Saturday, 2 October 2010

O calvário da mãe de Hélio



















É quase uma impossibilidade, mas Rute continua a viver amputada. Parece insuportável sobreviver à perda do filho, mas é preciso vencer a tristeza para cuidar da criança que ficou, mesmo quando se é traído pelo destino. Sem emprego, com um filho menor e sem assistência do Estado, Rute não sabe o que fazer. Eis o dilema da mãe de Hélio – a criança que perdeu a vida no dia 1 de Setembro...
Rute era uma adolescente encantada com a vida e, apesar da pobreza, sempre teve amor dos pais e da família. Aos 16 anos conheceu o pai do seu primeiro filho. “Tinha a certeza de que nos amávamos, embora tivéssemos um namoro cheio de idas e vindas. Depois de dois anos de namoro fiquei grávida de um filho que não estava nos planos, mas nunca pensei em abortar”.
O pai do filho abandonou-a grávida de três meses. Quando se estava a acostumar à ideia de ter um filho, viu-se obrigada a enfrentar a realidade de ter um filho sem pai. Nessa altura, quando ainda estava grávida, “chorava e me lamentava sempre que via um homem acariciando a barriga de uma mulher grávida ou um pai a brincar com um filho”.

Uma mulher triste

Encolhida numa cadeira minúscula, num casebre em pleno bairro Maxaquene “A”, Rute Silvestre Muianga, de 30 anos de idade, conta que, no passado dia 1 de Setembro, a leste das manifestações que ocorriam – um pouco por toda a periferia de Maputo e Matola – arrumou os livros na sacola do filho mais velho, despediu-se do miúdo e este, por sua vez, seguiu para a escola e de lá, diga-se, nunca mais voltou.
Hélio Elias Rute Muianga, no assento de nascimento, estudava na Escola Primária do 1º Grau Maxaquene “B”, na sala 3, na 5ª classe. No dia 1 de Setembro, por conta das manifestações populares, não teve aulas. Saiu da escola com um vizinho e foi até a avenida Acordos de Lusaka deixar a vida.
O caminho, refira-se, que Hélio percorria até a escola era feito de ruelas e becos, sempre no interior do populoso bairro da Maxaquene, mas naquele dia, arrastado pelos disparos e pela inocência que preenchia o seu corpo de criança, foi ao encontro de balas reais da polícia.
Encontro que teve como saldo um tiro na cabeça de uma criança de 11 anos: Hélio Elias Rute Muianga. A brutalidade do disparo foi tal que Hélio saiu da Acordos de Lusaka cadáver.
As más notícias, diz a sabedoria popular, correm como o vento. Pouco minutos depois de Hélio ter tombado sem vida, ao pé dos seus livros e da sua sacola de escola, o rosto da mãe, no interior do bairro, já se encontrava inundado por duas torrentes de lágrimas. “Meu filho morreu na hora. Nem pôde ser socorrido”. Perder um filho subverte uma ordem cronológica e, ainda hoje, Rute pergunta: “Por que ele e não eu?”.
Rute lamenta não ter podido estar com o filho naquele momento. “Não acompanhei o meu filho ao hospital, queria ter vivido aquele momento por mais duro que fosse. Precisava de enfrentar a situação, ver o que a polícia me oferecia. Não seria a minha melhor recordação, mas vê-lo morto seria a única forma de entender que o perdi para sempre”.

Polícia em balanço

Desesperada, Rute, na companhia da família, dirigiu-se à 12ª esquadra para exigir responsabilidades. Basicamente, a moça de 30 anos queria saber quem lhe devolveria o filho com vida. Entretanto, naquela unidade policial, nem Hélio recobrou a vida e nem Rute obteve qualquer tipo de ajuda. “A polícia disse-nos que não podia fazer nada.
Aliás, primeiro, tinha de fazer o balanço e só depois é que poderia tomar uma medida”. Esse balanço, no entanto, foi feito e Hélio já estava enterrado sem o apoio do Estado. Três dias depois, num sábado, 4 de Setembro, a família, com muito sacrifício, conseguiu comprar o caixão para enterrar condignamente o pequeno Hélio. Uma cerimónia simples, sem a presença de um representante do Estado, apenas familiares, duas professoras, alguns colegas de escola, vizinhos e uns tantos amigos.

... E a morte o emprego levou

Rute ficou sem o filho e com a sensação de vazio. Depois ficou sem o emprego e mais tempo para pensar no vazio. Trabalhava como empregada doméstica numa casa no bairro Triunfo, auferia 1800 meticais, dos quais 450 eram destinados ao transporte.
A missa do oitavo dia de Hélio teve lugar no dia 11 de Setembro. Rute tinha acordado com a patroa voltar ao trabalho no dia 13 do mesmo mês, segunda-feira, mas qual não foi o seu espanto quando encontrou outra pessoa no seu lugar. “Empregada não pode fi car doente, não pode ter infelicidades.
A patroa disse que já tinha outra pessoa. Fazer o quê?”, lamenta. No entanto, o Regulamento do Trabalho Doméstico (Decreto nº 40/2008 de 26 de Novembro) diz que a cessação dos direitos, deveres e garantias ocorre após 30 dias de ausência e Rute fi cou apenas oito dias sem trabalhar.
Por outro lado, o documento não é claro no que se refere à indemnização. Ou seja, Rute até podia queixar-se de não ter excedido o prazo estipulado por lei, não fosse ignorar a existência de direitos na relação laboral dos que se dedicam às actividades domésticas.

O dilema de Rute

Se Rute voltar a trabalhar não sabe com quem vai deixar o seu filho mais novo. Lewis, conta a mãe, ficava com Hélio “quando eu ia trabalhar”, diz. “Agora, se arranjar trabalho, terei de deixá-lo numa creche”. Porém, o preço que terá de pagar, para quem tem como horizonte auferir 1800 meticais, deixar-lhe-á, no final de cada mês, com pouco mais de 1100 meticais. “Um salário que não dá para nada”, afi rmámos. “É melhor do que nada”, retorquiu.
Rute confessa que se encontrasse a pessoa que matou o seu filho “não diria nada. Não tenho mais nada porque já perdi o meu filho”. Na verdade, “não sei o que faria”. Acrescenta: “A minha esperança estava no meu filho. Se ele vivesse tenho a certeza de que no futuro me ajudaria”.

Na pobreza extrema

Chamar casa ao cubículo onde Rute vive com o marido e o filho mais novo, Lewis, é um eufemismo. O espaço, de 2,5 metros de largura por 5 de comprimento, é a negação da existência humana. Os poucos haveres que o casal juntou, nos três anos de união de facto, são mais do que sufi cientes para deixar o espaço, que já é diminuto, sem a mínima condição de habitabilidade.
Uma cama casal, uma mala bordada, um televisor pequeno, um candeeiro, uma rede mosquiteira e algumas roupas são os bens da família. A parte exterior da moradia, na zona frontal, tem uma parede de chapas de zinco e uma rede da altura da cintura. Dentro do quarto, percebe-se que uma das paredes laterais não passa de um conjunto de blocos sobrepostos. Do outro lado, a parede é feita de paus de caniço, completando-se o cenário com chapas de zinco.
À primeira vista, diga-se, parece uma capoeira, mas é uma casa sem muros e água canalizada. No interior, há um espaço vazio e do lado esquerdo fica o quarto onde Rute mora com o marido. Do outro lado moram os familiares do esposo que cederam o espaço há três anos quando a mãe de Hélio engravidou do segundo flho. O povo diz, na sua infinita sabedoria, que um mal nunca vem só.
Uma verdade milenar que caiu na vida de Rute como um estrondo: ainda não sabe quando, mas ela, o esposo e filho têm de abandonar o lugar onde vivem. Os familiares do esposo que cederam o lugar há três anos querem dar outro destino ao espaço. Não sabe para onde há-de ir no dia que tiver de deixar a casa.
O vazio que não se preenche Às pessoas confrontadas com a perda de um filho restam questões como o que fazer com o quarto vazio, as roupas e brinquedos que fi caram, mas no caso de Rute Silvestre Muianga o vazio ficou no coração. Hélio não tinha quarto, não tinha brinquedos.
Os livros e a pasta desapareceram sem deixar rastos. A vida, essa prostituta, deixou-lhe um filho e duas dores de cabeça: arranjar emprego e um espaço para morar. De Hélio, apenas a lembrança que guarda no peito.


Rui Lamarques, A Verdade

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