Wednesday 3 June 2009

Gurué: Aquilo que o Presidente Guebuza deveria ter ouvido


Feitiçaria, medo, inveja, bem como o prazer de ver o próximo também a sofrer, são os temas que muitos residentes do Guruè gostariam que o estadista moçambicano, Armando Guebuza, tivesse abordado com uma maior contundência durante o comício por ele orientado durante a sua “Presidência Aberta” naquele distrito.
Localizado cerca de 350 quilómetros norte de Quelimane, capital da província da Zambézia, Centro de Moçambique, Guruè ocupa uma área de 5.688 quilómetros quadrados e possui uma população calculada em 303 mil habitantes, tendo como principal actividade a agricultura, sobretudo a produção de chá, milho e batata.
Para quem nunca teve a oportunidade de visitar este distrito, Guruè é simplesmente de uma beleza deslumbrante. Bem explorado, poderia ser considerado de um pequeno “Jardim do Éden”.Dizem os residentes que nesta terra é possível semear virtualmente tudo.
Talvez seja a razão pela qual Guebuza considera Guruè de “Terra da Revolução Verde”.
Neste texto, a intenção não é tentar descrever um cenário ideal para um filme de terror ao estilo de Alfred Hitchcock, mas sim os problemas que afectam os residentes do distrito de Guruè, e que constituem um grave entrave para o desenvolvimento acelerado.Aliás, não foi por acaso que o próprio Presidente moçambicano dedicou parte considerável do seu discurso para abordar estes temas, mas não com a profundidade que, para alguns residentes de Guruè, seria de desejar.
De facto, é incompreensível que, ocupando uma área vasta e dotada de um potencial agro-pecuário fabuloso, razão pela qual também e’ considerado o“celeiro da Zambézia”, o distrito de Guruè tinha apenas um efectivo pecuário constituído por apenas 168.314 de animais de diversas espécies em 2008.Mais surpreendente é o facto de este numero incluir somente 814 cabeças de gado bovino.
“Em 2004, o efectivo pecuário evoluiu de 46.307 unidades de diversas espécies para 168.314 unidades em 2008, registando-se um aumento de 122.007 unidades. Do total do efectivo, cerca de 814 e’ gado bovino”, lê-se no Informe do Distrito de Guruè, apresentado durante a Sessão Extraordinária do Governo Distrital, alargada aos membros do Conselho Distrital e que foi orientada pelo Chefe de Estado.

MEDO DE FEITIÇARIA É UM CASO SÉRIO

Isso mesmo. Muita feitiçaria, pelo menos essa é a conclusão que a equipa de reportagem da AIM chegou após uma longa conversa mantida com um grupo de residentes de Guruè, incluindo um líder comunitário.
Inicialmente, a AIM apenas pretendia aferir o impacto da visita do estadista moçambicano na atitude dos residentes, quando para o seu espanto, durante a conversa alguns dos entrevistados asseveraram que o combate a pobreza será uma missão muito difícil, pois muitos “guruenses’ detestam ver o seu próximo a progredir e prosperar na vida.
“O HPI (Heifer Project International) é um projecto ligado a agricultura e que recentemente estava a distribuir cabritos nas localidades. Eles dão uma fêmea e um macho. Depois de procriarem, as crias devem ser entregues a uma outra família. No caso de cabeças de gado bovino, o HPI cede por empréstimo duas fêmeas e um macho. Após a sua reprodução estas cabeças devem ser devolvidas para beneficiarem uma outra família e assim por diante”, explicou um dos entrevistados, para de seguida afirmar que esta iniciativa poderá estar condenada a um fracasso, pois as crias poderão morrer ou ficar estéreis.
De seguida, a AIM perguntou se, eventualmente, uma outra pessoa estranha a região tomasse a decisão de se estabelecer neste distrito, também corria os mesmos riscos no caso de conseguir uma oferta no âmbito do projecto da HPI, uma organização não governamental.
Será que as fêmeas dessa pessoa também não se vão reproduzir? questionamos.
“Depende da zona em que essa pessoa quiser se estabelecer. Se não existir ódio você pode-se estabelecer à vontade, e sem nenhum problema. E’ por causa do ódio e da inveja que existe aqui na sede do distrito que e’ difícil ver uma casa com cabritos. Quando alguém tem cabritos isso acaba criando um sentimento de ódio no vizinho (que não cria cabritos), razão pela qual ele acciona um mecanismo (feitiçaria) para inviabilizar o projecto do seu vizinho de forma a deixar de ter esses cabritos”, disse um dos entrevistados, explicando que “também podem dar um veneno para matar os cabritos, ou invadir o curral (roubar os cabritos)”.
Por mais estranho que pareça, um cabrito custa em média entre 600 a 700 Meticais em Guruè, uma região em que o gado deveria ser uma das principais fontes de rendimento.
Para melhor esclarecer o caso, perguntamos de seguida: mas se o vizinho não quiser trabalhar, será o mesmo que não deixa os outros progredir na vida porque ele é preguiçoso?
“Sim”, foi a resposta dos entrevistados em uníssono, explicando que esse é o maior problema.
“Não e’ bem assim. Eles não se recusam a trabalhar. O verdadeiro problema é a falta de emprego”.
Mas como resolver esse problema?, questionamos.
A resposta foi, “não temos outra maneira. A saída que existe é uma maior intervenção do Governo, aconselhando constantemente a população e conceder um maior apoio ao distrito”.
Insistindo, perguntamos se esta situação afecta apenas o distrito do Guruè ou toda a província da Zambézia.
Como resposta, os entrevistados disseram que existem algumas regiões que estão livres deste problema, citando como exemplo o distrito de Morrumbala.
“Por exemplo, em Morrumbala é difícil roubar cabritos. Eles deixam os cabritos a pastar livremente, sem o receio de acontecer qualquer tipo de mal aos seus animais”.
Mudando um pouco de tom da conversa, questionamos se existia a ocorrência de casos similares de “feitiçaria” na actividade agrícola.“Sim, isso também acontece. Mesmo quando existe muita chuva você pode não colher nada”, foi a resposta.
“Se o jornalista vê milho a crescer e’ porque existe uma 'guarnição' naquela machamba, do próprio dono, do camponês”, explicou um dos interlocutores.Segundo as fontes, não existe nenhum problema em solicitar um terreno em Lioma (um dos postos Administrativos de Guruè) e requerer um terreno paraabrir uma machamba.
“Você vai semear milho que depois de germinar bem você vai pensar que vai ter uma boa colheita de milho”, contou.
Contudo, explicou um dos entrevistados, “vai chegar a uma fase em que toda a sua cultura vai começar a murchar sozinha, e não ter nada quando chegara época de colheita”.
Porém, era muito difícil compreender esta situação, razão pela qual quisemos ouvir dos próprios residentes uma proposta para o combate a pobreza que, aliás, era o objectivo principal desta “Presidência Aberta” de Armando Guebuza, que já o levou a escalar nas últimas semanas as províncias de Niassa, Nampula, Cabo Delgado, Zambézia e Tete.Para acabar com o problema e’ preciso arranjar emprego para toda a gente, foi a resposta.“Essa história de inveja surge porque existem pessoas que trabalham enquanto outras estão desempregadas. Por isso, existe o ódio. Portanto, se todas as pessoas estivessem a trabalhar ninguém teria tempo para pensar em maldade”, acrescentou um dos intervenientes.
Para melhor elucidar, o grupo citou como exemplo o caso das machambas.
“A extensão de uma machamba depende da força de cada um. Existem pessoas que podem abrir uma machamba com uma área de 1,5 ou dois hectares. Mas também existem outros com forças para abrir uma machamba com uma área de 8 a 10 hectares”, explicaram.
Então, aquele que abriu uma machamba com mais ou menos 1,5 hectares acaba por se sentir mal, porque ele sabe que o seu vizinho tem a possibilidade de fazer uma machamba grande. Então, é a partir daí que começam a surgir problemas e ódio, acrescentaram.
“É precisamente nessa situação que começa a surgir o problema de ódio. E como ele não tem a possibilidade de fazer uma machamba grande, então começa a surgir o problema de droga (feitiçaria)”.Um outro interveniente explicou ter adquirido um aparelho de vídeo e um gerador de energia para abrir um videoclube em sua casa.
“Mas não estou conseguir avançar por causa do ódio. O gerador começou a ter problemas. Posso abastecer o gerador, mas o mesmo recusa-se a funcionar. Mas quando estou apenas com os meus filhos, o gerador trabalha sem nenhuma deficiência. Mas quando coloco o gerador no videoclube, o mesmo recusa-se a arrancar. Esse e’ o problema de ter vizinhos que não fazem nada. E’ um problema muito sério”, desabafou.
Resistimos a desarmar, razão pela qual voltamos a carga perguntando:Mas aquilo que o Presidente disse no comício – contra a feitiçaria, inveja e ódio – será que vai resultar?
“Não vai resultar!”, foi a resposta do grupo em uníssono.
“Não vai resultar. É um problema sério, sobretudo aqui na Zambézia”, acrescentou o grupo.
Mesmo assim, continuamos a matutar no caso, razão pela qual acabamos por interpelar Nelson Armando, líder comunitário (régulo) de Namacala, uma região localizada a cerca de 15 quilómetros de Guruè.Ao régulo de Namacala, que também participou no comício orientado por Guebuza, colocamos exactamente as mesmas questões que apresentamosanteriormente ao grupo.
“Existem pessoas que vão aos curandeiros para tratar a sua machamba. Até porque e’ possível encontrar uma pessoa (fantasma) de pé em muitas machambas”, referiu, acrescentando que a solução para o problema da feitiçaria talvez e’ aquilo que o Presidente disse, quando apelou para um maior diálogo e comunicação entre as pessoas.Esta é uma terra muito rica, disse o régulo, explicando que aqui sai muito feijão manteiga, milho e mapira.
“Aqui e’ possível semear tudo”, rematou.Como proposta, aquele responsável comunitário sugere que para acabar com todos estes problemas o Governo devia convocar uma reunião geral com todos os régulos e secretários a nível do distrito.É verdade que Guebuza abordou o problema de feitiçaria e inveja, mas os “gurenses” queriam ouvir mais. Querem uma maior intervenção do Presidente da Republica, pois o medo, ódio e inveja estão a travar o desenvolvimento deste distrito potencialmente rico.
Refira-se que este problema, de feitiçaria, não se restringe ao distrito de Guruè, pois afecta todo o país e mesmo muitas regiões do continente africano e do resto do mundo, tais como a Ásia e América do Sul e América Latina.
Independentemente das crenças de cada um de nos, este é um problema que não será resolvido apenas com uma simples retórica materialista, pois no nosso caso concreto, Moçambique, faz parte da nossa cultura, sendo também uma prática milenar.
Por isso, urge a tomada de outras soluções mais pragmáticas, exequíveis e funcionais, tais como bem tentou o Chefe de Estado moçambicano durante o seu discurso em Guruè e na maioria dos distritos que escalou durante esta “Presidência Aberta”, apelando ao diálogo e solidariedade entre os cidadãos.
Urge ainda apelar e educar aos que (se) de facto possuem esses poderes “sobrenaturais” usá-los para o bem de toda a sociedade e não para prejudicar o próximo.

( Elias Samo Gudo, da AIM, 01/06/09 )

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