Wednesday, 9 March 2011

Será o islão o problema?

A Irmandade Muçulmana tem usado muitas vezes o slogan "A solução é o islão". No Ocidente tira-se quase sempre a conclusão oposta: "O problema é o islão"

CAIRO - Um extraterrestre perspicaz que tivesse vindo parar à Terra há um milénio teria partido do princípio de que as Américas acabariam por ser colonizadas, não por europeus primitivos, mas pela civilização árabe, mais avançada - e que em resultado disso hoje todos nós falaríamos árabe.
No entanto, depois de 1200, mais ou ou menos, o Médio Oriente estagnou economicamente e hoje o que o distingue são os níveis elevados de analfabetismo e os poderes autocráticos. Assim, os recentes movimentos pró-democracia conduzem-nos a uma questão básica: porque demorou tanto? E também a uma outra, politicamente incorrecta: a razão do atraso do Médio Oriente poderá ser o islão?
O sociólogo Max Weber, entre outros, argumentou que o islão é por natureza um mau fundamento para o capitalismo, e alguns apontaram em particular os pruridos do islamismo em relação ao pagamento de juros sobre empréstimos.
No entanto, esta ideia não me parece correcta. Já houve outros especialistas que observaram que em muitos sentidos o islão favorece mais o comércio que as outras grandes religiões. O profeta Maomet foi um comerciante bem-sucedido e com uma simpatia pelos ricos que Jesus não teve. Além disso, se pensarmos, por exemplo, no século xii, o Médio Oriente é um centro de cultura e comércio de importância global. Se o islão hoje é um travão da actividade económica, porque não o foi então?
No que diz respeito à hostilidade aos juros e ao sistema de empréstimos, encontramos ensinamentos semelhantes em textos judaicos e cristãos, além de que aquilo que o Alcorão proíbe não não são os juros enquanto tais, mas a "riba", uma forma extrema de usura que podia conduzir à escravização dos que não conseguiam pagar as dívidas. Até ao fim do século xviii, houve tantos árabes como cristãos ou judeus a emprestar dinheiro no Médio Oriente. Ainda hoje, mesmo nos países muçulmanos mais conservadores, os empréstimos a juros são correntes.
Muitos árabes têm uma explicação alternativa do atraso da região, que é o colonialismo ocidental. Parece-me igualmente falaciosa, além de que a cronologia não bate certo. "Apesar de todos os motivos de descontentamento, o período colonial operou uma transformação fundamental da região, e não a estagnação. Os níveis de alfabetização e de escolarização melhoraram, e não os de analfabetismo, e o mesmo aconteceu com o bem-estar económico", escreve Timur Kuran, historiador da economia da Duke University, num livro meticulosamente documentado, "The Long Divergence: How Islamic Law Held Back the Middle East".
O livro de Kuran oferece a melhor explicação que conheço da razão por que o Médio Oriente ficou para trás. Depois de muito esgaravatar em velhos documentos comerciais, Kuran chegou à conclusão de que aquilo que atrasou o Médio Oriente não foi o islão enquanto tal, ou sequer o colonialismo, mas várias práticas islâmicas que hoje deixaram de ser relevantes.
Trata-se de uma argumentação sofisticada, a que uma simples coluna de jornal não pode fazer justiça, mas um dos seus exemplos é o direito de transmissões. De maneira geral, os sistemas ocidentais passavam todas as propriedades, intactas, para o filho mais velho, o que preservou os grandes domínios. Pelo contrário, a lei islâmica estipulava uma divisão muito mais equitativa dos bens (incluindo entre as filhas), o que fragmentava as grandes fortunas. Uma das consequências foi não se ter dado o processo de acumulação de capital, o que impediu grandes investimentos numa revolução industrial.
Kuran também estuda as sociedades islâmicas, que tenderam a tornar-se veículos de comércio. Tinham a característica de se dissolver com a morte de qualquer membro, de maneira que habitualmente incluíam poucos elementos - o que dificultou a concorrência com as empresas industriais e financeiras europeias, apoiadas em centenas de accionistas.
O aparecimento de bancos na Europa fez as taxas de juro britânicas baixarem dois terços, o que esteve na origem da Revolução Industrial. Esta queda só aconteceu no mundo árabe durante o período colonial.
No século xxi estes obstáculos tradicionais já deixaram de o ser. Actualmente os países muçulmanos têm bancos, empresas e bolsas de valores, além de que a lei das heranças deixou de ser um obstáculo à acumulação. Assim, se o diagnóstico de Kuran estiver correcto, podem retirar-se dele consequências positivas para a região - e o boom recente da Turquia faz pensar num renascimento próximo.
Contudo, continua a haver um desafio psicológico a vencer. Muitos árabes acusam os estrangeiros de serem responsáveis pelo seu atraso, e isso leva-os a rejeitar a modernidade e o mundo exterior. É uma pena que uma região onde em tempos se fez ciência de vanguarda (o que explica por exemplo a origem árabe da palavra "álgebra") esteja actualmente numa posição de tão grande atraso na educação, em especial no que diz respeito às raparigas.
A crise do mundo árabe pode proporcionar a oportunidade de um novo começo. Espero poder conversar de forma aberta com partidários de todas as posições acerca do que correu mal, e que isso constitua um novo ponto de partida para uma trajectória de esperança.
A Irmandade Muçulmana tem usado muitas vezes o slogan "A solução é o islão". No Ocidente, qualquer panorama do que se passa no Médio Oriente tem conduzido à conclusão oposta: "O problema é o islão." O trabalho de Kuran sugere, pelo menos no que diz respeito ao futuro, que a visão mais correcta é que o islão não é nem o problema nem a solução. É simplesmente uma religião - o que significa que o abismo deixou de existir, as desculpas também, e o melhor é voltar a seguir em frente.

Nicholas Kristof, Jornal i/The New York Times

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