Wednesday, 5 August 2009

Mia Couto em entrevista


Mia Couto fala devagar e quase sempre em voz baixa. Ri com a mesma facilidade com que se distrai com tudo e todos. É um escritor apaixonante e um homem fascinante.
Quando sais de manhã para o mato qual é a tua rotina de biólogo?
Não sei se o verbo é sair porque eu já estou lá. Na última vez fui com o meu filho e adorei porque ficámos na mesma tenda. Passámos um frio horrível porque somos os dois muito distraídos e esquecemo-nos de fechar a parte de cima da tenda.
Quantos anos tem o teu filho?
Tem trinta, também é biólogo e é como eu: e só ao quarto ou quinto dia é que percebemos que estávamos a passar aquele frio todo por não termos fechado a tenda em cima (risos). Levantamo-nos muito cedo, às 4 da manhã, dividimo-nos em grupos, cada um vai para um certo sítio.
É uma rotina completamente diferente da do escritor?
É. Eu adoro porque existe ali toda uma outra lógica de tempo. Nunca me canso. Renasço no mato.
Quando observas os animais fazes comparações com os humanos? Ou cartografas apenas a alma dos animais?
Sabes uma coisa? Essa África onde só há animais completamente separados dos homens já não existe e eu gosto dessa promiscuidade, gosto de conviver com os leões, os elefantes e os hipopótamos. O grande desafio é saber como é que tu casas aquilo tudo, como é que crias harmonias entre aquela gente toda.
Seres branco, de olhos azuis, gera entropias ou desconfianças entre os nativos?
Eu sou sempre outro, não sou um deles.
És um estrangeiro?
Não há uma palavra para definir estrangeiro. Aliás entre os meus colegas somos todos molungos porque não falamos a língua local, não pertencemos àquele clã, àquela tribo, o que é muito curioso porque esta tentação de definirmos o outro pela raça ou pela cor da pele ali não existe. Ali existem eles e os outros, os de fora.
Que são considerados outros por não falarem a língua deles, só por isso?
Esse é o factor determinante. Se tu, Laurinda, chegas lá, eles olham para ti e dizem: esta mulher é uma molunga. Se tu falas a língua local, imediatamente passas para outra categoria.
Não estranham ouvir-nos falar a língua deles?
É curioso que não. Em geral não. Acham que aprendeste noutro sítio qualquer e acham natural.
Estamos a falar de que zonas de Moçambique?
Em todas as zonas a reacção é igual. As pessoas são classificadas desta maneira e tu entras e fazes parte do seu território a partir do momento em que tens a mesma língua e respeitas a sua religião e cultura.
Qual é o teu trabalho nestas missões?
O meu trabalho divide-se em duas partes: uma mais ecológica e ligada à sustentabilidade e outra na área da investigação.
A fauna continua a dominar o continente africano?
Não, isso também já não existe. A rede humana atravessa todo o espaço.
E os animais deixam entrar os homens nos seus territórios?
Bem, estive num lugar onde seis pessoas foram comidas por leões em seis meses.
Porque é que os atacaram?
Já não tinham mais nada para comer. Este é um sistema determinado pelo homem, que se impõe no espaço, no acesso à água, na delimitação do território e há animais que não aceitam estas fronteiras.
É como se os animais tivessem sido invadidos pelos homens?
Sim. É uma luta terrível. Em Moçambique não há um único dia em que alguém não seja morto por um animal.
Por leões e elefantes?
E pelos crocodilos, depois pelos elefantes, hipopótamos e búfalos. Por esta ordem.
Tens medo de ser comido por eles?
Não.
Como é que não tens medo?
Pode sempre acontecer alguma coisa de surpresa, claro, e repara que eu nem sequer sou corajoso! Mas sou cauteloso sempre que vejo um animal. Não tenho nenhuma reacção nem sou como aquele australiano que ia sempre mexer nos bichos. Eu procuro ser aceite pelo animal.
A que distância consegues ver se um animal te está a aceitar?
É mais ou menos instintivo mas nós sabemos que há códigos que funcionam. Por exemplo o elefante, que é o mais complicado, comunica sempre connosco. Normalmente manda-nos embora. Abana a cabeça para mostrar que não está a gostar da nossa presença. Há uma fêmea que se destaca da manada e se aproxima para vir ter connosco para nos assustar e se ela faz aquele balanço de orelhas, muito teatral, com a tromba lançada na nossa direcção, o que temos que fazer é fugir.
E tu foges?
Claro. Temos de respeitar sempre a vontade do animal. Quando as orelhas ficam coladas ao corpo e ela recolhe a tromba, então aí já não vale a pena fugir porque já é demasiado tarde, a não ser que estejamos dentro de um carro. Se estivermos a pé, já é muito difícil escapar.
Já tiveste colegas ou amigos que foram mortos por animais?
Já tive um amigo que foi morto por um elefante, sim.
Assististe?
Não, não estava lá. Felizmente não vi. Em Pemba, onde morreu esse meu colega, quando cheguei soube que ele estava morto, mas não tive coragem para me aproximar porque é um espectáculo terrível.
Isso não te faz ter mais medos e mais consciência dos perigos?
Sinceramente não, porque não tenho de ter a proximidade no sentido de pôr a minha vida em risco, nem sou caçador.
Não provocas os animais?
Não. Nem tenho de entrar nesse território de confronto. Eu não me quero confrontar com os animais, mas há coisas que evidentemente não podemos controlar. Eu cruzo-me com cobras e às vezes com escorpiões mas temos que ter consciência de que o animal mais perigoso em África é o mosquito. É o que mata mais.
Já tiveste malária?
Já tive muitas vezes, embora durma sempre com rede mosquiteira na cama.
Com crises violentas?
Quando tinha oito, nove anos tive malária e a minha mãe ficou sempre à minha cabeceira. Houve um dia em que parecia que eu estava melhor e ela foi trabalhar, mas ao fim da manhã eu tremia como varas verdes e um vizinho levou-me para o hospital. Fiquei numa enfermaria de adultos, no quarto de uns homens negros que perceberam que eu estava mesmo mal. Era a minha primeira vez fora de casa e estava péssimo.
Também tinhas alucinações provocadas pela febre?
É terrível e há uma coisa na malária que é uma espécie de desistência. A certa altura tu desistes, há um frio interior que nos faz sentir que já estamos do lado de lá.
Como numa antecâmara da morte?
É isso mesmo. Talvez por causa disso os homens começaram a contar-me histórias e eu adormeci. E isso foi fantástico.
Lembras-te dessas histórias?
Eles começaram a contar histórias da vida deles, de quando eles eram pequenos. Um era carpinteiro e contou-me como é que fazia todas aquelas coisas com a madeira. Mas sabes?! O mais importante para mim não foram aquelas pessoas, mas as suas histórias. Aquelas histórias deram-me casa e voltei outra vez ao mundo.
"As histórias deram-te casa", eis uma expressão belíssima...
Deram-me aconchego, deram-me família e, de repente, eles eram a minha casa e a minha família e eu adormeci. A malária fez-me perceber o valor da história. Se alguém conta uma boa história, que te encanta, tu tens ali uma casa.
É isso que te faz escrever?
Eu acho que sim. Fiquei com uma espécie de vício de infância porque tive uma infância muito feliz, uma infância encantada, e tentei que essa casa, esse terreiro onde brinquei, fosse sempre o meu mundo. Tentei nunca sair daí.
Isso não é um síndroma de Peter Pan?
Não, não quero ficar criança e infantilizado nesse sentido. O que eu quero é ter essa relação mágica com o mundo. Acho que por crescermos não temos que abandonar esse pensamento mágico. Agora vejo os meus netos brincarem e percebo que eles ficam fascinados num mundo utópico. Há ali quase uma relação divina porque, de repente, o meu neto é tudo e é todos. Aos dois anos podemos ser tudo: actor de teatro, autor de ficção, astronauta, bombeiro. É aí que começa a ficção?
Interessa-te essa possibilidade de seres tudo em todos?
Sim, poder ser o outro e ser o mundo inteiro. Acho que nunca perdi isso.
Vives nos teus personagens?
Eu não vivo, eu sou os meus personagens.
És todos os teus personagens?
Sem dúvida. Gostava de contar uma história a propósito de "Jerusalém". Eu já tinha escrito este livro e até já me tinham mandado um exemplar para eu ver se havia alguma coisa que não funcionasse bem, quando me contaram que havia um velho caçador que sonhava com o espírito dos animais quando lhe diziam, por exemplo, que era preciso matar um elefante. Aí eu disse: eu quero conhecer esse velho!
Os animais também têm espírito?
Sim, não somos só nós que temos alma, os animais também têm alma e espírito. Este homem era chamado sempre que era preciso matar um elefante porque ele é brindado, tem esse dom. Fui ter com ele, atravessei um longo caminho para chegar a um lugar no fim do mundo. Andei horas e horas para chegar a casa dele.
Como é que ele era?
Quando cheguei encontrei um homem com brincos e muitos colares e perguntei-lhe porque é que se vestia assim mas ele respondeu-me: não sou eu que mando no que eu visto. E logo a seguir disse: eu não falo português, não dou entrevistas, não sei quem você é! E eu, de repente, percebi que o homem tinha razão, não posso entrar em casa de quem não me conhece para receber uma história sua.
O que é que fizeste?
Pedi aos que iam comigo para lhe pedir desculpa. Ele quis saber quem eu era e os outros disseram: este é um homem que conta histórias. E o curioso é que ele olhou para mim de dedo apontado e declarou: amanhã eu vou-lhe mostrar uma coisa que é uma história, só eu conheço a gruta onde nascem as hienas e vou levá-lo lá.
Ficaste contente?
Claro. Ah! Em toda esta conversa o homem teve na mão um facão com que fazia uma cesta de vime e há umas páginas do "Jerusalém" em que o velho Silvestre está sentado numa esteira com uma catana na mão? No dia seguinte fui ter com ele de carro e ele disse-me que não podia entrar no carro porque todo o homem que, como ele, incorpora o espírito dos animais não pode ficar fechado num espaço tão pequeno.
Como é que o convenceste?
Foi preciso abrir todas as janelas e mesmo assim mais de meia hora de argumentos para o convencer a entrar no carro, mas lá conseguimos que entrasse.
O que é que lhe disseste exactamente?
Olhe, as janelas estão todas abertas e, portanto, os espíritos podem entrar e sair quando quiserem (risos). Então ele sentou-se, apoiado na catana, e foi de olhos fechados até chegarmos. Sempre de olhos fechados, estremeceu quando chegámos a um sítio e declarou: é aqui. E começou a mostrar-me pegadas e conduziu-me por ali fora sempre com a catana nas mãos. Nesse dia eu levei-o para jantar comigo no acampamento e quando lhe estava a pedir para me mostrar outras coisas ele disse: você ainda não percebeu mas eu sou cego.
Não tinhas percebido nada?
Não. E perguntei-lhe: cego como? Então o senhor andou por aí a mostrar-me as pegadas e os lugares?E ele: não sou eu que vejo, nessas alturas é alguém que está a ver pelos meus olhos. Aquilo foi impressionante para mim. Esse velho, que eu só conheci depois de escrever o livro, já estava no meu livro. É incrível, não achas?
Acho. Este livro é um conjunto de textos escritos pelo Mwanito que, no fim, os entrega ao irmão. Inventaste tudo isto?
Sim. E só no fim é que se percebem coisas essenciais sobre cada personagem.
Sim, eu sei, mas é melhor não as contarmos para não desfazer o mistério?
Vou só dizer uma coisa: no meu livro, quando o irmão recebe os textos, pergunta como é que é possível ele ter escrito tudo aquilo sem ver, e o Mwanito responde que deixa de ser cego quando escreve. Foi isso mesmo que o velho me disse. Ele não escrevia mas tinha essa relação com a terra que via mesmo sendo cego. O mais impressionante de tudo é que eu já tinha escrito o livro quando conheci este velho.
Ou seja: é como se tivesse havido uma convocação cósmica para conheceres um homem que, mesmo sem saberes que existia, te inspirou para escrever.
É, foi qualquer coisa assim.
Se calhar ele sonhou o teu espírito antes de começares a escrever?
Sim, se calhar eu sou um bicho também e ele sonhou com o meu espírito (risos). Foi uma coincidência extraordinária.
É fantástico. Nos teus livros existe muito este lado fantástico, este pensamento mágico.Eu não tenho crença nestas coisas, sabes?!
Não sei bem em que é que tenho crença mas não sou supersticioso. A verdade é que, neste caso, este homem existe no meu livro e isso é curioso. Eu agora até trago a fotografia dele no meu computador.
Tu moras nestes personagens todos. Mas como é que eles te habitam?
Eles nascem-me do encontro com pessoas que fazem soltar outras pessoas que têm escondidas dentro de si. Desde pequeno que atribuo histórias a pessoas que me despertam e me parecem dizer que há ali qualquer coisa que é preciso revelar.
São coisas que tu intuis ou inventas para aquela pessoa?
Tenho que fazer essa confissão de arrogância: são coisas que estão dentro de mim e eu projecto nessas pessoas. Mas todas nascem de uma sombra, de uma coisa qualquer que me desperta e me faz soltar.
Voltando aos animais: como se escapa a um crocodilo?
Sabes que ali nunca se sabe quem é o crocodilo.
Como assim?
Temos de saber primeiro quem é aquele crocodilo. Se tem dono, se é um espírito e pode ser uma pessoa. Uma encarnação de alguém. Há uma história sobre um menino que andava numa escola do outro lado de um grande rio que separava a sua aldeia e os pais viviam atónitos com o filho porque ele saía de casa cinco minutos antes e chegava à escola sempre a horas. Ora, eles sabiam que ele precisaria de caminhar pelo menos uma hora para ir de casa à escola.
E o que é que acontecia?
A história que toda a gente conta como sendo indubitavelmente verdadeira é que um dia os pais seguiram o menino e viram que ele entrava na água e depois aparecia no outro lado. Essa travessia que ele fazia todos os dias era na forma de um crocodilo. De outra forma seria impossível pois o rio estava cheio de crocodilos e ele seria comido por eles. Tudo isto é possível (risos).
É possível acreditar, se quisermos, ou é possível acontecer?
(risos) É possível acreditar. Eu, pelo menos, estou disponível para aceitar.
Esse é o teu mundo mágico... Em relação aos crocodilos, como é que nos podemos defender apesar de não sabermos quem é aquele crocodilo?
Podemos sempre proteger-nos e a grande protecção é vivermos em harmonia com os outros. Essa é a grande sabedoria e se há lições que podes retirar de África essa é uma delas: é preciso criar equilíbrios à nossa volta.

( Laurinda Alves no jornal I de 05/08/09. Confira em http://www.ionline.pt/ )

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