Escrever sozinho acho um pouco difícil. Tenho vários amigos com quem converso, dos quais, alguns me ajudam. sempre que tenho uma ideia consulto determinadas pessoas de modo a que me dêem certos contributos. A partir daí, tomo a decisão. Porque são temas bastante sensíveis, eu não posso ser completamente egoísta na produção.
Acha que as pessoas têm medo da mudança?
Acho, sim. Sinceramente, julgo que nós fomos ensinados a ter medo da mudança. Existe esta coisa toda de estarmos reféns ao mesmo partido durante mais de trinta anos, o que nos faz ficar tão habituados a esta realidade que não conseguimos espreitar e pensar como seria se não fosse assim.
É um efeito manipulador que existe. Por exemplo, o que se diz é se a Frelimo deixar de governar, a primeira coisa que o próximo partido vai fazer é roubar(...). Não quero dizer que sou contra a Frelimo ou coisa parecida. Eu acho que se estamos a falar de democracia tem de a ver rotação de poder. Um poder absoluto para um grupo de pessoas vai corrompê-las e nós é que vamos continuar reféns.
Diz, numa das suas músicas, que não tem medo de ser calado. Não tem costas quentes e nunca foi alvo de ameaças relacionadas com as suas músicas?
De uma forma geral, não. Simplesmente uma vez fui alvo daquilo que eu considero uma intimidação indirecta. Foi a primeira vez que senti que estava a começar uma coisa mais séria para me tentar calar. Considero aquilo um processo de intimidação. Foi a única vez que senti que estavam a tentar calar-me.
Foi ouvido pela Procuradoria. De que o acusavam?
Bem, fui acusado de tentativa de...já não me lembro do termo (...), mas depois de me ouvirem, decidiram emitir uma nota que dizia nada foi encontrado que me incriminasse. Fui ilibado. Foi uma fase difícil para mim, para a minha família e para as pessoas à minha volta.
Como se sentiu nesse momento, quando estava a ser acusado pela Procuradoria-Geral da República?
Bem, tentei manter-me calmo. A primeira coisa que eu procurei saber é se eu tinha cometido um crime. Antes de entrar em pânico, procurei ajuda da Liga dos Direitos Humanos. Fui acolhido de braços abertos. Já agora, mais uma vez, agradeço à mãe Alice, como costumo tratá-la, que me apoiou desde o primeiro minuto, pondo à disposição advogados e fazendo-me perceber que eu não tinha razão para temer. Que eu estava, simplesmente, a exercer um direito que tenho de me expressar. Fui aconselhado a não andar em sítios muito concorridos. há quem chegou a dizer-me que tinha de ter cuidado porque, por exemplo, podia morrer por envenenamento. Senti, de perto, um pouco a possibilidade de partir desta. Hoje em dia, se calhar, sou um pouco precavido. Embora saiba que se me quiserem despachar, não vai ser problema, sou um pouco precavido por causa disso.
Sentiu isso como uma atitude deliberada do poder político para o calar?
Sim, senti. Não posso prová-lo. Aliás, nós estamos muito à volta disso. Há muita coisa de que quase temos a certeza, mas que não podemos provar. Eu não posso provar. Mas sentir, senti.
Mas antes disso, sentiu alguma pressão por causa do trabalho que faz, da linha que escolheu?
Sempre. Eu nunca tive, digamos, paz desde o momento que decidi enveredar por esta linha. Nunca tive paz, porque sempre tive gente de vários sectores da sociedade a tentar aconselhar-me. Aquilo que eu chamo “povo” sempre deu-me força. Até aos dias de hoje, as pessoas (o povo) quando me encontram, sempre me encorajam. mas as pessoas que estão ligadas ao governo, ao partido que está no poder, ligadas directa ou indirectamente, simpatizantes ou algo parecido, sempre e de várias maneiras me aconselharam a parar.
Começou com “Mentiras da Verdade” e a seguir veio a música “Marcha”. No primeiro tema, parece fazer constatações. No segundo, parece já levar o seu esforço para mais adiante. Parece que passa, digamos, para a acção. um convite à insurgência. É esta lógica que está subjacente nas suas músicas? um apelo a uma acção permanente?
Sim. tenho estado a combater o adormecimento da sociedade. Quando digo “Ladroes fora, corruptos, assassinos fora”, quero mesmo dizer isso. Não quero dizer outra coisa. Eu acho que todos nós temos de ser polícias. Porque esta coisa de mudança não é simplesmente um processo onde o povo está contra a minoria que manda. Não é só isso que eu quero dizer. Se as pessoas ouvirem atentamente a versão que está no disco, que é mais longa, eu digo, mesmo entre nós. não é atirarmos as culpas. Por exemplo, a corrupção existe a nível da função pública e deve ser combatida. É certo que, eu penso, o exemplo deve vir de cima. Se temos casos de corrupção a serem abafados, por exemplo, se um ministro que está a ser acusado, está à beira de sair ileso desse processo todo, por que é que eu cidadão, que ganho muito pouco, não vou usar essa via ilegal?
Estão a faltar modelos ainda?
Sim, estão a faltar modelos. A nossa sociedade carece muito de modelos. Eu acho que isto é, se calhar, uma coisa boa que podíamos ir buscar no sistema anterior - o socialismo. Acho que é algo que se impunha. Os governantes, para além de governar, devem ser modelos. Isso é muito importante. Mas, atenção, não estou aqui a querer dizer que a partir de agora, se um ministro é corrupto, eu tenho de ser também corrupto. Eu estou a querer dizer que é importante que se analise esse processo todo antes de se tirar conclusões.
A sua música parece estar em contra-mão com o discurso político do momento. Vejo o exemplo na música “Combatentes da fortuna”. Fala de combater a riqueza absoluta antes da pobreza absoluta, porquê?
Só para corrigir, isso pertence ao tema “A Marcha” e, realmente, falo disso. Se calhar, fosse bom exercício trocar um pouco os papéis. As pessoas que detêm o poder passassem um pouco para o lado de cá (dos sem poder) e tentarem perceber o que é que o cidadão sente, quando acorda de manhã: falta de pão, graves problemas de transporte. Irem para a avenida Guerra Popular, local por onde sempre passo. É uma vergonha ver o governo moçambicano a desresponsabilizar-se e entregar os transportes aos privados. Se as pessoas que estão no poder passassem um pouco para este nosso lado e, depois, olhassem para as regalias todas que têm, iriam perceber a raiva, a revolta que o povo sente. Se calhar, o povo moçambicano é pacífico ou coisa parecida. Sinceramente, existe uma série de regalias que os homens do governo têm e que acho serem completamente absurdas, a partir de tais carros protocolares de que tanto falam, passando pelo facto de terem tudo pago, até aos salários astronómicos que os nossos deputados recebem, enquanto as pessoas que realmente trabalham todos os dias ganham muito pouco. Sinceramente, por que é que se está a alocar uma boa parte daquilo que é o orçamento do estado para sectores como a defesa, a guarda do presidente? Ouvir o que vai ser o orçamento do estado e percebe-se que se está a deixar reduzir o orçamento em áreas-chave, como a saúde. Esta distribuição de riqueza está errada...
Sendo um artista de intervenção social permanente, acha que o que escreve e canta corresponde, de facto, ao sentimento de parte significativa dos moçambicanos? Acha que os moçambicanos se revêem nas letras que o Azagaia escreve?
Bem, quando escrevo, principalmente falo daquilo que eu sinto e sou. Como um ser que está integrado numa sociedade, onde existem outras pessoas iguais a mim. São essas pessoas que sentem o mesmo que eu sinto. Pelas respostas que eu tenho das pessoas que ouvem a minha música, penso que sim.
Ou o Azagaia funciona como um escape para aquelas pessoas que não têm coragem de expressar o que têm para dizer...
Penso que sim, embora ache que há responsabilidades que deveriam ser partilhadas. Devia haver mais gente a fazer o mesmo, porque um homem ou uma pessoa só não é capaz.
Azagaia notabiliza-se por dizer tudo quanto pensa. Vou buscar uma frase do filosofo Aristóteles que diz “o homem prudente não diz tudo quanto pensa, mas pensa tudo quanto diz”. Não acha que, de alguma maneira, em alguns momentos, o Azagaia é imprudente?
Eu não digo tudo quanto penso.
Acha que há muita gente que gostaria de dizer o que Azagaia diz, mas não diz? Um escritor congolês disse, um dia, que “nenhuma sociedade progride se não fizer a sua autocrítica e se os pensadores críticos não se puserem contra a corrente dos bem pensantes”. O Azagaia revê-se nessa frase certamente...
Sim, acima de tudo. ouvi pela primeira vez esta frase com o sociólogo Carlos Serra. Agora, já estou a ver de onde é que vem. Se nós estamos na luta para acabar com a violência doméstica, o que é que estamos a fazer concretamente? Estamos a aceitar que existe violência, estamos a criticar esta violência, estamos a arranjar meios legais para penalizar as pessoas que praticam esta violência? É este processo que existe nos pequenos problemas sociais. É o que deve acontecer a nível global. Não é algo de outro mundo. Esta coisa de autocrítica é fundamental...
Tendo esse seu carácter politicamente incorrecto nas suas líricas, qual é a sua relação com os media públicos? Como sente que é recebida a sua mensagem? Passam normalmente as suas músicas ou há tendência de evita-las? Como é que vê isso?
Se formos a olhar para a TVM, que é o canal público que o estado financia, facilmente perceberemos que não vai querer ir contra aquilo que são as posições políticas do governo do dia. E, quando censuram a minha música, quando não passam a minha música, simplesmente estão a confirmar isso.
Sente que existe essa censura na sua música?
Existe claramente. As minhas músicas, os meus vídeos, basicamente não passam na TVM (...). Caso similar verifica-se com a Rádio Moçambique, que também censura a minha música. Raras vezes passa ou não a passa tanto quanto as outras músicas. Já soube de ordens internas para que as minhas músicas não passassem. E depois as ordens internas são realmente muito boas para cumprir com os seus objectivos.
Que ideia é que o músico Azagaia tem do nosso país fora aquilo que ouvimos nas suas músicas?
Eu penso que Moçambique é um país jovem. Tem gente com vontade de trabalhar, o que é propício para o desenvolvimento. Estamos cada vez mais a descobrir e a potenciar os nossos recursos naturais. Temos uma juventude que pode ser acordada. Não há nada que se possa dizer isto é impossível fazer em Moçambique. Acho que é um país próspero.
Mas há quem ouve as suas músicas e fica com a percepção de que está tudo mal. Será isso?
Não é bem isto, que esteja tudo mal. Mas, se calhar, eu seja o músico que aponta os problemas. E quando aponto os problemas é que quero soluções. Não que queira dizer que esteja tudo mal. É um pouco por aí. Cada artista tem o seu carácter.
O Azagaia é um militante político na forma como faz a música. Uma das suas músicas diz que pertence ao partido da verdade e que não tem assento no parlamento.
A política não é feita só no parlamento. A política é feita todos os dias. Um chefe de família tem uma política dentro de casa. Então eu acho que todos somos um pouco políticos. Se calhar, quando me chamam artista político na tentativa de me catalogarem e me afastar, pôr-me num grupo (...). Existe uma tendência das pessoas não gostarem de política. Dizem que a política é chata. Mas isto é errado. Se calhar, a culpa não seja muito das pessoas. Se a política fosse explicada de uma forma mais acessível para as pessoas e se essas pessoas percebessem como ela interfere nas suas vidas, podiam entrar mais para isto. Dizer que eu sou um militante político penso que sou como o somos todos nós.
Tem simpatias por algum partido especificamente?
Tenho simpatia, sim, por um partido político. É o MDM que foi recentemente criado. Sou simpatizante do partido.
O que é que o faz acreditar no MDM?
Antes de eu acreditar no MDM, sempre tive a convicção de que a solução dos problemas que nós temos agora é existir uma terceira, uma quarta ou quinta forças. Não podíamos continuar nesta coisa de Frelimo-Renamo, porque é um jogo muito fechado. Há muita gente que diz, por exemplo, existe dinheiro da Frelimo a ir para Renamo. E, por causa disso, há muita confusão. Há tentativa de compra deste e daquele. Isto é muito fácil quando temos um jogo entre duas forças políticas. Mas quando o jogo começa a passar para três, quatro, esta possibilidade começa a diminuir. E, se calhar, estaremos cada vez mais perto de vivermos um exercício democrático muito mais próximo daquilo que é a definição. Antes de eu apoiar ou ser simpatizante da existência de um partido como o MDM, sou simpatizante desta ideia de que não podemos continuar nesta linha de bipolarização política.
O que acha que faz de Daviz Simango um líder diferente dos da Frelimo e da Renamo?
Penso que, acima de tudo, são as obras. Já fui várias vezes à Beira e pelo que posso ouvir dos beirenses é que Daviz Simango, no seu primeiro mandato, fez alguma coisa de positivo pela Beira. E não fazia sentido, na minha opinião, tira-lo de lá. Ou que se não lhe desse a chance de concorrer. Foi o que acabou acontecendo. Então, esta tendência que eu sinto nele deve-se à sua apetência de mostrar trabalho, ao invés de discursos. Acho que é isto o que está a faltar nos nossos líderes. O que também dizer, que também afirmei na Beira, é que agora as pessoas dizem que eu sou frelimista. Não importa se a Frelimo faz mal ou se faz bem. Eu sou Frelimista até à morte. Eu sou Renamista. Não importa se faz bem ou mal. Eu sou renamista. Isto é o problema. Então, se eu actualmente sou simpatizante desta ideia da criação deste movimento, MDM, porque acho que sim, temos que dar oportunidade às outras pessoas de trabalhar e mostrar que podem fazer. E, enquanto continuar, na minha opinião, e se aparecer uma opção válida, eu vou apoiar. Quando deixarem de aparecer eu também não vou apoiar. É isto o que é importante que aconteça.
Nota-se, nas suas músicas, algum desencanto com os políticos libertadores de África, no caso particular, que nos seguraram a independência. Numa das suas músicas, até diz “operários, camponeses na trilha da revolução. Eles eram os nossos deuses a quem fazíamos a adoração. Donos dos nossos interesses, símbolos de idolatração. Vocês não são libertadores. São combatentes da fortuna e a liberdade existirá até onde for essa fortuna”. O que quer dizer?
Como disse, combatentes da fortuna, é possível que seja um termo a ser introduzido, porque hoje em dia nós temos gente que tem riqueza acima dos seus rendimentos.
É mais uma vez uma antítese aos combatentes da pobreza?
É um pouco disso também. Mas veja, quando olharmos para África, verificamos que os partidos que estão no poder são, basicamente, aqueles que foram libertadores. Foram os libertadores, fizeram a guerra para libertar o povo, a terra. E este espírito de libertação morreu, na minha opinião. Hoje em dia, temos estes mesmos combatentes ou antigos combatentes, na minha opinião, a não combaterem pelo povo, mas a combaterem pela fortuna. A combaterem por mais bens, por mais regalias.
O interesse individual sobrepôs-se à causa colectiva...
Sim, acima de tudo. Se calhar, fazer um pouco minhas as palavras de Mia Couto que disse aqui, muitas vezes, que aquilo que combatemos é aquilo que actualmente estamos a apoiar. Se ontem nós tínhamos José Craveirinha a escrever porque defendia que o povo podia ser libertado, hoje, nós temos órgãos de informação a censurar músicos, escritores que dizem o que pensam, que acham que, de alguma maneira, devemo-nos libertar de alguns vícios. Ontem, apoiavam um determinado comportamento e hoje a condená-lo (o mesmo comportamento). É por isso que eu digo combatentes da fortuna. Quando nós começámos, estávamos todos juntos e éramos como camponeses, operários. Todos mobilizados para libertar a terra. Hoje, há essa separação. Existe um grupo que cada vez mais se distancia do povo que disse que amava. Hoje, passam por nós dentro dos seus Mercedes e com os vidros fumados. E nem sequer olham para nós.
( Jeremias Langa , em O País )