Friday 4 March 2011

Carta aberta ao Presidente da República: Roubo, exílio, paz e justiça adiada (*)

Por Maria José Moreno Cuna (*2)
Cuamba, 27 de Fevereiro de 2011

Gostaria de confessar-lhe, Senhor Presidente da República que me perturbam profundamente os insistentes convites para nos filiarmos no Partido Frelimo, como condição para a devolução do nosso património.

Uma vez mais lhe escrevo, Senhor Presidente da República. Por um lado para reagir ao despacho exarado por Vossa Excelência que nos remete para a Justiça, “querendo”. Por outro, porque necessário se torna que não se passe por cima de alguns aspectos ligados à minha petição, aspectos esses que se não forem analisados à luz da história deste País, nunca serão cabalmente entendidos.

O historial breve de meus pais:

1. O cidadão português José Caetano Moreno, meu pai, chegou a Moçambique no longínquo ano de 1951, tendo-se fixado em Niassa.
2. Nessa altura, ele conhece a cidadã moçambicana Ana João Chukwa com que se casa, constrói todo o património e de quem tem dois filhos (eu e o João António). De uma ligação anterior com uma outra pessoa, nascera Maria Rosa, minha irmã mais velha.
3. Com efeito, depois de casados, meus pais construíram duas residências e um hotel na Cidade de Cuamba, uma propriedade agro-pecuária, uma pescaria e uma mina de pedras semi-preciosas. Eram igualmente proprietários de mais de duas mil cabeças de gado bovino.
Na sua acção quotidiana, meus pais nunca descuraram o apoio social às camadas mais carenciadas. Nos seus investimentos, não faltavam a escola e o posto de saúde, devidamente apetrechados, para seus trabalhadores, familiares e vizinhos.
4. Com a Independência de Moçambique – com a qual meu pai estava de acordo e tinha activamente apoiado – de forma natural, ele e família optou por continuar a viver neste País que aprendera a amar como seu. Durante cerca de três anos o meu pai foi responsável dos Assuntos Sociais de Cuamba, tarefa que executou com todo o zelo e dedicação.
5. O sistema social que se estava a implantar em Moçambique era, do ponto de vista do discurso, um sistema baseado numa sociedade de igualdade e fraternidade entre os homens, filosofia com a qual meu pai e toda a família estavam de acordo.
6. Alguns anos depois, com apreensão, a minha família começou a perceber que do discurso proferido às acções praticadas, a distância era cada vez maior. Num País que se afirmara, na proclamação da sua Independência, de maior justiça social e respeito pelos direitos dos cidadãos, as injustiças eram mais e mais gritantes. Surgiram os campos de reeducação de triste memória.
Com eles as prisões arbitrárias e as execuções sumárias de pessoas muitas vezes bastante próximas de minha família.
7. Sensivelmente na mesma altura, meu pai toma conhecimento, através de amigos seus bem posicionados no aparelho partidário, que estava eminente a sua detenção e encaminhamento (dele e esposa) para o campo de reeducação de Mitelela, onde já se encontravam figuras como Joana Simeão, Urias Simango e esposa e tantos outros.
8. A partir dessa altura e, perante a gravidade das atrocidades que eram diariamente cometidas no Niassa (onde era Governador o senhor Aurélio Benete Manave) sair de Moçambique com sua esposa, era uma questão de vida ou de morte. Os meus pais foram forçados a sair do País, sob risco de serem mortos.
9. Meus pais saíram numa madrugada de Setembro (dia 20) de 1978. Eles haviam sido informados, às 23 horas do dia 19 que constavam de uma lista de cinco pessoas que seriam presas e mortas, no dia seguinte.
Efectivamente, na manhã do dia 20, o Padre Estêvão, o Sr. Ramassane (funcionário da Administração) e o Sr. Floriano, foram presos – o Padre Estêvão à saída da igreja - e levados para os campos de reeducação onde, pouco depois, foram sumariamente executados.
10. Foi exactamente isto que aconteceu. Eles não saíram de livre e espontânea vontade. Foram coagidos a sair. O Governo não esperou sequer que decorressem os 90 dias preconizados na Lei das Nacionalizações.
Tratou logo de ocupar e usufruir de todas as suas propriedades, chegando ao extremo de abater todas as cabeças de gado deixadas pelos meus pais.
Diga-me, Senhor Presidente da República: havia condições para eles voltarem?
11. À semelhança do que aconteceu com muitas outras famílias, a minha família viu-se forçada a um exílio de 15 anos, exílio a que o Acordo Geral de Paz veio pôr fim. Eliminadas as causas que forçaram minha família a sair de Moçambique, retornámos.
12. Mas a Paz que veio para Moçambique não foi usufruída por todos da mesma forma. Meus pais continuaram a ser perseguidos: tentativas de envenenamento e duas minas antitanque foram colocadas para atingi-los, em duas ocasiões diferentes, no ano de 1994. Numa das ocasiões tiveram que ser resgatados e escoltados pelas forças da ONUMOZ. O objectivo tem sido, claramente, eliminar fisicamente a minha família.
13. De 1993 a esta parte, junto de quem de direito, temos reivindicado a devolução do nosso património. Paradoxalmente estes processos têm vindo a colapsar, sempre porque o expediente misteriosamente se perde...
14. Ao negar devolver o património de minha família, há moçambicanos que são altamente lesados com esta decisão.
Eu, meus irmãos e minha mãe (se estivesse viva) somos moçambicanos.
Não se trata de uma questão com um estrangeiro, português, meu pai, como Vossa Excelência quis dar a entender.
Senhor Presidente da República, as nossas diferenças políticas não devem servir de desculpa para o Governo ocupar o património de minha família.
A experiência mostra que a exclusão político-socio-económica é nefasta às sociedades. Os ventos que sopram pelo mundo, são ventos de mudança, em busca de uma melhor justiça social.
Para finalizar, gostaria de confessar-lhe, Senhor Presidente da República que me perturbam profundamente os insistentes convites para nos filiarmos no Partido Frelimo, como condição para a devolução do nosso património. Continuo a acreditar que a adesão a um partido político deve ser voluntária.
Tomara que esta minha petição seja acolhida por Vossa Excelência.
C/C
- Liga Moçambicana dos Direitos Humanos
- Embaixada de Portugal em Maputo
- Gabinete do Primeiro Ministro de Portugal
- Dr. Almeida Santos

(*) Título da responsabilidade do Canal de Moçambique
(*2) Ex-deputada da Assembleia da República e ex-chefe da Bancada da Renamo

CANAL DE MOÇAMBIQUE – 02.03.2011 , citado no Moçambique para todos

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