Um homem louro, de faces rosadas e estatura média, calcorreava o aeroporto da cidade da Beira de T-shirt desajeitada e calções. Quanto a nós, procurávamos um multimilionário, de que só sabíamos o nome. Surpresa: aquele quarentão descontraidíssimo era mesmo Gregory Carr, o filantropo que se propõe gastar 36 milhões de dólares (24,7 milhões de euros) na reabilitação do Parque da Gorongosa, 3 770 quilómetros quadrados na província de Sofala, no centro de Moçambique, que noutros tempos acolheram a maior densidade de animais em África. Ali ocorreram dos mais encarniçados combates entre as tropas do Governo da Frelimo e os guerrilheiros da Renamo, ao longo dos 16 anos de guerra civil (que terminou em 1992), a que se juntaram a caça furtiva e a fome. Resultado: grandes mamíferos dizimados em mais de 95%, e os 54 diferentes ecossistemas largamente afectados.
Quando demos por ela, já estávamos a voar no helicóptero, com cinco lugares, de Greg Carr, 47 anos. Com o seu computador portátil ao colo e aberto, ao lado do piloto, ele aproveitou a breve viagem, de menos de meia-hora, para desfiar uma torrente de assuntos a dois colaboradores, através do circuito interno de som. Não escondeu a sua insatisfação quanto ao que nos pareceu ser o planeamento financeiro do projecto. Mas, chegados à Gorongosa, distribuiu alegremente guloseimas por um magote de miúdos. Naquele dia, faltou-lhe tempo para levar alguns dos catraios numa volta de "heli", como, asseguraram-nos, faz com frequência. Imagine-se aqueles filhos da pobreza extrema a sobrevoar o parque, quando, muito provavelmente, nem sequer de automóvel ainda andaram!... Puro marketing? Arriscamos a negativa.
"Não é dos que põem cá um dólar, para levar um dólar e meio", acredita um moçambicano do seu staff. A verdade é que Greg Carr ganhou a confiança de figuras como o escritor Mia Couto, 51 anos, que trabalha no projecto enquanto biólogo. Em 2004, o então Presidente da República, Joaquim Chissano, abriu as portas da Gorongosa à Fundação Carr (instituição sem fins lucrativos que Greg criou em 1999), para uma gestão a 30 anos do parque, em conjunto com o Ministério moçambicano do Turismo. Por detrás, estiveram os Kennedy. Expliquemo-nos: foi num encontro promovido pela mítica família de JFK que Greg Carr conversou com Carlos dos Santos, à época embaixador de Moçambique na ONU e um dos diplomatas africanos mais ouvidos em Nova Iorque e em Washington. "Pediu-me para ajudar na luta contra a pobreza", conta o multimilionário.
No dia seguinte à nossa chegada, cruzámo-nos com ele em Chitengo, a caminhar de computador portátil numa mão. Demos-lhe conta do principal resultado do safari madrugador - tínhamos visto sete leoas, certamente já saciadas, porque deixaram em sossego antílopes que circulavam por perto. Ergueu os braços, a vitoriar o avistamento. Fonte de regozijo é também o progressivo regresso de elefantes ao parque. Búfalos, há-os igualmente. Recentemente, Greg Carr comprou 54 ao sul-africano Kruger Park, gastando na operação 100 mil euros.
Mas a reintrodução de bichos vai continuar, pelo menos, até 2015, obrigando ao dispêndio de muito, muito dinheiro pela Fundação Carr na aquisição de animais - mais búfalos e elefantes, zebras, gnus, hipopótamos, cudos, elandes, rinocerontes... [Com os pássaros, não tem de se preocupar: existem mais de 400 espécies na reserva.] A isto somam-se 14 milhões de dólares (9,6 milhões de euros) destinados à construção de estradas, pontes, edifícios (incluindo um centro de investigação científica) e uma nova pista de aviação. Serão quatro anos a todo o vapor, até 2010, quando se realiza o Campeonato do Mundo de Futebol na África do Sul, motor de que Greg quer tirar partido para que a Gorongosa atinja, no mínimo, 50 mil visitantes/ano.
O nosso homem é oriundo de um quase obscuro Estado no Noroeste dos EUA, Idaho, sobretudo conhecido como "terra das batatas". Na Universidade estadual do Utah, ao invés de dois dos seus seis irmãos, que ali cursaram Direito, de estatuto mais comparável ao do pai, cirurgião em Idaho Falls (cidade-natal da família), Greg tirou História, em busca dos "ideais nobres do passado". Dispensou o apoio familiar, arranjou um quarto emprestado na casa de uma velhota parcialmente cega, contra a promessa de lhe ler alto os jornais, e conseguiu um emprego nocturno num resort local. Depois, para seu próprio espanto ("Sou do Idaho, santo Deus", comenta, a propósito), foi admitido na Escola Kennedy de Governação, na Universidade de Harvard, no curso de Relações Internacionais.
A sua vida deu, então, uma grande volta. Em Harvard, criou um clube de empresários com estudantes da universidade e do também mítico MIT (Massachusetts Institute of Technology). As reuniões semanais prolongavam-se pela madrugada, e as ideias para novas firmas nasciam como cogumelos. Greg Carr acabou por se aproximar mais de Scott Jones, um cérebro made in MIT. O jovem de Idaho (estamos na década de 1980), que guiava um Datsun a cair de podre, anteviu suculentas oportunidades a partir do momento em que o Governo federal quebrou o monopólio telefónico da AT&T e, do mesmo passo, pôs fim à proibição de novos serviços para os clientes.
Entrou em campo a tal "ideia que se chama voice mail", a que rapidamente se seguiram o fax e o reencaminhamento de chamadas. Greg e Scott formaram a Boston Technology, e gastaram todo o Outono de 1988 a inventar um sistema de correio de voz com uma capacidade 20 vezes superior à dos então existentes. Melhor explicado: Greg arranjava investidores entre familiares, amigos e quem estivesse interessado em arriscar num produto nunca concebido; Scott tratava do software, acompanhado de uma trupe do MIT. Clientes: a Bell Atlantic e os seus 50 mil telefones residenciais.
Dois anos antes do jackpot, Greg tivera outro golpe de asa. Com a Internet ainda na idade medieval, convenceu investidores a comprar, à IBM e à Sears, um moribundo fornecedor de serviços virtuais - a Prodigy. Esteve à frente da empresa apenas o tempo suficiente para a ressuscitar e rendibilizar. E que solução inventou ele? Virou-se para África, que a concorrência olimpicamente ignorava, e pôs o continente negro on-line. Simples.
Moçambique ainda estava longe. Antes do país de Samora Machel, a Fundação Carr gastou fundos num Centro de Direitos Humanos, em Harvard (18 milhões de dólares/12 milhões de euros), e num museu em Idaho (2 milhões de dólares/1,3 milhões de euros). Na Gorongosa, Greg quer chegar, em 2010, a 39 milhões de euros de receitas anuais, pelo menos. Mas tem um compromisso com as populações que vivem nos limites e dentro da reserva - no mínimo, 100 mil pessoas: 20% do encaixe é para melhoramentos nas suas aldeias. Pretende criar mil empregos directos; os indirectos são incalculáveis. Também não esquece a componente de luxo, que considera essencial para a rendibilização do projecto. E, claro, leva o assunto tão a sério quanto isto: "Os objectivos que tinha anteriormente são os mesmos de agora - erguer uma organização, trabalhar com as pessoas. Gerir um parque como este é um negócio. Penso muitas vezes, aliás, em como é similar com os que tive." Telefonicamente, o secretário de Estado português dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, João Gomes Cravinho, 42 anos, amacia-lhe a farda de executivo puro e duro. "Greg Carr reúne uma configuração muito rara: é um idealista prático e pragmático, e, ainda por cima, está disponível para usar o seu próprio dinheiro." Por isso, ao conhecê-lo, o governante de imediato arranjou maneira de o ajudar: pô-lo em contacto com o Instituto de Investigação Científica e Tropical, que possui um património único de estudos geográficos e geológicos da Gorongosa, e ainda desencantou cerca de 300 mil euros, do erário nacional, para apoiar iniciativas portuguesas adequadas ao projecto educativo que o norte-americano tem para a região.
Nota: Link para o site do Parque da Gorongosa, onde encontra o trailer do documentário "Africa's Lost Éden", que começará a ser exibido nas televisões de todo o mundo a partir do próximo mês e, posteriormente, lançado em DVD: http://gorongosa.net/
FONTE: Revista Visão. Confira aqui.
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