Thursday 23 July 2015

Perguntaram-me se iria a Moçambique para o julgamento* - Por Carlos Nuno

Caros amigos e colegas,
Como talvez saibam, a Procuradoria-Geral da República (PGR) de Moçambique está a preparar o julgamento de dois casos que, embora separados, estão estreitamente relacionados. O primeiro é contra mim, o outro é contra os jornalistas Fernando Mbanze e Fernando Veloso. O tribunal fixou a data do julgamento para 3 de Agosto do corrente ano, mas o meu advogado, o Dr João Carlos Trindade, apresentou um pedido de adiamento para 31 de Agosto. Aguardamos ainda a decisão, que se prevê para breve, mas, até lá, a data oficial do julgamento é 3 de Agosto. As acusações são, no meu caso, de crimes contra a segurança do Estado por difamação do antigo Presidente da República. F. Mbanze e F. Veloso, do Media Fax e Canal de Moçambique, dos dois jornais que publicaram o meu post do Facebook, são acusados de abuso da liberdade de imprensa.
Tenho recebido sobre este caso inúmeras mensagens de solidariedade de amigos, colegas, activistas e outras pessoas que não conhecia. Não é possível descrever quão importantes essas palavras e gestos de solidariedade são para mim e para Fernando Mbanze e Fernando Veloso, assim como para as nossas famílias e equipas de defesa. Ficamos-lhes imensamente gratos por estas expressões de solidariedade.
Gostaria de aproveitar esta ocasião para responder a algumas perguntas que me têm sido colocadas em relação ao meu caso.
Estou em Manchester e aqui vou continuar até uns dias antes do julgamento (a data exacta depende de quando o julgamento terá lugar, no dia 3 ou 31 de Agosto).
Perguntaram-me se iria a Moçambique para o julgamento. Não tenho qualquer dúvida de que vou. O que está em jogo não diz respeito só a mim, são questões muito mais amplas. Eu recuso-me a ser visto como um exilado político, não cometi nenhum crime, nem fiz nada de que me envergonhe. Se a PGR quer ir para diante com o julgamento, irei usá-lo da melhor maneira possível para a plataforma de luta pela liberdade de expressão, de imprensa, de pensamento e debate político aberto sobre as questões sociais e económicas que levantei no post do Facebook, e pelas quais somos agora acusados de difamação e abuso da liberdade de imprensa. Seria, claro, mais seguro e confortável se não houvesse julgamento e os casos fossem encerrados. Porém, uma vez que vão por diante, devemos tirar proveito disso. Independentemente do resultado, quer sejamos condenados ou ilibados, se o debate decorrer abertamente, nós e Moçambique saímos a ganhar.
Algumas pessoas perguntaram-se o que podem fazer para ajudar. Há várias maneiras diferentes, mas igualmente importantes de ajudar. A Amnistia Internacional está já a organizar uma campanha, e devem receber em breve uma petição para assinarem. A petição será depois enviada para o Governo de Moçambique, embaixadas de Moçambique em várias partes do mundo, embaixadas de países estrangeiros em Maputo e os media. Uma forma de apoio é assinar e circular esta petição. Podem igualmente ajudar por meio de cartas que queiram escrever e enviando-as para as instituições referidas acima. A publicação de textos nos media moçambicanos e no estrangeiro pode também ser útil. Por isso, se conhecerem jornalistas interessados, ou se puderem suscitar o interesse de jornalistas por estas questões, não hesitem em contactá-los. Podem também escrever aos vossos deputados no Parlamento. Podem referir o meu estatuto de investigador associado da Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres (SOAS)e do Instituto de Políticas e Gestão de Desenvolvimento da Universidade de Manchester, assim como a minha associação às revistas académicas ROAPE (Review of African Political Economy) e JSAS (Journal of Southern African Studies), duas das mais importantes publicações dedicadas a questões de desenvolvimento da África subsariana, regidas por revisão anónima por pares. Não hesitem em servir-se de outras redes vossas que pensam que possam contribuir para reforçar a base de apoio. Tenho plena confiança de que a vossa experiência e criatividade poderão fazer desenvolver muitas outras formas de solidariedade. A vossa solidariedade transmite-nos esperança e a esperança é como uma alavanca movida pela nossa determinação de vencer o debate e de vencer o caso legal.
Gostaria, porém, de tornar claro um ponto. É evidente que o Fernando Mbanze, o Fernando Veloso e eu queremos vencer por razões que são também pessoais. Como imaginam, nós não queremos ir para a prisão, especialmente quando não cometemos nenhum crime. Os nossos filhos, famílias e amigos não querem que vamos para a prisão, nem que sejamos punidos por crimes que não cometemos. No entanto, o vosso apoio, na minha opinião, não deve concentrar-se primeiramente ou exclusivamente em sermos ilibados. Sermos ilibados deve ser um dos principais resultados em termos pessoais e em termos de justiça. Mas a luta deve ser pelas questões que estão em jogo e pelas quais lutamos diariamente. Logo, o foco da luta deve ser o direito, garantido na Constituição, à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa, à liberdade de investigação científica, à liberdade de debate político, em suma, o direito de exercício da cidadania de cada um.
O apoio deve igualmente incidir nas questões levantadas no post do Facebook, nomeadamente o crime organizado, a exclusão política, social e económica, a pobreza da maioria apesar do grande crescimento económico, a subida meteórica da dívida pública, para financiar a acumulação privada de capital e o concomitante uso dos cargos públicos para enriquecimento pessoal. A questão é ainda a responsabilização dos detentores de cargos públicos pelas suas acções e o dever de ouvir a crítica quando os cidadãos que os elegeram exigem satisfações quando esses detentores de cargos públicos não cumprem as suas responsabilidades. É necessário também lembrar que qualquer campanha deve sublinhar a intensa pressão política que está a ser exercida sobre o sistema judiciário desde o início deste caso. Os jornalistas e eu devemos ser ilibados vencendo o debate das questões fundamentais. Se vencermos nas questões fundamentais, ganharemos o julgamento, independentemente de qual venha a ser o resultado legal. Devemos igualmente lembrar-nos de que se o caso contra mim perder, o caso contra Mbanze e Veloso também cairá por terra – eles não abusaram da liberdade de imprensa, mas simplesmente, ao abrigo desse direito, publicaram o que consideraram um contributo para o debate público sobre questões fundamentais para Moçambique.
Alguns de vocês perguntaram-me se podiam dar uma contribuição financeira para os nossos custos de defesa legal. Eu ainda não defini o meu orçamento e o advogado encarregue da minha defesa tem estado a fazer esse trabalho por solidariedade até agora. É possível que as coisas mudem e venha a precisar de apoio financeiro. A minha filha mais velha, a Ruth, está a organizar várias actividades, entre elas a constituição de um fundo para ajudar nas despesas legais e de uma campanha de solidariedade, para este e/ou futuros casos. A Ruth e as pessoas a ela ligadas vão também fazer uma página no Facebook para facilitar a circulação de informações e promover e mobilizar apoio. Assim, quem estiver interessado em trabalhar desta maneira e tiver experiência e ideias sobre como gerir as coisas de forma correcta e rigorosa, pode contactar-me e eu ponho-os em contacto com a Ruth.
Queria ainda responder a outra pergunta que me foi feita, sobre porque escrevi o post e se não estava ciente das consequências. Nos finais do mês de Outubro de 2013, num contexto político e económico explosivo, o Presidente Guebuza deu uma entrevista nos media nacionais em que disse quatro coisas que cristalizam as tensões e contradições dos seus anos de governação. São estas: 1) que confiava plenamente nas forças de segurança e suas chefias, não vendo necessidade para reorganização, apesar de grande aumento de crime organizado, raptos e assassínios sem que ninguém tivesse sido preso, incluindo o papel directo das forças de segurança na repressão política. 2) Que os media eram responsáveis pelo clima de instabilidade e um regresso da guerra, enquanto o governo estava aberto a iniciativas de paz. 3) Que as críticas às relações estreitas e promiscuidade entre os seus interesses políticos e privados eram infundadas, porque tinha transferido todos os seus negócios pessoais para o nome da sua filha, filhos e amigos quando se tornou Presidente. E que 4) a pobreza não estava a diminuir tão rapidamente como se esperava por causa da mentalidade das pessoas e da cultura de ser pobre, quando, na verdade a pobreza não tinha diminuído nem um pouco, apesar do acelerado crescimento económico. No fim, como de costume, chamou antipatriotas aos seus críticos. Declarações como estas eram proferidas todos os dias, mascarando ou contradizendo a realidade. Muitas pessoas falavam e queixavam-se, mas ninguém avançava para denunciar declarações como estas. Assim, avancei eu. Era o meu direito e o meu dever como cidadão fazê-lo.
Relativamente às consequências, eu tinha várias expectativas:
1) Não esperava que pôr um post no meu Facebook me levasse a tribunal sob a acusação de crimes contra a segurança do Estado. Mas o facto de isto ter acontecido só confirma que o meu texto no Facebook estava correcto quando escrevi que o tipo de governação do Presidente Guebuza estava a arrastar o país para um território muito próximo do Estado fascista.
2) Esperava que as acções e o pensamento políticos que denunciei e critiquei no meu post e os quais eram crimes reais contra a segurança do Estado e o bem-estar dos moçambicanos, fossem investigados. Esses crimes denunciados não foram investigados, nem sequer mediante pedido formal e resultaram em violência. Um pedido recente dos partidos da oposição acerca das normas e práticas de procurement da empresa pública EDM, com base em fortes suspeitas e evidências preliminares de corrupção da EDM e companhias de figuras políticas destacadas, das suas famílias e dos seus associados de negócios, foi rejeitada pela bancada da maioria Frelimo, sem explicação credível.
O debate sobre o negócio duvidoso da EMATUM, que supostamente é uma companhia de pesca de atum, foi posto em questão por membros dirigentes do partido, declarando-o um assunto de segurança nacional, ou seja, criando um clima de medo que encerre o debate. Ora trata-se de um projecto que adicionou 850 milhões de dólares à dívida pública e que evidencia sinais claros de corrupção e uso de crédito para despesas militares não declaradas. O crime organizado prospera sem que as autoridades tomem quaisquer medidas. Depois de dez anos no poder, os membros da família directa e os associados de negócios do antigo Presidente Guebuza contam-se entre as pessoas e os grupos económicos mais ricos em Moçambique. Este estado de coisas vem demonstrar que as minhas declarações no Facebook estavam correctas, quando disse que o poder político estava a ser usado para enriquecimento pessoal, repressão política dos críticos, assim como para financiar a emergência de oligarquias financeiras nacionais, à custa do aumento da pobreza, da exclusão social, política e económica.
3) Esperava que o tom e a intensidade da crítica e o debate sobre o estado da nação aumentassem e se alargassem, o que aconteceu e continua a acontecer. Não quero com isto dizer que há uma relação de causa e efeito ente o meu post e a intensidade do debate, mas apenas que o meu post foi parte de uma tendência no debate político nacional, e que, porventura, contribuiu para encorajar o desenvolvimento do debate aberto/alargado.
Não hesitem, por favor, em fazer-me qualquer pergunta ou sugestões que tenham.
Por último, peço que não se esqueçam que todos participamos na mesma luta fundamental contra o neoliberalismo económico e a sua dominação financeira, contra a repressão política, pelo direito de participar em manifestações, do direito à greve, e à luta pelo direito de definir e escolher quais são, ou podem ser, as alternativas reais. O ataque do partido conservador dos Tories aos direitos dos trabalhadores no Reino Unido e, na Europa, o ataque à Grécia e a Portugal, o ataque do Estado sul-africano e do capital mineiro que resultou no assassinato dos mineiros, o ataque do capitalismo financeiro e do Estado fascista às alternativas e à liberdade em Moçambique são igualmente parte do mesmo todo. Esse todo consiste no capitalismo monopolista à escala mundial que tenta forçar os cidadãos a pagar pela crise de acumulação e resistir aos desafios que lhe são lançados, às tendências de mudança. Vamos lutar e ganhar estas lutas em conjunto. Só em conjunto conseguiremos vencer.
Uma vez mais, agradeço-lhes sensibilizado a vossa expressão e demonstrações de solidariedade e apoio.
A Luta Continua!
Por Carlos Nuno * Título da responsabilidade do @Verdade



A Verdade

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