Chamo-me Hélder Gune, natural de Zavala, posto administrativo de Zandamela, localidade de Canda, povoado de Gune. Tive a sorte de lá nascer e passar os primeiros anos da minha infância. Hoje tenho 34 anos de idade.
Como é habitual, passo sempre a quadra festiva na minha terra natal junto dos meus pais e demais parentes. 2010 não foi excepção. No último dia do ano, decidi passear pela zona do oceano Índico lá para as bandas de Canda; para tal convidei um familiar meu que é bem conhecedor e coincidentemente trabalhador de um turista “explorador” da praia. Saímos de casa por volta das 5H da manhã e em meia hora já lá estávamos a chegar ao nosso destino. Para o meu espanto, fui confrontado com uma cancela e um guarda de raça negra uniformizado que me exigiu o preenchimento de um mapa de controlo de entradas e saídas na praia de Canda. Aceitando sujeitar-me ao tal procedimento, verifiquei que praticamente o documento tinha sido pouco usado mas não querendo aborrecer o compatriota, obedeci a exigência e assim foi aberta a cancela e passei com a minha viatura. Ora, uns 200 metros depois da cancela, fui novamente interpelado por um outro guarda impedindo a minha passagem e orientando que usasse uma outra via porque aquela era restrita e “proibida”. Agastado com a situação, não obedeci a última ordem e pus me a andar em direcção da praia. A medida que ia andando, cheguei a pensar que o local que me estava sendo proibido de chegar, eventualmente poderia não ser propício para viaturas ou outros equipamentos pesados mas, para o meu espanto, ao chegar na praia propriamente dita encontrei uma multidão de pessoas de raça branca com suas viaturas e enormes embarcações. Notei um evidente mau estar dos “donos da praia de canda” mas tiveram o cuidado de não me confrontar directamente, mandatando seus empregados para me convidar a abandonar o local porque, segundo eles, era proibido para indivíduos de raça negra. Quase me caíram lágrimas da situação que eu estava vivendo na terra que me viu nascer e pior, vendo meus compatriotas instrumentalizados a troca do nada. Ainda que fisicamente não tenha visto nenhuma placa de “no black allowed” certamente esta placa estava bem estampada na mentalidade daqueles moçambicanos…
Em conversa com o meu guia, fiquei a saber que os exploradores da praia de Canda tinham obtido autorização de um elemento importante do regulado da zona que, segundo meu guia “…mensalmente recebe dos brancos um saco de arroz e cabeças de peixes”. O resto dos meus conterrâneos trabalhadores da praia, auferem todos um salário mensal de 2.000,00MT, independentemente da especialidade ou tarefa que cada um desempenha. E mais, fiquei a saber que todas as populações das povoações de regulado de Canda tinham acesso muito restrito ao mar para as várias das suas necessidades, quer para a pratica de rituais tradicionais ou religiosos, quer para a prática de pesca artesanal ou até para o lazer que é o direito que a natureza presenteou as populações daquela região do pedaço da “pérola do Indico”.
As primeiras horas do último dia de 2010 foram tão tristes para mim que acabaram por afectar a minha disposição durante todo dia e até a afectar a avaliação positiva das minhas realizações anuais. Enfim, tentei me acalmar e regressar a casa. Contei aos meus pais e outros familiares que secundaram dizendo que eles já estavam conformados com a situação. Como a minha família havia feito o compromisso de oferecer consultas médicas gratuitas aos idosos de Gune, um dos senhores que estava a espera de ser atendido comentou que, por não ser permitido a realização de habituais rituais tradicionais e pelas sabotagens feitas nas rochas pelos actuais “donos da praia”, já não era possível a extracção de mexilhão “tikhuluvita” nem aquele gostoso peixinho espetado em paus “sihaka so simelwa” que até alguns anos atrás consumíamos no caril de amendoim com arroz, “chima” ou “ralé”.
Fiquei todo dia a pensar no assunto e veio me na mente a consciência do quão pobres e miseráveis somos nós moçambicanos. Com a infertilidade das terras daquela zona do País que é semelhante a de muitas, uma das alternativas de geração de rendimento e subsistência das populações para a minimização da pobreza são os recursos marítimos que estão aos dispor de todos, pelo menos os nativos daquela região específica cujos rendimentos totais superariam de longe os míseros 2.000,00MT que são auferidos por algumas dúzias de moçambicanos. Tomei a consciência de que, de facto a muito tempo que não via “tikhuluvita” nem “xihaka so simelwa”. Todos nativos daquela zona sabem do que estou a falar e me desmintam se estiver a mentir, pode ser azar meu de não calhar com aqueles mariscos característicos de Zavala. Os actuais “donos” da praia usam e abusam de tudo e todos, consomem o melhor marisco e levam consigo quantidades industriais… e o que resta para o coitado de moçambicano para além de humilhação e mais pobreza?
Faço tantas perguntas e não consigo obter resposta. Que orgulho e auto estima temos nós se alienamos de forma vergonhosa e irracional os recursos naturais? Que combate a pobreza absoluta de que tanto falamos e escrevemos nos planos macroeconómicos e proferimos nos nossos discursos? Porque tombaram na luta de libertação nacional os melhores filhos desta Pátria? Os nossos heróis (Eduardo Mondlane, Belmiro Obadias Muanga, Filipe Samuel Magaia, Josina Machel, Samora Machel, entre tantos milhares de moçambicanos) não sacrificaram suas vidas para libertar a terra e os homens?
Acredito que o episódio aqui narrado é uma realidade não só na praia de Canda, mas um pouco por todo país. O problema é que nós somos demasiadamente pacíficos e conformados… mas até quando vamo-nos calar e até quando quem de direito vai tomar as rédeas e repor a dignidade que o humilde povo moçambicano merece?!
A 5 séculos atrás, no período pré-colonial, os nossos antepassados entregaram a terra e os homens (escravos) a troco de tecidos, missangas, especiarias e outras mesquinhices… Hoje entregamos as nossas riquezas por meia dúzia de acções em empresas sem grande expressão económica nem retornos reais para os africanos… mais engraçado e mais triste ainda é que na minha terra, entregam-se as melhores praias a troco de saquitos arroz e cabeças de peixe…
Fiz a minha “partinha”! Pouco mas é alguma coisa que me conforta um pouco a alma!
“Não estará a repetir-se a história???...”
Recebido via e-mail. Sobre este assunto, leia um texto do António Botelho de Melo, intitulado "Preto aqui não entra", aqui.
Como é habitual, passo sempre a quadra festiva na minha terra natal junto dos meus pais e demais parentes. 2010 não foi excepção. No último dia do ano, decidi passear pela zona do oceano Índico lá para as bandas de Canda; para tal convidei um familiar meu que é bem conhecedor e coincidentemente trabalhador de um turista “explorador” da praia. Saímos de casa por volta das 5H da manhã e em meia hora já lá estávamos a chegar ao nosso destino. Para o meu espanto, fui confrontado com uma cancela e um guarda de raça negra uniformizado que me exigiu o preenchimento de um mapa de controlo de entradas e saídas na praia de Canda. Aceitando sujeitar-me ao tal procedimento, verifiquei que praticamente o documento tinha sido pouco usado mas não querendo aborrecer o compatriota, obedeci a exigência e assim foi aberta a cancela e passei com a minha viatura. Ora, uns 200 metros depois da cancela, fui novamente interpelado por um outro guarda impedindo a minha passagem e orientando que usasse uma outra via porque aquela era restrita e “proibida”. Agastado com a situação, não obedeci a última ordem e pus me a andar em direcção da praia. A medida que ia andando, cheguei a pensar que o local que me estava sendo proibido de chegar, eventualmente poderia não ser propício para viaturas ou outros equipamentos pesados mas, para o meu espanto, ao chegar na praia propriamente dita encontrei uma multidão de pessoas de raça branca com suas viaturas e enormes embarcações. Notei um evidente mau estar dos “donos da praia de canda” mas tiveram o cuidado de não me confrontar directamente, mandatando seus empregados para me convidar a abandonar o local porque, segundo eles, era proibido para indivíduos de raça negra. Quase me caíram lágrimas da situação que eu estava vivendo na terra que me viu nascer e pior, vendo meus compatriotas instrumentalizados a troca do nada. Ainda que fisicamente não tenha visto nenhuma placa de “no black allowed” certamente esta placa estava bem estampada na mentalidade daqueles moçambicanos…
Em conversa com o meu guia, fiquei a saber que os exploradores da praia de Canda tinham obtido autorização de um elemento importante do regulado da zona que, segundo meu guia “…mensalmente recebe dos brancos um saco de arroz e cabeças de peixes”. O resto dos meus conterrâneos trabalhadores da praia, auferem todos um salário mensal de 2.000,00MT, independentemente da especialidade ou tarefa que cada um desempenha. E mais, fiquei a saber que todas as populações das povoações de regulado de Canda tinham acesso muito restrito ao mar para as várias das suas necessidades, quer para a pratica de rituais tradicionais ou religiosos, quer para a prática de pesca artesanal ou até para o lazer que é o direito que a natureza presenteou as populações daquela região do pedaço da “pérola do Indico”.
As primeiras horas do último dia de 2010 foram tão tristes para mim que acabaram por afectar a minha disposição durante todo dia e até a afectar a avaliação positiva das minhas realizações anuais. Enfim, tentei me acalmar e regressar a casa. Contei aos meus pais e outros familiares que secundaram dizendo que eles já estavam conformados com a situação. Como a minha família havia feito o compromisso de oferecer consultas médicas gratuitas aos idosos de Gune, um dos senhores que estava a espera de ser atendido comentou que, por não ser permitido a realização de habituais rituais tradicionais e pelas sabotagens feitas nas rochas pelos actuais “donos da praia”, já não era possível a extracção de mexilhão “tikhuluvita” nem aquele gostoso peixinho espetado em paus “sihaka so simelwa” que até alguns anos atrás consumíamos no caril de amendoim com arroz, “chima” ou “ralé”.
Fiquei todo dia a pensar no assunto e veio me na mente a consciência do quão pobres e miseráveis somos nós moçambicanos. Com a infertilidade das terras daquela zona do País que é semelhante a de muitas, uma das alternativas de geração de rendimento e subsistência das populações para a minimização da pobreza são os recursos marítimos que estão aos dispor de todos, pelo menos os nativos daquela região específica cujos rendimentos totais superariam de longe os míseros 2.000,00MT que são auferidos por algumas dúzias de moçambicanos. Tomei a consciência de que, de facto a muito tempo que não via “tikhuluvita” nem “xihaka so simelwa”. Todos nativos daquela zona sabem do que estou a falar e me desmintam se estiver a mentir, pode ser azar meu de não calhar com aqueles mariscos característicos de Zavala. Os actuais “donos” da praia usam e abusam de tudo e todos, consomem o melhor marisco e levam consigo quantidades industriais… e o que resta para o coitado de moçambicano para além de humilhação e mais pobreza?
Faço tantas perguntas e não consigo obter resposta. Que orgulho e auto estima temos nós se alienamos de forma vergonhosa e irracional os recursos naturais? Que combate a pobreza absoluta de que tanto falamos e escrevemos nos planos macroeconómicos e proferimos nos nossos discursos? Porque tombaram na luta de libertação nacional os melhores filhos desta Pátria? Os nossos heróis (Eduardo Mondlane, Belmiro Obadias Muanga, Filipe Samuel Magaia, Josina Machel, Samora Machel, entre tantos milhares de moçambicanos) não sacrificaram suas vidas para libertar a terra e os homens?
Acredito que o episódio aqui narrado é uma realidade não só na praia de Canda, mas um pouco por todo país. O problema é que nós somos demasiadamente pacíficos e conformados… mas até quando vamo-nos calar e até quando quem de direito vai tomar as rédeas e repor a dignidade que o humilde povo moçambicano merece?!
A 5 séculos atrás, no período pré-colonial, os nossos antepassados entregaram a terra e os homens (escravos) a troco de tecidos, missangas, especiarias e outras mesquinhices… Hoje entregamos as nossas riquezas por meia dúzia de acções em empresas sem grande expressão económica nem retornos reais para os africanos… mais engraçado e mais triste ainda é que na minha terra, entregam-se as melhores praias a troco de saquitos arroz e cabeças de peixe…
Fiz a minha “partinha”! Pouco mas é alguma coisa que me conforta um pouco a alma!
“Não estará a repetir-se a história???...”
Recebido via e-mail. Sobre este assunto, leia um texto do António Botelho de Melo, intitulado "Preto aqui não entra", aqui.
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