Wednesday 29 April 2015

O lobolo dos abutres moucos


É provável que seja o lobolo mais demo­rado da História de Moçambique, as reuniões que decorrem no Centro Internacional de Con­ferências Joaquim Chissano (CICJC) entre a Renamo e o Governo da Frelimo. As de­legações, indiferentes à exas­peração dos noivos – a paz e o povo, cujo matrimónio não há maneira de acontecer... – e dos padrinhos que observam com o desconforto do ridículo, multiplicam sessões dialógicas presididas pelo autismo apa­rente dos interlocutores. E, nas declarações públicas de um e outro lado da trincheira onde jaz a reconciliação nacional, não se vislumbra um acordo, por mais precário e minimal que seja, após mais de uma centena de reuniões. Cem ses­sões de conversa estéril!!!
Mais do que um absurdo contabilístico, tanta ronda configura um escândalo ético que autoriza todas as teses, das mais esdrúxulas e conspiranói­cas até às mais cândidas e vir­ginais. Neste último caso, figu­ram os próprios protagonistas, que se reclamam, uns e outros, campeões na defesa dos me­lhores interesses do povo; no outro caso, e nos antípodas dos beneméritos que advogam em causa própria, está o can­saço dos pragmáticos, pouco sensíveis à bondade discursiva e tornados cínicos pelas cir­cunstâncias.
Para estes, as conversações entre Renamo e Governo da Frelimo visam apenas a parti­lha dos despojos de uma guer­ra fratricida, a qual continua no CICJC por meios alternati­vos à canhoeira, numa inver­são dos princípios de Carl von Clausewitz. Escatológicos, es­tes analistas vêem no “diálogo político” abutres moucos e de­savindos, vigiando-se mutua­mente antes de refocilarem na carcaça de um país exangue...
Actuam como se Moçambi­que fosse propriedade deles, indiferentes aos vergonhosos indicadores de pobreza que colocam o país na cauda do desenvolvimento.
Ora, entre a candura de uns e os exageros de outros ocorre a terceira via, mais moderada nas cogitações sobre o impasse negocial que o CICJC acolhe todas as semanas. Para estes, timoratos nas alegorias e nas euforias, os negociadores da Renamo e do Governo da Fre­limo evocam dois personagens de Gabriel Garcia Márquez em Cem Anos de Solidão.
Nessa obra magistral, dois ve­lhos militares, adversários na juventude, reuniam todos os dias para jogarem xadrez. No crepúsculo da vida e ao fim de anos de confronto lúdico, dei­xaram de mover as peças; fi­cavam apenas ali, em silêncio, olhando para o tabuleiro iner­te. Tinham concluído que não valia a pena jogar – conheciam de tal forma as tácticas de cada um que já antecipavam todos os movimentos possíveis...
No CICJC, os negociadores da Renamo e do Governo da Frelimo, e após 104 rondas no jogo negocial, também conge­laram as peças no tabuleiro.
Esgotada a imaginação pela convivência forçada, são in­capazes de concluírem o jogo das exigências e das cedências à luz da razoabilidade que pressupõe um verdadeiro “diá­logo político”. Por isso, e por Moçambique, talvez seja tem­po de trocar estes jogadores por outros, mais imaginativos e realmente preocupados com o bem comum.

PS - O xadrez é um jogo cruel por natureza – nele, os peões (que são figurações do povo, afinal) existem apenas para o sacrifício às estratégias dos jogadores. São meios para atingir fins. Infelizmente, no tabuleiro moçambicano pare­ce que também.


Elamano Madail,   O Pais

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