Sunday 20 December 2009

Pontos de sobrevivência



Museu, Anjo Voador, Benfica e Junta constituem as principais terminais de transportes rodoviários no Grande Maputo. Nos últimos anos, para além de serem pontos de partida e chegada, estes espaços tornaram-se lugares multifuncionais onde milhares de pessoas procuram sobreviver socorrendo-se das mais variadas actividades. Um mundo feito de desenrascanços.


Museu nauseabundo

O bairro chama-se Polana Cimento. O troço chama-se “Rua dos Lusíadas”, mas a zona é vulgarmente conhecida por paragem do Museu ou simplesmente Museu, devendo o epíteto ao Museu de História Natural, situado na Praça da Travessia de Zambeze. A paragem do Museu foi, desde sempre, terminal dos Transportes Públicos de Maputo (TPM) e o mercado apareceu mais tarde, ou seja, por volta da década de ´90, com a avalanche de pessoas que diariamente se fazem àqueles meandros.
Actualmente, é onde a maior parte dos transportes semicolectivos de passageiros, vulgo “chapas”, provenientes da Matola e arredores da cidade, desaguam. No Museu, o dia começa relativamente cedo, pelas 6h00 da manhã. Em grande parte oriundas dos bairros limítrofes, as vidas de uns e de outros cruzam-se debaixo do sol ou da chuva. Uns procuram sustento exercendo diversas actividades, tais como venda de bebidas alcoólicas, refeições, produtos alimentares, calçado, roupa ou lavagem de carros. Outros na rotina e nas formalidades de um emprego no escritório, nas barracas ou como empregados domésticos nas redondezas. Outros ainda, na sua maioria jovens, em uniforme escolar com as suas mochilas e livros nas mãos, buscam o saber.
Neste pequeno mundo, criado pela necessidade de sobrevivência, encontrámos Angélica Matsinhe, de 46 anos, e Fernando, de 25. A primeira ganha a vida vendendo comida. O segundo lava carros. São das poucas pessoas que sorriem, enquanto o cheiro a esgoto se entrelaça com o do frango assado. Um odor desagradável a urina toma conta do ar, perante a indiferença de transeuntes, de vendedores e da multidão que espera pacientemente pelos “machibombos” e “chapas”.
Junto à Escola Comercial de Maputo as obras da construção da paragem, quiosque e sanitário cessaram há mais de três meses. De acordo com o Concelho Municipal da Cidade de Maputo (CMCM), a paralisação das obras deve-se à incapacidade da concessionária em continuá-las e, por esta razão, o CMCM está estudar a hipótese de cancelar o contrato. Enquanto isso não acontece, as pessoas continuam a fazer as suas necessidades, sobretudo as menores, nas árvores.
Desgastada com o cheiro nauseabundo, está uma moradora que vive paredes-meias com as famosas barracas do Museu. “Quando não é o cheiro da urina é a minha parede que está molhada ou é o fumo que invade a casa, para não falar dos restos de comida e água suja que são despejados aqui à frente”, desabafa. A hora de ponta é o momento preferido para os “chapas” encurtarem as rotas. A multidão aglomera-se na paragem que mais se assemelha a verdadeiro comício, propiciando a acção de ladrões de telemóvel e carteiras.
“Nem todas estas pessoas estão à espera de chapa”, afirma uma estudante de nome Marta, que aproveita para retirar a mochila das costas, colocandoa no peito. Ouvem-se gritos, entrecortados por vozes de alguns cobradores de “chapas”: “Xiquelene; Compone; T3; Praça da OMM…” e, de seguida, dezenas de pessoas invadem as viaturas em busca de um espaço para poderem chegar a casa, ignorando as mais elementares condições de segurança. As paragens dos TPM são os únicos pontos organizados. Aqui registam-se enormes filas mas estão bem mais ordenadas. Os passageiros entram no machimbombo de forma ordeira e sem sobressaltos. Devido à enchente, alguns não conseguem e esperam a sua vez até que venha o próximo autocarro. Os idosos são os que têm mais dificuldades.

Voar por cima do Anjo

A paragem do Anjo Voador é o outro ponto de chegada e de partida de gente. Situada na baixa da cidade, próxima da fortaleza e da Praça 25 de Junho, a paragem, conhecida por A. Voador, deve o seu nome a um extinto centro social da marinha portuguesa. Provenientes de diversos pontos da cidade de Maputo e Matola, os “chapas”, raras vezes, têm a Anjo Voador como terminal, optando por violar a licença que lhes foi concedida, encurtado a rota.
À semelhança da paragem do Museu, na Anjo Voador centenas de pessoas fazem daquele lugar um posto de trabalho, transformando o espaço num lugar imundo onde o cheiro provocado pela urina e água estagnada resultante de lavagem de veículos se misturam com o de restos de peixes em decomposição.
A despeito da existência de uma casa de banho pública, as pessoas continuam a urinar nas relvas, árvores e plantas do jardim, alegando não terem dinheiro para pagar pelo uso da casa de banho. Na paragem, à medida que o tempo vai passando, para além de lugar de lavagem de viaturas, um mercado onde se vende um pouco de tudo, desde peixes e mariscos, passando por esculturas, até calçados e vestuários, ganha espaço. É frequente ver dezenas de pessoas agachadas a escolher sapatos ou peças de roupa usada. No final da tarde, o tempo de espera por um transporte, devido ao cansaço, parece interminável. Os “chapas”, quando aparecem, é a conta-gotas. “Poucos são os que vão até ao destino”, comenta Miguel Macaringue que aguarda por um “Anjo Voador/Hulene”. Acrescenta que quando escurece o local torna-se perigoso porque há indivíduos de conduta duvidosa que se dirigem à paragem fingindo esperar por transporte, quando, na verdade, procuram as coisas dos outros…



Junta(-se) tudo

Fisicamente, a terminal da Junta situa-se na rotunda entre as Avenidas de Moçambique e Gago Coutinho, nos bairros Luís Cabral e Chamanculo na cidade de Maputo. Nela junta-se um mercado, uma paragem e duas terminais, uma de transportes semicolectivos e outra de transportes interprovinciais.
O espaço herdou o nome da antiga Junta Autónoma de Estradas de Moçambique, precursora da actual Administração Nacional de Estradas. Outrora, quando as vias férreas “funcionavam”, havia ali uma estação ferroviária. Hoje, com o passar dos tempos, o local transformou-se num ambiente vocacionado a serviços informais de comércio, transporte, roubo, mendicidade e marginalidade.
Diz-se que a Junta surgiu devido às circunstâncias difíceis que o país atravessava após a guerra civil que terminou em 1992, contribuindo para a estagnação do planeamento urbano da cidade de Maputo. Foi durante esse período que a capital do país foi registando uma grande explosão demográfica. Assim, Maputo viu as costuras rebentarem quando os 500 mil habitantes, para a qual foi concebida no tempo colonial, passaram para o actual milhão, de acordo com o censo de 2007.
À primeira vista, o que chama a atenção é, sem dúvida, o caos que caracteriza o espaço. Verifica-se por ali um intenso movimento de peões e viaturas, um ruído plural e ensurdecedor de vendedeiras de pão e de bugigangas, gritos de angariadores de passageiros e do cobrador que nunca se conforma com a lotação do “chapa”.

Um espaço sociológico

Depois há o lado sociológico. O espaço distingue-se pelas convivências sociais e aprendizagens diversas, como nos deram a conhecer alguns garotos. Estes preferem a Junta à escola. Ali aprendem a sobreviver no informal, a desenrascar a vida, bem como a solucionar problemas mais pontuais. “Temos pais e casa para viver, mas preferimos a Junta porque conseguimos sobreviver daqui”, afirmam. Aliado a essa tendência, estão as diversas histórias de vida levadas a cabo por gente que assume o local como um meio para realizar sonhos e construir futuros.
Helena Jaime, de 42 anos, oriunda do distrito de Massinga, Inhambane, (sobre) vive ali desde 2004 quando veio para a capital em busca de emprego. “Vim com uma amiga que conhecia Maputo. Assim que chegámos ela abandonou-me e, porque não conhecia a cidade, decidi ficar aqui. Arranjei primeiro um emprego a lavar loiça numa casa onde se vendia comida. Hoje com o pouco dinheiro que obtive tenho o meu próprio negócio: vendo água gelada em frascos que antes continham água mineral.”
Por seu turno, Mendes Aurélio, de 28 anos, encontra-se no local há mais de três anos. Vende óculos de sol e outras quinquilharias. Segundo as suas palavras, fá-lo todos dias excepto aos domingos. Como os outros, deixou as suas raízes e veio para Maputo em busca de sustento. Ao chegar a Maputo, em Janeiro de 2006, proveniente do distrito de Mocuba, na província da Zambézia, viu naquele espaço um lugar para dar novo rumo à sua vida. A partir dali pretende realizar os seus sonhos de infância. Quer ter muito dinheiro para ajudar os necessitados, particularmente a família.
Entretanto, mais do que isso, a terminal da Junta constitui a porta de entrada e saída da capital do país. É por aqui que muita gente entra e sai de Maputo para as províncias e mesmo para o estrangeiro, principalmente para a África do Sul e Suazilândia. Os meses de Dezembro e Janeiro constituem o período de maior fluxo de passageiros. Os bilhetes são vendidos no local um dia antes a preços que variam de acordo com o destino dos viajantes.
Os autocarros levam e deixam os passageiros no local, excepto os que vêm da Beira à noite. Estes terminam na baixa da cidade e na paragem da Ronil, que faz a esquina entre a Karl Marx e a Eduardo Mondlane. Para melhorar as condições, o Concelho Municipal de Maputo está a reabilitar o espaço desde 24 de Junho último.
Entretanto, o empreendimento não tem sido bem visto pelos utentes. Segundo eles, o mesmo é fruto de uma medida tomada com vista a capitalizar os interesses fiscais da edilidade. “Se dependesse de nós, a terminal continuaria assim como está”, afirmam.


Benfica em homenagem ao clube lisboeta

Nos idos anos de 1960, o actual bairro e terminal do Benfica, na cidade de Maputo, não passava de um enorme espaço baldio. Um dia, um português adepto do Sport Lisboa e Benfica adquiriu, junto das autoridades coloniais, o espaço para desenvolver as suas actividades agrícolas. Depois, ergueu um tanque para garantir o abastecimento de água no local e baptizou a infra-estrutura de Benfica em homenagem ao seu clube.
Desde então, até aos nossos dias, a zona passou a ostentar esse nome, apesar de a 26 de Setembro de 1982 as autoridades moçambicanas terem erguido um monumento a George Dimitrov - militante comunista búlgaro - baptizando o local com o mesmo nome.
Dividido em duas partes pela Av. de Moçambique, o Benfica é simultaneamente mercado, paragem e terminal, mas é, sobretudo, tal como os outros pontos congéneres, um caos. As péssimas condições de higiene e salubridade do local fazem companhia àquela gente que diariamente é empacotada em mais de 100 machibombos.

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