Segundo Carlos Nuno Castelo-Branco em Grande Entrevista.
O economista diz que o modelo de distribuição da renda em Moçambique está a aumentar a pobreza, para além do fosso entre ricos e pobres, pois os de baixa renda gastam 85% dos seus rendimentos em comida, cujos preços aumentam rapidamente, quando os ricos só gastam 15%.
O presidente da República, tem chamado nomes aos que criticam o governo, apelidando-os de distraídos, apóstolos da desgraça, etc. Sendo uma das pessoas que dirige uma instituição que por vezes critica as políticas adoptadas pelo governo, sente-se visado por essas críticas?
Não. Sentir-me-ia visado se eu pensasse que sou distraído, que sou apóstolo da desgraça, etc. Se eu pensasse nisso seria afectado. mas eu não penso nisso, por isso não me afecta, nem ao IESE, nem a todas as pessoas que são sérias em relação a essas questões. Num dos últimos discursos, se não me engano, nas celebrações do 50o aniversário da Frelimo, teria dito que ia irritar os críticos. Um Chefe de Estado não pode dizer coisas desse género, deve estar acima desse tipo de questões. Deve ter a estatura do Estado suficiente para lidar com a crítica social e saber distinguir qual é aquela crítica que vem da academia ou aquela crítica social que vem da sociedade no geral.
Ele não sabe distinguir?
Se chama qualquer crítico apóstolo da desgraça, distraído, etc., está a pôr tudo no mesmo saco, e, ao fazer isso, perde a oportunidade de beneficiar do contributo social mais amplo, e não só daquelas pessoas que apenas aplaudem, porque essas não dão nenhum contributo, só estão a aplaudir, só estão a dizer que sim, a abanar a cabeça. Mas, para realmente mobilizar as forças vivas da sociedade, para mobilizar a intelectualidade, os grupos sociais activos nas diferentes frentes de luta neste país, é preciso respeitá-los.
Alguma vez foi pressionado por aquilo que fala?
Não sou pressionado, não serei e não vou aceitar nenhuma pressão. Sou um académico, o IESE é uma instituição académica, os investigadores do IESE são académicos.
O que a investigação social e económica tem estado a oferecer à planificação, também, social e económica no nosso país? Essa informação é usada por aqueles que decidem, no caso o governo e o parlamento?
Eu penso que, em parte, é usada, e, em parte, não. Vamos pegar num exemplo. há 12 anos, começou-se a discutir a questão dos mega-projectos em Moçambique. Na altura, o Banco Mundial chamou-nos loucos, o governo de Moçambique também, o presidente da República na altura não nos chamou apóstolos da desgraça, porque não é o estilo dele insultar, mas quase, não chegou lá. Hoje, é verdade que não há muita coisa que mudou, mas já há algumas mudanças. A lei do incentivo aos investimentos foi alterada, já se fala da questão da tributação dos ganhos extraordinários do capital com as transacções entre empresas que têm activos mineiros em Moçambique, que no passado ninguém queria falar. Hoje em dia, quando se fala de desenvolvimento económico de Moçambique, em qualquer fórum, seja quem for que esteja lá presente, ninguém deixa de falar dos mega-projectos, da tributação e, inclusive, o próprio governo já faz isso.
Alguns países que apoiam o orçamento do Estado já anunciaram que vão deixar de o fazer e outros estão a reduzir os valores que normalmente dão. Não será esta uma oportunidade para resolver esta questão da eliminação dos excessivos incentivos fiscais aos grandes projectos?
Eu penso que pode ajudar. Portanto, a redução da ajuda externa pode ser uma oportunidade importante para darmos os saltos que precisamos fazer, para mobilizar recursos domésticos mais intensamente e ligar as receitas do Estado ao crescimento da economia. Mas, nos últimos tempos, o governo tem recorrido ao endividamento público doméstico e estrangeiro para aliviar as pressões. Mas o endividamento público doméstico é muito caro, afecta a disponibilidade do capital para o investimento, encarece o capital para todas as actividades internas e contribui para apreciar a taxa de câmbio. Essas coisas são altamente desfavoráveis para o aumento da competitividade da economia nacional.
Quais deviam ser as prioridades para investir os recursos adquiridos através da dívida pública?
Para esse endividamento não agravar seriamente a situação macroeconómica de Moçambique, é preciso que seja aplicado em infra-estruturas, em projectos de retorno financeiro alto, que são as grandes obras públicas, as grandes obras ligadas aos grandes projectos. Isso não resolve os problemas de Moçambique, resolve, sim, os problemas de alguns interesses económicos em Moçambique; não resolve o problema de ligar aldeias umas com as outras, ligar mercados uns com os outros dentro da economia de Moçambique, ligar a agricultura com a indústria, criar um sistema de transporte diversificado, intermodal, que liga o país a baixo custo, etc. Essas coisas não são possíveis de resolver desta maneira.
Como, então, enquadra o projecto da construção da Ponte Maputo-Ka Tembe e as estradas Ka Tembe-Ponta D’Ouro e Boane Bela Vista?
Estes projectos de ponto de vista de prioridades nacionais deveriam ficar muito em baixo na lista. A estrada Grande Circular de Maputo, por exemplo, pode argumentar que vai desentupir a cidade do ponto de vista de trânsito. Vai desentupir para as pessoas que têm carros pessoais, a questão principal da cidade de Maputo não são as pessoas que têm carros pessoais, mas sim é por que é que as pessoas têm que ter carros pessoais para circular? Por que não podemos ter sistemas de transporte público eficazes, que vão desentupir a cidade? Precisamos de gastar biliões de dólares em novas estradas? Esse dinheiro podemos usar para outras coisas. Se eu pensasse na cidade de Maputo, ia pensar não tanto nos carros que estão a entupir a cidade, mas é nas pessoas que estão à espera do transporte público, essas pessoas que não têm carros são a grande maioria. Talvez daqui a alguns anos, quando nós conseguirmos fazer circular o arroz, a batata, o tomate no país, fazer as pessoas circularem, irem para emprego, as crianças irem à escola, quando nós conseguirmos fazer isso em diferentes pontos do país, então, vamos pensar em projectos que nos levam para outro nível, mas nós já estamos a pensar nesses projectos.
Recentemente, Graça Machel disse, numa entrevista na TVM, que as desigualdades sociais, ou seja, o fosso entre ricos e pobres tende a crescer em Moçambique. Concorda? E como se pode resolver isso?
É verdade, mas eu gostaria de explicar como é que isso é visível na própria estatística. Não é só o fosso entre os ricos e pobres que está a aumentar, mas o número de pobres também está a aumentar. É que as pessoas de rendimento baixo gastam uma grande proporção do seu rendimento, 80 a 85%, na comida e outros bens e serviço básico, e as pessoas de alto rendimento gastam uma proporção muito pequena naquilo que são os bens e serviços básicos, a volta de 15% do seu rendimento. O que acontece é que andamos a falar que a nossa inflação anda a um dígito, cerca de 7%, e andamos felizes com isso. A inflação média não é um bom indicador de como é que o rendimento das pessoas é afectado, particularmente as de baixa renda. Se desagregamos a inflação, e quando olhamos para a inflação de bens alimentares, verificamos que ela atingiu, em média, 50% mais alta do que a inflação média do país, de cerca de 11,5%. Vamos fazer as contas, se eu gasto 15% do meu salário a comprar comida, esta inflação afecta, apenas, 15% do meu rendimento, e se eu gasto 85%, ela incide sobre praticamente todo o meu salário. Se sou uma pessoa de baixo rendimento, sou muito mais afectado pelos preços dos produtos alimentares, não é pela inflação média, não é pelo que acontece com os preços dos carros, mas com o preço do transporte público, combustíveis domésticos, etc. Isso faz com que a distribuição do rendimento real seja feita de tal maneira que prejudica as pessoas de baixo rendimento. o resultado disso é que se eu sou pobre, vou comprar as coisas cujos preços sobem mais depressa, e se eu sou rico, vou comprar as coisas cujos preços sobrem mais devagar. O problema é que as pessoas não comem carvão, as pessoas não vestem gás, as pessoas não são tratadas no hospital com alumínio. O problema na nossa economia é que nós somos capazes de produzir e escoar o carvão, somos capazes de produzir e escoar o alumínio, somos capazes de produzir e escoar gás, mas não somos capazes de escoar o arroz, a batata, o tomate, não somos capazes de produzir e escoar os bens mais básicos que as pessoas usam. E pior é que não somos capazes de ir buscar o rendimento do alumínio, do carvão e do gás e usar esse rendimento para alargar a base produtiva do país e ligar vilas, aldeias, mercados agrícolas e industriais, e pôr a comida onde as pessoas trabalham e precisam. E, em contrapartida, somos capazes de pensar na ponte para Ka Tembe, a Circular da Cidade de Maputo, a Linha Férrea Sul-Norte e o Aeroporto Internacional de Nacala.
Francisco Mandlate, O País