Saturday, 27 June 2015

No país dos “my love” ainda não se chegou totalmente à paz

A face mais visível da deficiência de transportes é a proliferação de "my loves", carrinhas de caixa aberta onde a segurança é zero


Moçambique tem bons resultados macro-económicos. Mas em Maputo há transportes públicos que são uma carrinha de caixa aberta. O país tem sido considerado um modelo democrático. Mas os conflitos entre os dois partidos ameaçam a estabilidade. O que fez Moçambique nestes 40 anos de independência?


A entrada da Faculdade de Letras da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), em Maputo, as luzes da rua começam a acender. Vêem-se dezenas de pessoas a chegar. Nos pisos térreos, há jovens em grupos olhando para os ecrãs dos seus computadores portáteis. As salas de aula enchem-se de estudantes do horário pós-laboral.
É fim de dia e Chapane Mutiua, historiador e professor na UEM, especializado no Islão, acaba de falar sobre a sua própria história num dos bares da universidade. É o mais novo de quatro irmãos e o primeiro da família a entrar na universidade.
Nasceu em 1976, um ano depois da independência de Moçambique, numa altura em que a taxa de analfabetismo era das mais altas do mundo (93% em 1975), só havia uma universidade e o número de estudantes universitários era reduzido. Quarenta anos depois, Moçambique tem cerca de 50 instituições de ensino superior, entre públicas e privadas, quase 100 mil matriculados e mais de sete mil graduados (dados Ministério de Educação de 2013).
A democratização da educação é um dos “orgulhos” dos moçambicanos. Conseguiu-se diminuir a taxa de analfabetismo, embora ainda continue a ser das mais altas, com mais de 40%.      
Antes de 1975, o normal era não ir à escola. Por isso o pai de Chapane Mutiua, que nunca estudou, tornou-se “uma pessoa chave” ao incentivá-lo a estudar. Foi o irmão mais velho, professor, quem o ajudou a financiar a escola, a matriculá-lo, a comprar os cadernos. Aos 14/16 anos, Chapane Mutiua teve de se desenvencilhar porque as terras do pai estavam perdidas por causa da guerra civil (1977-1992). Já não havia posses na família. “Uma das coisas que me fez pensar que tinha que fazer negócios foi quando o meu pai teve que cortar as calças compridas para que fosse entregar a um alfaiate e fazer calções para nós” (ele e irmãos).
Aprendeu a vender bolachas, cigarros, óleo, tudo e mais alguma coisa. Comprava os produtos na economia formal e informal, depois metia-se na rua. Foi com esse rendimento que se licenciou: pagava propinas, livros, transporte, alimentava a família.
Quem passeia por Maputo vê que não há rua onde não apareça um vendedor informal. Está nos passeios com a sua pequena “montra”, mesmo em frente às lojas, a vender camisas, capulanas, sapatos, livros, ténis, até livros. Está no meio da estrada com uma banca a tiracolo a vender batatas fritas ou cigarros. Está no passeio com um carrinho de mão com produtos de higiene. Está nas casas de câmbio às esquinas das ruas, no trânsito com saquinhos de amendoins ou cajus, nas carrinhas que param com refeições prontas e marmitas para levar.
Longe de ter o peso dos grandes negócios, a economia informal é, porém, um dos pilares da economia moçambicana: estima-se que empregue entre 70 a 85% da população (conforme as projecções).
Através dela percebemos o percurso do país nestes 40 anos. Porque permitiu a professores como Chapane Mutiua continuar a estudar, e permite que quem não tem trabalho não morra à fome num país em que mais de 50% da população vive abaixo da linha de pobreza e 90% da população vive com menos de dois dólares por dia, segundo o Banco Mundial.
“É verdade que há fuga ao fisco”, diz Chapane Mutiua, mas “é preciso organizar, de modo que todos contribuam, e não tirar às pessoas aquilo que é o seu ganha-pão”, comenta, por causa das rusgas aos vendedores, feitas pelas autoridades. “Aliás, no mercado informal não beneficia só o vendedor, beneficia também o comprador”.

Uma economista à procura do negócio informal

A Avenida Joaquim Chissano em Maputo é longa e larga, e nas margens distribuem-se pequenas lojas de artigos variados como peças de automóveis. Numa das ruas perpendiculares fica um bairro onde proliferam pequenos negócios. Mesmo à beira da estrada, no passeio, Joana estende cebolas, legumes por cima de um pano. Há dez anos que vende na rua. Calcula que neste período tenha apenas duplicado a rentabilidade de dois mil para quatro mil meticais (de 50 para 100 euros).
Uns passos em frente, no alpendre de uma casa, há uma banca com os produtos que vão de cigarros a bolachas. A porta de casa de Filomena está entreaberta. Filomena não costuma fazer contas mas alimenta uma família de sete pessoas com o seu micro-negócio.
É a primeira vez que a economista Fernanda Massarongo, 25 anos, investigadora do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE), entra neste bairro por onde costuma passar de carro. Hoje faz de jornalista, entrevistando os comerciantes e mostrando como funciona a economia informal in loco. Percorre o bairro à procura das “barracas” que têm uma mistura de formalidade e informalidade em termos de organização e de prestação de contas. Tenta falar com os donos de cabeleireiros, mercearias, lojas de peças de automóveis, mas poucos querem dar a cara e explicar o seu negócio.
Helda recebe Fernanda no seu café/restaurante Descanso Tropical, um sítio que serve bebidas e refeições. Às sextas-feiras tem música ao vivo. O espaço, que era uma casa, foi comprado através de um empréstimo bancário; ela paga impostos e ordenados a duas empregadas e fica com 20 mil meticais de lucro por mês (500 euros). Começou por vender na rua, agora tem um espaço fechado, uma grande vantagem porque “ali não entra qualquer pessoa”.
Ao longo do tour, Fernanda confessa que achou interessante saber que há negócios que estão a crescer, mesmo neste sector. No Descanso Tropical a dona faz pagamentos de uns impostos e não de outros, e consegue estabelecer ligações com uma “banca que começa a ficar flexível”, nota a economista. Depois há outros negócios que funcionam sem um critério de rentabilidade ou de viabilidade, estão numa fase em que as pessoas não analisam se têm grandes lucros.
Este é um dos grandes desafios de Moçambique, 40 anos depois da independência: a necessidade de aumentar a produtividade do trabalho e de encontrar caminhos de rentabilizar este tipo de negócios, considera. “O sector informal tem que ser uma fase do sector formal, não um fim em si.” Hoje, “a economia formal e a informal alimentam-se e fica mais uma relação de ovo e galinha, não se sabe onde começa e acaba”.
Ao lado dos grandes números, estes dados do pequeno tour pela economia informal são grãos de areia. Uma estimativa do Centro de Desenvolvimento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE) prevê um crescimento de 7,5% da economia moçambicana, conduzido pelos “mega projectos e pelo investimento em grandes infra-estruturas, financiadas pelo investimento directo estrangeiro e o governo". Segundo o Financial Times, em 2014 Moçambique ocupou o quinto lugar de um ranking mundial de Investimento Directo Estrangeiro com 9 mil milhões de dólares.
Há uma prosperidade que se vê nas ruas, onde circulam carros, muitos deles topo de gama, que entopem as avenidas e artérias que dão acesso ao centro; vê-se nos prédios de dezenas de andares a serem construídos, nas lojas de marcas internacionais a abrirem, nos centros comerciais e restaurantes com gente, estrangeiros e moçambicanos. São a face visível da economia formal. 
Estamos agora no centro de Maputo, perto da baixa, com Fernanda e mais dois jovens economistas do IESE, Epifânia Langa, 23 anos, e Carlos Muianga, 29 anos. Como é que os jovens olham para estes 40 anos, os últimos dos quais vividos num período de crescimento económico? 
Moçambique é considerado um caso de sucesso por causa do seu desempenho macro-económico, lembra Fernanda Massarongo. Mas “o país apresenta essa dificuldade de traduzir ganhos de riqueza em melhoria de bem-estar”.
 Ou seja, o crescimento não se tem reflectido numa redução da pobreza, na melhoraria da qualidade dos serviços públicos, o que acaba por afectar o desenvolvimento do país, comenta Epifânia Langa, e “esse deve ser o grande desafio”.
Carlos Muianga lembra que o investimento estrangeiro está concentrado em áreas específicas, por isso, “se promove emprego é um emprego especializado e qualificado”.
À procura de melhores condições de vida nas cidades – quase 32% da população de 24,6 milhões vive em áreas urbanas – os que não arranjam emprego ingressam, assim, na economia informal. “Uma vez que nas zonas urbanas quase tudo tem que ser pago (comida, etc) o desenvolvimento da economia informal surge para responder a pressões resultantes de migrações campo-cidade mas também surge como solução para aquilo que são as expectativas que os migrantes do campo para cidade tinham em encontrar trabalho formal”, continua.
Ou seja, estes paradoxos podem “causar alguma confusão na cabeça das pessoas que todos os dias ouvem boas notícias sobre o país, mas quando olham para o seu estilo de vida vêem que esperam mais tempo no hospital, têm menos acesso aos serviços de saúde e há menos qualidade” em vários sectores, como a educação, analisa Fernanda Massarongo.
O Estado tem dificuldade em conseguir colectar os impostos de forma eficaz, acrescenta Epifânia Langa, por isso a sua capacidade de financiar serviços públicos de qualidade fica afectada. Daí a deficiência de serviços públicos como os transportes nos meios urbanos, em que até há “uma tendência para regredirmos”.


A economia informal nos transportes
Muita coisa foi feita, o país transformou-se, tem quadros, pessoas capazes de fazer algo para a melhoria das condições de vida dos moçambicanos, mas há problemas sérios nos serviços públicos, nota Carlos Muianga. Se o transporte é deficiente e a economia cresce de forma acelerada, então é preciso pensar: “Provavelmente, há um certo retrocesso na produtividade dos trabalhadores que chegam atrasados aos lugares de serviço, desmotivados pelas más condições em que são transportados. Isso influencia muito na disposição, e o país sai a perder.”
É final do dia de trabalho, hora de ponta em Maputo, por volta das 17h. As avenidas que dão acesso aos bairros periféricos enchem-se de automóveis e de transportes públicos como os chapas (mini vans), tão cheios de gente que os corpos se encavalitam lá dentro.
Os autocarros públicos quase não se vêem. Em meados de Maio, a Empresa Municipal de Transporte Público colocou cerca de 20 autocarros em circulação, aumentando a sua capacidade para 30 mil passageiros diários, lia-se no Notícias. Mas com mais de um milhão de habitantes, a cidade de Maputo precisaria de muito mais. Em 2008 e 2010 houve até greves por causa do aumento do preço dos transportes.
A face mais visível da deficiência de transportes é a proliferação dos “my love”, carrinhas de caixa aberta para onde se trepa e se vai de pé, agarrado ao passageiro do lado – por isso se chamam assim, seguindo a lógica do “agarra senão cai”. Só o nome é que tem humor, porque lá em cima, onde há vários tipos de pessoas, do camponês ao engravatado, da estudante universitária à vendedora ambulante, a segurança é zero.
Numa esquina de uma das avenidas mais movimentadas da cidade, um monte de gente espera a passagem deste transporte público – à medida que o condutor pára, lá de cima grita-se o destino. Gente mais nova e gente mais velha, homens e mulheres. A esta hora é “um caos para apanhar transporte”, explica Hanifa, camisa branca e lenço ao pescoço, estudante de ciência política. Mora a 10 minutos de casa indo de “my love” – se tivesse que apanhar transporte demorava muito mais, pois as rotas e as paragens atrasam o percurso.
Subimos para a carrinha a abarrotar, encaixados e esmagados, agarrando-nos ao ombro da mulher do lado como vimos os outros fazer. Entra poeira na carrinha. O calor, que nesta altura do ano é menos forte pois estamos em Maio, aumenta. “‘My love’ porque aqui dentro todos nos abraçamos, somos todos amor, temos medo de cair!”, explica Hanifa. “É uma questão de segurança, se me abraço estou segura”. Mas se o motorista trava de repente, não há corpo que a segure, só corpo que a ampare, e por vezes mal.
Dependendo do trajecto, paga-se sete a dez meticais ao motorista. O motorista que guia a carrinha onde agora vamos começou a fazer “my love” há oito meses: aproveitava que ia trabalhar ao final do dia e levava pessoal, muito por solidariedade, explica. Ajuda-o hoje nas contas porque consegue entre 280 a 300 meticais (entre 7 e 7,5 euros). “Estes carros andavam na zona rural, não aqui na cidade”, lembra, explicando que funcionavam como espécie de boleias. Só paga quem quer - quem não quer, pode sair e entrar sem ser notado porque o condutor mal vê quem transporta.

Capitalismo sem fase produtiva
Ao longo destes 40 anos foram feitas mudanças muito rápidas, contextualiza Carlos Nuno Castel-Branco, director de investigação no IESE. “O estado exerceu o papel de intermediário fundamental do processo de acumulação de capital, numa fase inicial com objectivos sociais mais amplos, e na fase actual para a formação de oligarquias financeiras nacionais”. Criou-se “um capitalismo que não passou pela fase produtiva, entrou directamente na fase especulativa e com marcas profundas na desindustrialização e afunilamento da base produtiva”. Ao mesmo tempo, deu-se “a destruição das expectativas para a grande maioria da população de Moçambique”.
Quando avançou com as privatizações de empresas públicas, “80%” foram “para moçambicanos”, que “não pagaram ao estado”, por isso Carlos Castel-Branco defende que esta “foi mais uma entrega”, “um subsídio implícito”. A seguir, os bancos são privatizados sob forte pressão do Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional, com o argumento de criar um sector financeiro competitivo e combater a corrupção. “Criámos um sector financeiro altamente monopolizado, como em qualquer economia, com o processo de privatização: 3 ou 4 bancos em Moçambique representam 75 % do negócio financeiro e 80% dos balcões”.
A segunda onda de expropriação foi a entrega da terra, dos recursos naturais e das grandes concessões de carvão e gás ao capital internacional como forma de atrair esse capital e de o ligar aos capitalistas nacionais, continua o economista. “O nosso cálculo mostra que o núcleo duro da economia extractiva representa 75% de todo o investimento privado feito em Moçambique nos últimos 10 anos, 50% da taxa de crescimento do PIB e 90% das exportações de Moçambique - é onde há uma grande concentração, e as infra-estruturas e serviços à volta absorvem o resto”.
Por outro lado, há um processo de endividamento público muito acelerado (“a dívida pública externa está a crescer á volta de 10,5% ao ano, a dívida pública interna está a crescer quatro vezes mais depressa do que o PIB”). Isto garante a redução de custos para o grande capital, mantém-no interessado em ir para Moçambique apesar dos grandes custos das explorações minerais, defende.
Neste momento cerca de 30 % de todo o crédito à economia dado pelo sistema financeiro doméstico é compra de títulos de governo, e isto é equivalente a todo o dinheiro que o sistema financeiro doméstico dá à indústria, agricultura, transportes e construção, tudo junto, assinala o economista.
 
Quem passeia por Maputo vê que não há rua onde não apareça um vendedor informal

Por isso, critica: “Subsidiamos o capital multinacional através dos incentivos fiscais, das infra estruturas que lhes entregamos, da dívida e das expropriações a baixo custo. Mas sempre dizemos que não podemos subsidiar a produção de comida para o mercado doméstico porque isso gera um sector não competitivo; conseguimos hipotecar o futuro do país para viabilizar a grande indústria mineral e energética mas não conseguimos subsidiar a produção de comida para relançar a produção de comida para o mercado doméstico. Se conseguirmos produzir comida a baixo custo e fazê-la circular a baixo custo é possível elevar a qualidade de vida das pessoas que trabalham, sem necessariamente colocar pressões grandes sobre os seus salários”.
Na verdade, as importações de produtos agrícolas e alimentares têm crescido a taxas superiores a 10%, e importa-se mais do que se produz. Mesmo assim, a agricultura é o sector que mais emprega segundo a União Nacional de Camponeses (UNAC) – cerca de 65% da população, incluindo a cadeia de valores, diz Luís Muchanga, há 15 anos na UNAC. A produção interna não consegue satisfazer a procura: “Os últimos dados estatísticos indicam que em cada família de camponeses a produção para subsistência só consegue num parâmetro de sete a oito meses; o que significa que existem entre quatro a cinco meses de stress alimentar; até podíamos não importar nada, mas isso tem a ver com a política nacional.”
Os direitos sociais: prioridade
 “Liberalizámos a economia mas não criámos as condições para que o cidadão chegasse até lá”, comenta Custódio Duma, advogado, presidente da Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), que olha com preocupação o crescimento da economia informal. “Não conseguimos criar condições para os cidadãos participarem na economia de uma forma activa, nem que beneficiem dela directamente”.
Para participar e competir é preciso ter requisitos: formação, informação, condições económicas… Até mesmo para as pessoas formadas e informadas há dificuldades, por exemplo, no acesso ao crédito. “A nossa economia ainda não é para o cidadão porque exclui boa parte das pessoas - posso dizer que entre 50 a 70% da população moçambicana não consegue reunir requisitos para entrar para a economia formal”.
Preocupa-o o facto de, na economia informal, haver muita insegurança: entre os próprios trabalhadores, na actuação dos municípios que muitas vezes recorrem à força para expulsar os vendedores e na vulnerabilidade a ataques e roubos. “Há muita violação dos direitos humanos, até porque o estado não tem condições de controlar essa economia. Muitas das pessoas que estão na economia informal aderem sem conhecer os seus direitos e acabam sendo vítimas desse processo”.

 
O país tem sido considerado um modelo democrático mas os conflitos entre os dois principais partidos ameaçam a estabilidade

Este é, porém, um dos aspectos que preocupam o defensor dos direitos humanos. Olhando para estes 40 anos, lembra que hoje está assegurada a liberdade de opinião e de expressão, algo que não existia logo a seguir à independência com o regime de partido único, mas neste momento a grande preocupação são os direitos sociais. “É só olhar para o índice de mortalidade infantil: cerca de 50% das crianças morrem porque as mães não tiveram atendimento adequado; o número de pessoas que tem uma única refeição por dia continua a subir; os últimos relatórios dizem que 60% não tem acesso a estrutura sanitária devidamente organizada e isso sabemos que tem ligações com a saúde…”. Ou seja, “o governo precisa de direccionar as suas prioridades para as questões sociais; o índice de corrupção é muito elevado e impede que o investimento público chegue ao cidadão; precisamos de criar um sistema que elimine as práticas de corrupção dentro das instituições públicas para que o cidadão beneficie dos ganhos económicos do país”, defende. 
No mais recente Índice de Desenvolvimento das Nações Unidas de 2014, Moçambique está entre os 10 países menos desenvolvidos. No Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional ocupa o 119º em 175 países. Para isso contribuem várias esferas da sociedade, nomeadamente a polícia. A própria equipa de reportagem do PÚBLICO foi alvo de uma tentativa de extorsão ao ser parada por um agente, quando caminhava na rua à noite. O oficial pediu os documentos de identificação e ao ver que não os recebia sugeriu resolver “esta confusão” com dinheiro. “Somos três”, insinuou. Depois de ameaçarmos ligar para a embaixada de Portugal, os oficiais “dispensaram” finalmente a equipa, embora a custo.
Défice democrático
A seguir à independência em 1975, Moçambique adoptou um sistema marxista-leninista liderado pela Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), aliado soviético e nascido do grupo que tinha combatido contra o colonialismo português. Mas instalou-se uma guerra civil de 16 anos com a Renamo (Resistência Nacional Moçambicana) – o primeiro Presidente Samora Machel morreria em 1986 num acidente de avião mas nem por isso o conflito parou. Joaquim Chissano sucedeu-lhe e seria um dos arquitectos da paz em 1992, depois da morte de um milhão de pessoas e outros milhões de deslocados. Tornou-se o vencedor das primeiras eleições multipartidárias em 1994. Ficaria dois mandatos até 2004, quando Armando Guebuza lhe sucedeu. Em Outubro de 2014, Filipe Nyusi assumiu o cargo – também pela Frelimo.
Apesar da evolução nos últimos anos, a construção do estado ainda está em curso e tem défice de presença em áreas como a social, analisa José Jaime Macuane, politólogo, professor na Universidade Eduardo Mondlane, e associado da consultora MAP (centrada na área de gestão pública, governação e desenvolvimento, tem como um dos clientes o governo, mas não é o principal, diz).
“A independência política e a possibilidade do país se auto-determinar foi o principal ganho dos últimos 40 anos”, sublinha. “A democratização poderia ter sido muito mais efectiva e intensa. Formalmente somos um país democrático mas pelo nosso percurso histórico – primeiro, pela visão centralista do estado que adoptámos no pós-independência, e mais tarde pelo conflito militar - tivemos défice de uma classe política com valores democráticos profundos. Isto sem dúvida influenciou este ligeiro atraso no processo de democratização”, analisa no seu escritório no centro de Maputo.
À sociedade falta a exigência de responsabilização dos políticos que elege, porque o sentido de responsabilidade foi sendo construído em torno de uma ideia de estado centralista, considera o politólogo. “Os políticos cultivaram muito a ideia de um estado que decide de forma centralizada mas não tem a cultura de negociar aquilo que decide com a sociedade. Isto faz com que as pessoas ainda vejam o estado como esta entidade abstracta, mas é algo que está a mudar”.

 
“A nossa economia exclui boa parte das pessoas", diz Custódio Duma, presidente da Comissão Nacional dos Direitos Humanos 

Por outro lado, depois dos acordos de paz em 1992, critica o escritor Calane da Silva, imitou-se o modelo multipartidário europeu em vez de se criar um modelo próprio. “Hoje andamos à pancada porque tendo um país com sete etnias e 23 línguas devíamos criar mecanismos para nos aglutinar em frentes essenciais que é a educação, saúde, economia.” A alternativa? “Criar um modelo a discutir entre nós, nosso, diferenciado, onde houvesse menos assimetrias ao nível do país.”
Se o país atravessou fases difíceis, também conseguiu ultrapassar dois processos importantes, sublinha Tomás Vieira Mário, presidente do Conselho Superior da Comunicação Social: o de paz e o da democratização. “No cômputo geral é um modelo de como se vai da guerra à paz e daí para a democracia. Conseguimos desde 1994 fazer todas as eleições previstas na constituição e todos os presidentes saíram do poder no fim do mandato – é um feito na região e que inquieta alguns vizinhos. Isto é um ganho muito importante: a ideia de que não se pode apegar ao poder, tem que sair. É um bom modelo que Moçambique está a dar aos vizinhos”.
Apesar de os índices de liberdade de expressão terem baixado, o director do semanário Savana Fernando Lima defende que a comunicação social é livre e que Moçambique vive um clima de liberdade de expressão. “Um país com estas contradições e problemas sempre teve um sector muito agressivo no sentido de pugnar pelos seus direitos fundamentais. Isto é exemplificado pelo número de canais de televisão. Há oito canais de televisão, embora muitos sejam um quartinho e uma câmara, mas isso mostra que há condições.”
A falta de consenso entre os partidos
Pelo menos em Maputo não são visíveis sinais de forte propaganda política do governo, nem de culto ao chefe de estado, como em alguns países com tendências totalitárias. Embora seja frequente ver a imagem do presidente nas instituições públicas.
No Parlamento estão representadas as forças políticas com 144 deputados da Frelimo, 89 da Renamo e 17 do MDM. Na manhã de uma sessão parlamentar o acesso ao edifício faz-se sem grandes dificuldades: passa-se o sistema de segurança, registamo-nos, sem filas. Alguns deputados conversam nos corredores. Os altifalantes transmitem o debate no hemiciclo.
Por agora, a situação política parece mais normalizada, após um período de conflito de quase dois anos, entre 2012 e 2014, que levou o líder da Renamo desde 1979, Afonso Dhlakama, a regressar à antiga base do partido na zona da Gorongosa e a anunciar o fim do Acordo de Paz de 1992.
Apesar de ter sido anunciado o fim do conflito, as eleições gerais de Outubro de 2014 foram contestadas por Dhlakama. Porém, as missões internacionais de observadores consideraram que foram credíveis. Só que os índices de democracia como o da Freedom House colocam o país agora como “parcialmente livre”.
Este é um tema sobre o qual poucos falam espontaneamente, talvez para não acordar fantasmas. A verdade é que os dois grandes partidos continuam num impasse desde as eleições e não chegam a consenso, nomeadamente sobre o anteprojeto das autarquias provinciais proposto pela Renamo – a Renamo quer a criação de autarquias nas províncias onde teve o maior número de votos.
 
Ivone Soares, 35 anos, líder da bancada parlamentar da Renamo, recebe-nos no Parlamento. É uma jovem convicta, sem hesitação nas frases. Acusa o governo de actuar “como colono”, e de não aceitar “quem pensa diferente”. “Na prática ainda existem sequelas do regime totalitário da Frelimo”, acusa. O ponto mais discordante entre os dois partidos continua a ser os resultados eleitorais. A deputada reconhece o risco “de conflito, sim, porque os problemas não estão a ser resolvidos”. Mas esse não é um risco da Renamo: “O que a Renamo está a fazer é traduzir em texto aquilo que são as vontades da população que nos elege. Temos uma bancada com 89 deputados, seríamos muito mais se não houvesse tanta irregularidade. E, no entanto, quem acalma a situação é o presidente Dhlakama - se quisesse uma solução armada não estaríamos no cenário de passividade em que se está.”
A Renamo exige a despartidarização do estado. “Tinha que haver uma unificação das forças e cargos de chefia distribuídos de forma equilibrada, mas a integração dos nossos homens nunca chegou a ser efectiva”.
No lado oposto, António Niquice, 37 anos, deputado da Frelimo, nega que as eleições tenham tido irregularidades, e acusa a oposição de “violar a Constituição mantendo homens armados”. “Uma das coisas que tem transmitido este sentido de insegurança e de instabilidade tem a ver com a génese da Renamo que a todo o custo pretende ascender ao poder - e não por via das eleições”. A Frelimo, defende, tem uma liderança “muito clarividente”: “O presidente tem estado a liderar uma agenda pacifista, privilegiando o diálogo. E, naturalmente, entendemos que a única alternativa à paz é a própria paz. Nesse contexto acredito que todas as diferenças eventuais deverão ser solucionadas por via do diálogo - este é o caminho que a Frelimo tem estado a seguir.”
Do MDM (Movimento Democrático de Moçambique), Laurinda Sílvia Cheia comenta: “Sentimos que para as pessoas que estão na oposição não há liberdade de votar. Aquele que é da oposição sai de casa nas eleições preparado para a guerra. Isso mancha o processo eleitoral, por isso se diz que as eleições não são justas nem transparentes”.
A posição da Frelimo deveria ser clara, o partido deveria “fazer tudo o que está ao seu alcance” para que o processo eleitoral decorra da forma mais justa e livre possível, defende, também no Parlamento. “No fim do dia quem sofre é a própria população: o nível de vida sobe, o transporte de bens e produtos é complicado. Há população que abandonou a escola por causa deste medo e as pessoas estão a voltar para cidade, voltam para a cidade e não têm emprego.”



A reconciliação que ainda não se deu


O táxi não encontra o número da porta que lhe damos. Estamos em Sommerchield, dos bairros mais chiques de Maputo. O homem vai olhando para a esquerda e para a direita até que diz qualquer coisa como: “Ali não pode ser, é a casa de Chissano.”
É mesmo aí que queremos parar. Chamamos o guarda à porta, afinal o escritório é uns metros mais à frente. A segurança conduz-nos à sala onde o primeiro presidente de Moçambique eleito democraticamente há-de aparecer passado uma hora.
Uma voz pausada, tranquila vem do homem que esteve mais tempo no poder em Moçambique até agora, que poderia ter ficado mais um mandato mas saiu pelo próprio pé. Hoje tem uma fundação e dedica-se à agricultura.
Afinal, o que pensa um dos arquitectos da paz do impasse em que estão os dois partidos, 40 anos depois da democracia, 23 anos depois dos acordos? O que pensa da acusação ao seu partido de não ter proporcionado eleições livres? Pausadamente, Joaquim Chissano responde: “A questão é: quem decide que as eleições não são livres e que há fraude? Evidentemente tem que se colocar um árbitro. Haver regras de jogo é isto: ganha quem ganhou. Há um árbitro que se chama Comissão Nacional de Eleições. E tendo sido constituída por consenso de todas as partes, e onde todas as partes estão representadas, há muito pouco espaço para se queixar do árbitro.”
Na sala que dá para um jardim onde há uma piscina, Chissano passa em revista vários momentos históricos para chegar à análise do presente. Lembra que mesmo depois da entrada da Frelimo na direcção do país em 1975 Moçambique teve que “lidar com o problema colonial”. Ao mesmo tempo, continua, os países vizinhos queriam defender as “suas políticas de segregação racial, de domínio da maioria sobre as minorias e isso conduziu à guerra, que chamo de desestabilização. Porque era isso mesmo que queriam: destabilizar Moçambique”. “Queriam que ficasse claro que o negro não podia governar e aí tudo o que puderam fazer para que houvesse desestabilização, fizeram. Tivemos que lidar primeiro com este inimigo, que eram os regimes racistas nossos vizinhos e as facções pequenas que não aceitavam a descolonização. O diálogo entre os moçambicanos começa mais tarde, depois de se resolver este problema.”
Porém, “ficaram forças residuais armadas do que chamaríamos rebeldes - desmobilizaram e não se desarmaram e isso criou a necessidade de haver um diálogo continuado”.
Passados 40 anos, é verdade que ainda não se atingiu a reconciliação em Moçambique. Mas há que “clarificar: é preciso a reconciliação na população”, defende. “Ainda existem ressentimentos. Muita gente perdeu familiares e sofreu sevícias. E essa reconciliação tem que ser completada: a reconciliação entre partidos, a aceitação do jogo democrático.”
Está por cumprir, assim, a pacificação. “A paz tem que continuar a ser promovida, não se pode dizer que estamos em paz e ponto final.”
Quarenta anos depois da independência, “é preciso criar uma cultura de paz”.

 





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