Porque a lingua tem esta faculdade de ser interpretativa mesmo sendo
Comum aos seus falantes. A lingua que mente é a que veredicta, a que odeia
É a que ama. As ironias evidentes de um so destino. E adivinhe-se qual
GUARDA a nossa Língua outras tantas línguas. A que falamos em comum e que por inerência das nossas culturas, nossas, as dos falantes, se amaneirou de identidades próprias, e de sonoridades e estruturas a elas subjacentes. A língua que falamos, passou, assim, por espelhar povos tão diferentes e tão eloquentemente multifacetados. Tornou-se mesmo uma ponte entre as distâncias das nações que somos.
Mas, o mais notável que tenho constatado, para além do que já nos é comum saber quanto a importância que a nossa Língua Portuguesa tem de nos tornar perto estando nós tão longe, é a que encontro nos lugares do dia-a-dia. Por exemplo, num bar, numa cafetaria, numa festa. E, a esse propósito, aconteceu-me, aqui por Lisboa, estar eu sentado numa pastelaria e ter ouvido uma senhora a pedir a conta ao empregado de mesa. De princípio nada tem o facto de invulgar. Se estamos numa pastelaria, é evidente que acabamos sempre por pedir a conta. A menos que nada tenhamos consumido. Porém, não sendo o português que falo o português de Portugal, a moçambicanidade da minha língua deixou-me quase que atónito quando o empregado, ao trazer a conta, diz para a senhora:
– Então, é uma Coca-Cola e três línguas de veado.
Olhei para ele atonitamente e, confesso, meio encabulado. Não estava a perceber de como os bons modos se tornavam, tão de repente, numa marca de tão pouca cortesia num recinto de denotada fineza. Dei-me, um pouco mais reflectidamente, ao benefício da dúvida, não fosse ter mesmo consumido a senhora as três línguas de veado. O que não deixava de ser estranho, para mim, que tal subtileza gastronómica se servisse num café. Mas como estou sempre a aprender, de cada vez que viajo, fiz por não me surpreender.
Cairá por terra, a seguir e entretanto, tal esforço, ao notar a senhora, educadamente, a liquidar a conta. Mas, porque carga de água, num pequeno pires sem resíduos de molho algum e com uns restos do que me parecia ter sido um bolo, se dava como pagas línguas de veado?
Perguntei-me eu. Daí a pouco tempo e como resultado de acautelada investigação, se deu como confirmado, junto ao empregado, de que não eram as línguas as de tal animal, mas biscoitos. Sendo assim, restava-me uma outra curiosidade por satisfazer. A se estariam tais iguarias conotadas ao quadrúpede ou a certas pessoas a quem os nossos irmãos brasileiros costumam adjectivar. Não sendo a primeira como se veio a comprovar, pus-me a cogitar de que modo entenderiam os brasileiros as línguas de veado. Por sua vez, se pediriam os veados, no Brasil, os doces em questão e como entenderiam os mesmos tais línguas aqui?
É que não me esqueço de certa complicação, de que fui autor, no aeroporto de São Paulo, quando indaguei a um sujeito por que me estava a passar, à frente, na bicha, se não tinha estado na bicha.
A confusão, até que se explicasse, foi, deveras, um problema quase diplomático. O drama esteve às portas de ser consumado devido a uma simples interpretação linguística entre pessoas falantes da mesma língua. Sim, porque em Moçambique, bicha é o que é fila para os brasileiros. Mas, imagino eu um dilema maior que era o de pedir, num restaurante, para uma originalíssima senhora moçambicana, tal ementa:
Bebidas Licor: de merda, vinho periquita.
Pão: caralhotas, Comidas sopa de grelos, punhetas de bacalhau.
Sobremesa: fatias de parida.
Ela olhar-me-ia, com toda a certeza, com um olhar indignado e depressa me deixaria sozinho à mesa, sem, ao menos, a oportunidade de poder explicar-lhe que tal ementa era tipicamente portuguesa e não uma blasfémia em português. Portuguesa do Portugal de onde nos é oriunda a língua que falamos e nos entendemos, eu e ela, mesmo com as nossas diferenças étnicas e que nos permitem comunicar se não tivéssemos em comum o português. E, porque, deste modo, também se traduz a lusofonia, esta palavra que qualquer dia dará o nome a uma qualquer iguaria, também, de igual modo, nos entendemos e vemos lusófonos em detalhes tão peculiarmente pequenos como o é este que relato e nos faz tão imensamente grandes. Grandes no sentido de que a língua acaba por nos trazer a mais-valia incomensurável de podermos partilhar, com tolerância, os sentidos que a ela damos nas diferenças que somos inevitavelmente. Já o antevia Fernando Pessoa quando dizia que a sua Pátria era a sua língua e nenhuma outra maneira de estar nos poderia responsabilizar melhor por ela e nem melhor nos poderíamos sentir nela.
Eduardo White, no Notícias
Comum aos seus falantes. A lingua que mente é a que veredicta, a que odeia
É a que ama. As ironias evidentes de um so destino. E adivinhe-se qual
GUARDA a nossa Língua outras tantas línguas. A que falamos em comum e que por inerência das nossas culturas, nossas, as dos falantes, se amaneirou de identidades próprias, e de sonoridades e estruturas a elas subjacentes. A língua que falamos, passou, assim, por espelhar povos tão diferentes e tão eloquentemente multifacetados. Tornou-se mesmo uma ponte entre as distâncias das nações que somos.
Mas, o mais notável que tenho constatado, para além do que já nos é comum saber quanto a importância que a nossa Língua Portuguesa tem de nos tornar perto estando nós tão longe, é a que encontro nos lugares do dia-a-dia. Por exemplo, num bar, numa cafetaria, numa festa. E, a esse propósito, aconteceu-me, aqui por Lisboa, estar eu sentado numa pastelaria e ter ouvido uma senhora a pedir a conta ao empregado de mesa. De princípio nada tem o facto de invulgar. Se estamos numa pastelaria, é evidente que acabamos sempre por pedir a conta. A menos que nada tenhamos consumido. Porém, não sendo o português que falo o português de Portugal, a moçambicanidade da minha língua deixou-me quase que atónito quando o empregado, ao trazer a conta, diz para a senhora:
– Então, é uma Coca-Cola e três línguas de veado.
Olhei para ele atonitamente e, confesso, meio encabulado. Não estava a perceber de como os bons modos se tornavam, tão de repente, numa marca de tão pouca cortesia num recinto de denotada fineza. Dei-me, um pouco mais reflectidamente, ao benefício da dúvida, não fosse ter mesmo consumido a senhora as três línguas de veado. O que não deixava de ser estranho, para mim, que tal subtileza gastronómica se servisse num café. Mas como estou sempre a aprender, de cada vez que viajo, fiz por não me surpreender.
Cairá por terra, a seguir e entretanto, tal esforço, ao notar a senhora, educadamente, a liquidar a conta. Mas, porque carga de água, num pequeno pires sem resíduos de molho algum e com uns restos do que me parecia ter sido um bolo, se dava como pagas línguas de veado?
Perguntei-me eu. Daí a pouco tempo e como resultado de acautelada investigação, se deu como confirmado, junto ao empregado, de que não eram as línguas as de tal animal, mas biscoitos. Sendo assim, restava-me uma outra curiosidade por satisfazer. A se estariam tais iguarias conotadas ao quadrúpede ou a certas pessoas a quem os nossos irmãos brasileiros costumam adjectivar. Não sendo a primeira como se veio a comprovar, pus-me a cogitar de que modo entenderiam os brasileiros as línguas de veado. Por sua vez, se pediriam os veados, no Brasil, os doces em questão e como entenderiam os mesmos tais línguas aqui?
É que não me esqueço de certa complicação, de que fui autor, no aeroporto de São Paulo, quando indaguei a um sujeito por que me estava a passar, à frente, na bicha, se não tinha estado na bicha.
A confusão, até que se explicasse, foi, deveras, um problema quase diplomático. O drama esteve às portas de ser consumado devido a uma simples interpretação linguística entre pessoas falantes da mesma língua. Sim, porque em Moçambique, bicha é o que é fila para os brasileiros. Mas, imagino eu um dilema maior que era o de pedir, num restaurante, para uma originalíssima senhora moçambicana, tal ementa:
Bebidas Licor: de merda, vinho periquita.
Pão: caralhotas, Comidas sopa de grelos, punhetas de bacalhau.
Sobremesa: fatias de parida.
Ela olhar-me-ia, com toda a certeza, com um olhar indignado e depressa me deixaria sozinho à mesa, sem, ao menos, a oportunidade de poder explicar-lhe que tal ementa era tipicamente portuguesa e não uma blasfémia em português. Portuguesa do Portugal de onde nos é oriunda a língua que falamos e nos entendemos, eu e ela, mesmo com as nossas diferenças étnicas e que nos permitem comunicar se não tivéssemos em comum o português. E, porque, deste modo, também se traduz a lusofonia, esta palavra que qualquer dia dará o nome a uma qualquer iguaria, também, de igual modo, nos entendemos e vemos lusófonos em detalhes tão peculiarmente pequenos como o é este que relato e nos faz tão imensamente grandes. Grandes no sentido de que a língua acaba por nos trazer a mais-valia incomensurável de podermos partilhar, com tolerância, os sentidos que a ela damos nas diferenças que somos inevitavelmente. Já o antevia Fernando Pessoa quando dizia que a sua Pátria era a sua língua e nenhuma outra maneira de estar nos poderia responsabilizar melhor por ela e nem melhor nos poderíamos sentir nela.
Eduardo White, no Notícias
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