Sunday, 10 October 2010

Pobreza em Moçambique Põe Governo e seus Parceiros entre a Espada e a Parede

“Ele usa a estatística como um bêbado usa um poste de iluminação: mais para se apoiar do que para se iluminar”
(Andrew Lang, in The Economist, 1995: 76).

MOÇAMBIQUE ESTÁ A AVANÇAR… PARA ONDE?

PESQUISAS recentes sobre a situação e evolução da pobreza em Moçambique, tanto pesquisas baseadas em dados estatisticamente representativos, como pesquisas qualitativas, através de estudos de caso e reportagens narrativas, são unânimes num ponto: a pobreza continua muito elevada em Moçambique, cronicamente resistente e com sinais para aumentar, em vez de diminuir. Em várias províncias, onde no início do corrente século XXI a incidência da pobreza parecia diminuir, no último quinquénio aumentou.
A Zambézia, com mais de quatro milhões de pessoas (um quarto da população moçambicana), regista um forte agravamento da pobreza, tendo ultrapassado em 2009 o nível registado na primeira avaliação da pobreza, há mais de uma década.
Os dados oficiais da 3ª Avaliação da Pobreza, divulgados a conta-gotas e apenas parcialmente, mostram uma realidade muito diferente da que tem sido anunciada nos discursos do partido Frelimo e seu Governo, segundo os quais a pobreza estaria a diminuir. O Presidente Armando Guebuza poderá ter razão, ao declarar sucessivamente que a pobreza está a ser fragilizada e o “país está a avançar”.
O problema, todavia, é saber para onde se avança, quando os retrocessos superam os avanços positivos.
Para surpresa de muitos e forte dúvida de alguns analistas, quanto aos dados que o Governo começou a divulgar, a actual distribuição geográfica da pobreza está longe de ser óbvia e fácil de explicar. Por que será que as províncias com menor incidência de pobreza absoluta estão nos extremos do país?
De um lado, Niassa com 32 porcento, convertida na província menos pobre de Moçambique-.Quem diria? De outro lado, a cidade de Maputo, com 36 pontos percentuais. Por que razão a Zambézia consolida a sua posição de província mais pobre, quando há meio século atrás, tinha conquistado a reputação de ser uma das províncias mais ricas de Moçambique?
Para responder às questões anteriores, entre muitas outras, teremos de esperar pela divulgação do relatório final da 3ª Avaliação da Pobreza. O que até aqui é conhecido tem surgido informalmente, dando a ideia que se procura ocultar os dados preliminares da opinião pública nacional. Lamentavelmente, os utilizadores moçambicanos continuam a ter de recorrer aos colegas estrangeiros, no acesso aos resultados de estudos realizados por entidades públicas nacionais. Um velho problema, para o qual parece não haver solução.

POBREZA ESTAGNOU, OU ESTÁ A AUMENTAR?

Os dados das três avaliações nacionais (1ª – 1996/97; 2ª – 2002/03; 3ª – 2008/09), referem que todas as mudanças merecem atenção e mostram que a pobreza está a piorar em algumas áreas do país, sendo nelas que deve incidir atenção e intervenção prioritárias. Entre a 1ª e 2ª avaliação, apenas em Cabo Delgado, Maputo-rovíncia e cidade de Maputo, a pobreza piorou. No entanto, tais aumentos foram revertidos no período seguinte, entre a 2ª e 3ª avaliação, de forma significativa em Cabo Delgado e cidade de Maputo, mas muito ligeiramente na província de Maputo. Todavia, a 3ª avaliação revela um panorama nada animador. Várias províncias apresentam sinais de retrocesso, entre 2003 e 2009, resultando no aumento da incidência de pobreza nacional e rural, nomeadamente na Zambézia, Manica, Sofala, Gaza e Nampula.
Em termos regionais, a região centro, com 42 porcento da população (cerca de 9 milhões de pessoas), encontra-se numa situação particularmente grave, ao registar um aumento médio de 14 porcento de incidência de pobreza, resultante do agravamento do padrão de consumo em três das quatro províncias desta região.
A última coluna na tabela 1 apresenta a diferença líquida em pontos percentuais (pp.), em toda a década (1997-2009). Na Zambézia, depois de uma diminuição de 24 pp., entre 1997 e 2003, a pobreza voltou a piorar, de tal maneira que já ultrapassou o nível de 1997, em 2,4 pp. A província de Maputo tem registado ligeira diminuição da pobreza (-1,8 pp.), mas num ritmo insuficiente para ultrapassar o nível de 1997. Igualmente grave é a variação da pobreza, entre 2003 e 2009, em Sofala (22 pp.), Manica (12 pp.), seguindo algumas províncias com aumentos menores (Gaza (2,4 pp.), Maputo província (2,5 pp.) e Nampula (2,1 pp.).
Contra a tendência geral de agravamento da pobreza, destacam-se Cabo Delgado (-26 pp.), Niassa (-20 pp.), Inhambane (-23 pp.) e cidade de Maputo (-17 pp.). Estes casos com avanços positivos, em termos de redução da pobreza absoluta, acabam por ser insuficientes para compensar os casos com retrocessos significativos, razão pela qual a incidência de pobreza nacional registou um aumento médio de 0,6 pp. no período 2003-2009.
O relatório apresentado pelo GdM na ONU desvaloriza este aumento, apoiando-se no argumento técnico da sua insignificância estatística, sem no entanto apresentar evidências sobre tal insignificância.
Mais grave ainda, não reconhece que o simples facto da incidência da pobreza não ter diminuído é em si significante, sobretudo em termos políticos e considerando que a meta oficial era reduzir a pobreza para 45 por cento em 2009.
Adianta ainda, o referido relatório, que o número de moçambicanos vivendo actualmente abaixo da linha de pobreza absoluta, aumentou de 9,9 milhões em 2003 para 11,7 milhões em 2009.
Atribuir este aumento do efectivo absoluto de pobres ao crescimento demográfico é correcto, mas é apenas uma meia verdade. O problema com as meias verdades é que elas escondem pouco do muito que se pretende ocultar. É certo que o efectivo de pobres existente actualmente deriva, em parte, do crescimento populacional, mas se tal efectivo não é inferior deve-se principalmente ao facto da taxa de redução da pobreza manter-se tendencialmente constante ou mesmo ter aumentado. Este recurso a argumentos técnicos ou factores exógenos ao controlo dos executores das políticas públicas é bem conhecido, mas acaba por ser contraproducente, porque não consegue ocultar o fracasso das expectativas anunciadas e a ineficiência das políticas implementadas.

ENTRE A ESPADA E A PAREDE

Ao declarar-se, no título deste texto, que a pobreza em Moçambique põe o Governo e seus parceiros de desenvolvimento entre a espada e a parede, justifica-se a pergunta: de que espada e parede se trata?
A espada refere-se à revelação demolidora dos dados que põem em causa a ideia espalhada pelo mundo inteiro sobre o sucesso exemplar do modelo de desenvolvimento moçambicano. Quanto à parede, refere-se à crescente intolerância, saturação e inconformismo popular, cuja demonstração mais dramática surgiu na recente revolta de 1 a 3 de Setembro último, em Maputo e Matola.
Esta revolta, similar mas mais violenta do que a revolta de 5 de Fevereiro de 2008, indica-nos que uma parede social de inconformismo robusto está a ser erguida pela população (por enquanto urbana) profundamente empobrecida, contra políticas e programas públicos tendentes a empurrá-la. O tempo dirá se, depois dos tumultos de 1 a 3 de Setembro de 2010, os alertas das pesquisas sociais e económicas sobre a saturação e desgaste popular (e.g. frequentes linchamentos e outros crimes), deixarão de ser tomados como lucubrações alarmistas de “apóstolos da desgraça” em busca de protagonismo. Não será fácil, tendo em conta “… esse terrível pavor das palavras que assombra tanto os nossos políticos, a crença de que nada existe enquanto não dizem que existe…” (Leite de Vasconcelos, 1999: 15).
Tal como em relação às palavras, igual pavor acontece em relação aos números.

POR QUE NÃO USAR A ESTATÍSTICA?

Apesar do Conselho de Ministros ter aprovado o relatório da 3ª avaliação da pobreza e bem-estar, na sua sessão de 21 de Setembro passado, os resultados que logo de seguida divulgados na imprensa local, contradiziam o relatório que o Governo apresentou na ONU, confirmando mais uma vez a penumbra que paira em torno dos dados estatísticos de base. Como exemplo desta contradição, vejamos as seguintes citações: “... Assim, em 2009, a taxa de pobreza medida foi de 52 porcento, o que, segundo o documento, permite prever a melhor estimativa para a taxa de pobreza em meados de 2010, em cerca de 48 porcento...” (O País, 22.09.2010, p.24); “...Segundo o relatório, em 2009 a taxa de pobreza, medida foi de 52 porcento, cifra que denota uma tendência de redução em cerca de um porcento ao ano...” (Jornal de Notícias, 22.09.2010, p. 1).
De onde surgem estas taxas? Qual o fundamento de uma previsão de redução da taxa de pobreza de 52 porcento para 48 porcento, entre 2009 e 2010, se antes aumentou 0,6 pontos percentuais? Será que existe um outro relatório, diferente daquele que o Governo apresentou na ONU?
O escritor H.G. Wells, afirmou que o conhecimento estatístico será um dia uma qualificação tão necessária para uma cidadania eficaz, como saber ler e escrever (The Economist, 1995: 11).
Porém, mesmo quando este prognóstico se concretizar, muito provavelmente a estatística continuará a ser abusada, no estilo indicado na citação em epígrafe, ao serviço de ideias preconcebidas, interesses inconfessáveis e propósitos camuflados por um optimismo beócio. Por isso, os intelectuais orgânicos, profissionais e honestos, precisam de complementar seus conhecimentos técnicos com outras ferramentas, capazes de mostrarem aos políticos e intelectuais militantes, as vantagens do recurso à estatística, para um melhor conhecimento da realidade, de forma sistemática, exacta e adequada.

António Francisco - Investigador do IESE, num artigo publicado pelo IDEIAS

NOTA DO JOSÉ = Aconselho a leitura do artigo original para estudar os gráficos e as referências. Coloque o rato sobre a imagem, carregando no lado esquerdo.

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