSs foi bloqueado pelas empresas prestadoras desse serviço, por ordem dos organismos estatais de tutela.
Finalmente, no feriado de 7 de Setembro, o Presidente da República contradisse o governo a que presidira na véspera, anunciando um conjunto de 25 medidas de combate à carestia, em que se incluem a reversão dos aumentos de água e electricidade, o subsídio e congelamento dos preços dos produtos alimentares em questão e a alteração das pautas aduaneiras para produtos de primeira necessidade.
Instalou-se uma paz superficial, marcada por uma expectativa desconfiada.

RAZÕES E DILEMAS

Um primeiro aspecto reter quando olhamos estes protestos é que os seus actores não foram nem os mais miseráveis (prestes a morrer de fome, catando o lixo e sem um tecto para se abrigarem), nem indivíduos isolados das suas comunidades. Foram o “cidadão comum”, pessoas que partilham a situação largamente maioritária no Grande Maputo: estão em famílias em que um (ou, com sorte, mais alguns) têm emprego formal, enquanto os restantes lançam mão de todas as actividades possíveis para, em conjunto, assegurarem comida e os restantes bens essenciais em espaço urbano, mas sempre na incerteza de que tal seja possível na próxima semana ou amanhã – quanto mais num futuro mais longínquo para si e para os seus filhos.
É a estas pessoas que um aumento brusco dos bens essenciais põe em risco a subsistência. Mas é também a estas pessoas (exemplos de “empreendorismo”, à sua maneira) que as políticas liberais e a suposta ditadura de um mercado com acesso politicamente controlado, adoptadas a partir de 1992, trouxeram o desemprego massivo e a falta de perspectivas de melhoria, numa economia cujo PIB tinha vindo a crescer rapidamente, mas com base nos serviços, comércio e recirculação do dinheiro vindo do exterior.3 São, ainda, essas pessoas quem é diariamente confrontado com o crescente contraste entre a sua periclitante subsistência e ausência de futuro e, por outro lado, a visível e ostentatória acumulação de riqueza e bem-estar por parte das elites económicas (que o são por serem também políticas, ou por lhes estarem ligadas)4 e até das emergentes camadas médias-altas.
Não que, segundo os critérios de deveres e direitos que predominam entre a população mais pobre, os governantes não tenham o direito de viver melhor, ou até de o fazerem à custa dos bens públicos. No entanto, se se tolera e reconhece que quem manda tem o direito de «comer mais», já é inaceitável que «coma sozinho» e à custa da fome daqueles que governa.
Isto porque existe um desencontro entre aquilo que o “contrato social” representa para as elites políticas e para esta larga maioria da população. Para as primeiras, uma vez legitimado o seu poder (pelo voto ou, antes disso, pela libertação nacional), todas as suas decisões são legítimas, desde que sejam legais. Já para a população as regras são outras, mais “tradicionais” mas reforçadas pelo paternalismo estatal vivido durante o período revolucionário: Se, por um lado, só em casos extremos é admissível pôr em causa o poder instituído, este tem, em contrapartida, a obrigação de assegurar àqueles que governa um nível básico de dignidade e subsistência. Se toma decisões que fazem perigar esse nível básico, não está a cumprir as suas obrigações – e,
por muito legais que sejam, essas decisões tornam-se ilegítimas e atacáveis, sem que tal ponha necessariamente em causa a legitimidade do poder.
Acontece também que, com o desmantelamento das organizações de base típicas do mono-partidarismo, o controlo partidário das organizações sociais existentes e a pouca sensibilidade das elites políticas às queixas populares, estas pessoas sentem que não têm mais nenhuma forma de serem ouvidas.
Isto faz com que, num baluarte da Frelimo, encontremos votantes seus, ou mesmo participantes nas suas campanhas eleitorais, a queimar pneus.
Mas isso quer também dizer que, para resolver o problema existente e o potencial de violência que ele provoca e que se mantém, não bastam medidas de estratégia económica ou subsídios paliativos de curto prazo, por muito necessários e justificados que ambos sejam.
Resolver as razões económicas da violência popular implicaria repensar e alterar o modelo de distribuição da riqueza, tornando-o menos chocantemente assimétrico e concentrando políticas redistributivas nos bens e serviços de primeira necessidade. Mas implicaria também que essas medidas não fossem tomadas “para o povo” mas em diálogo “com o povo”, permitindo e estimulando uma cultura política de consulta e participação.
Confesso que tenho, quanto à viabilidade destes requisitos, mais cepticismo que esperança.
Mas será óptimo se estiver enganada. É que a população de que temos vindo a falar já em 2008 e em 2010 demonstrou, com toda clareza, que se recusa a ser irrelevante.

Paulo Granjo
antropólogo, ICS – UL

Confira aqui.

1 Os anteriores protestos de 5 de Fevereiro de 2008 foram chamados “greve” por partirem de uma recusa de utilizar os “chapas”, carrinhas privadas que asseguram quase todo o transporte urbano de passageiros e cujo preço tinha aumentado. Por isso, também, as barricadas que então foram erguidas nas suas principais vias de circulação e as pedradas às viaturas que as tentavam atravessar. Entretanto, a palavra tornou-se sinónimo desse modelo de protesto, a tal ponto que, questionando eu um amigo operário acerca de uma greve que tinha ocorrido na sua empresa, ele me corrigiu enfaticamente: «Greve, não! Paralização.»
2 Antiga moeda correspondente a meio Metical (cerca de 1 cêntimo de Euro), sinónimo de pouco dinheiro.
3 Entram anualmente em Moçambique apoios externos que correspondem, conforme as estimativas, a entre 2 e 3 vezes o Orçamento Geral do Estado (este tem sido financiado directamente, entre 50 e 66%, por países estrangeiros, incluindo Portugal, representando isso 20 a 25% do total de ajuda externa recebida). Não se incluem nestes valores os elevados salários pagos, a estrangeiros residentes e a moçambicanos, por ONGs e representações de instituições estrangeiras ou internacionais.
4 Análise Social 187, 2008, West, H., “«Governem-se vocês mesmos!» Democracia e carnificina no Norte de Moçambique” (pp. 347-368) e Sumich, J., “Construir uma nação: ideologias de modernidade da elite moçambicana”, (pp. 319-345), disponíveis e http://analisesocial.ics.ul.pt/?no=101000100001
5 Granjo, P., “Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos: uma teoria moçambicana do poder
político”, Travessias, 9, 2008: 9-32, disponível em http://www.4shared.com/document/0CmbWU_Q/gemeos_albinos_e_prisioneiros_.html

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