Na semana passada, casos de desmaios de alunas na Escola Quisse Mavota, em Magoanine, arredores de Maputo, fizeram manchete e despoletaram um debate em que a psicologia, o místico e as ciências sociais foram convocados para a explicação do fenómeno. Nesta quarta-feira, na ressaca do espectáculo mediático-sociológico da semana passada na capital do país, o sociólogo moçambicano Elísio Macamo insurgiu-se contra o que se pode inferir como culto ao charlatanismo e homenagem à ignorância, sob o manto de cultura tradicional, na forma e no conteúdo da (pro)cura de explicações para aquele fenómeno aparentemente estranho.
O QUADRO CHARLATAO
Radicado na Alemanha, onde fizeram escola os Racionalistas, o académico moçambicano assina um artigo essencialmente pedagógico mas não deixa de atirar contra alguns jornalistas e cientistas sociais que se apressaram em “especulações”. Tais especulações, segundo ele, “por serem demasiado rápidas e insensatas, têm tido o condão de mistificar a coisa, confundir a opinião pública e fazer má publicidade da nossa cultura.” O sociólogo critica a “apetência que alguns jornalistas têm de enveredar pelo lado irracional na abordagem de fenómenos sociais que ultrapassam as suas faculdades analíticas”.
Um dos expedientes denunciados e qualificados por Elísio Macamo como “uma manifestação nociva” dessa tendência jornalística, é “a consulta dos ditos médicos tradicionais” pessoas que ele considera estarem “evidentemente a leste das coisas”, pelo que deixaram transparecer as suas declarações sobre o “caso Quisse Mavota”. Sempre directo nas suas intervenções, o sociólogo manifesta- se alarmado pela “forma ávida como alguns cientistas sociais pegam em fenómenos desta natureza para legitimarem a sua actividade”, o que na sua opinião completa “o quadro charlatão”. Naquilo que poderia ser o rascunho para um “Ensaio Sobre o Charlatanismo”, Macamo considera que tais práticas dos profissionais destas duas classes dão azo ao uma “tendência natural com que um bom número de gente decente e sensata está disposta a dar o benefício da dúvida a crenças bizarras entre nós”.
Ele culpa, por um lado, a “alguns jornalistas de formação duvidosa que, dentre outras coisas, dão demasiado tempo de antena a charlatães como os chamados ´médicos tradicionais ´”. Por outro, aponta o dedo “a alguns cientistas sociais que levam ao extremo a importância de valorizar o ponto de vista das pessoas sobre as quais eles fazem as suas investigações até ao ponto de deixar pairar no ar a ideia de que possa haver algum toque de verdade nessas crenças”.
CULTURA TRADICIONAL E CULTO A IGNORANCIA
Elísio Macamo constata no artigo que nos últimos 15 anos, na nossa sociedade, tem havido desmaios da razão: - quer ao recorrer-se a explicações totalitárias e absolutistas do social com base na nossa pretensa cultural tradicional; - quer pela decisão política do Ministério da Administração Estatal quando, nos anos noventa, reabilitou a chamada autoridade tradicional “com base nas mais fantásticas razões que a antropologia é capaz de produzir”… No artigo que abre a série dedicada aos “desmaios na Quisse Mavota”, Elísio Macamo chama a atenção para definições (da nossa cultura) reducionistas e esvaziadas de conteúdo, uma atitude por ele considerada “irracional e obscurantista.”
“Numa altura em que muitos de nós têm o privilégio de apreender o mundo através da ciência, temos mais ou menos a certeza sobre as suas características e comportamento típico, a crença na influência de defuntos sobre o estado de saúde de rapariguinhas de escola não constitui expressão da nossa cultura tradicional”, argumenta o professor. Para o sociólogo, essa crença no “vingança dos defuntos” sobre as alunas da Quisse Mavota não passa de “expressão de ignorância por parte de algumas pessoas, ignorância essa que precisa de ser abordada como o que é – nomeadamente, ignorância – e não como manifestação cultural.”
A cultura, defende Elísio Macamo, “não está no que as pessoas pensam sobre a influência de espíritos sobre seja o que for; a cultura está nas consequências éticas que gente que pensa – formada ou não – tira da morte e da vida”. “Acreditar em coisas sem sentido não é manifestação de cultura tradicional. É ignorância”, sentencia o académico no artigo inaugural da série em que se propõe reflectir sobre este fenómeno que marcou a agenda mediática na semana passada.
Num estado de liberdade de expressão como o nosso, em que a opinião publicada tende a dominar o espaço público e a ganhar hegemonia como “verdade”, compreender os avisos de Elísio Macamo sobre os riscos de legitimar o culto ao charlatanismo e à ignorância convidanos a bater na tumba do filósofo francês Condorcet, que um dia advertiu: “Sob a mais livre das constituições, um povo ignorante é sempre escravo”. Não que queiramos convocar defuntos, mas Bob Marley também já apelou, na sua canção da redenção: “emancipem-se da escravatura mental, ninguém senão nós pode libertar a nossa mente”. Sobre-aviso!
MILTON MACHEL, em A Verdade.
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