Wednesday 4 December 2013

Democracia em risco

A democracia moçambicana é muito jovem e insipiente. Foi implantada como última forma de defesa do poder, em momento de crise internacional dos aliados e de iminente derrota militar. Assim se compreende que apenas no Acordo Geral de Paz, a democracia foi aceite. Foi também uma pressão externa com alianças internas, para a transformação definitive do regime monopartidário e do sistema económico que se pretendeu após a independência, como condição para as reformas económicas iniciadas com o Programa de Reabilitação Económica em 1987.
Nos últimos anos, o país atravessa profundas transformações. E a mais importante não é a exploração de recursos naturais, a entrada de capitais para investimento, os efeitos da crise internacional, ou outros referidos pela tecnocracia barata (no sentido de medíocre), pelas elites satélites e pelos aspirantes a classe média sem cultura nem história desse estatuto. As principais transformações estão na mudança da sociedade no que respeita à formação e informação, ao despertar de preocupações dos cidadãos para a vida do país, o surgimento da sociedade civil com capacidade técnica e de debate para incomodar os centros de decisão e os mais altos órgãos do partido no poder e do Estado. É o despertar de uma nova consciência política crítica. É a emergência de movimentos sociais com capacidade técnica, democraticidade e poder de intervenção. São as evidências de vozes discordantes e críticas no seio do partido no poder, com manifestações públicas “fora das estruturas” (considerada uma indiscipline grave). É a “explosão” do acesso às novas tecnologias de informação e a constituição de redes sociais, mesmo que ainda circunscrito aos principais centros urbanos.
A intensificação da exploração dos recursos naturais contribuiu para essas evoluções de substância. A pouca transparência dos contratos, os benefícios fiscais e as excepcionalidades à lei, os reassentamentos, os efeitos ambientais, o garimpismo descontrolado, a exploração desenfreada e predadora das florestas, da fauna bravia e da pesca, a usurpação de terras, o endinheiramento duvidoso das elites, o assalto aos negócios pelas elites do poder e seus satélites em proporções de acordo com o nível hierárquico e compromissos, a questão da equidade social com um modelo de desenvolvimento não inclusivo na produção e na distribuição dos benefícios, entre outros aspectos, despertaram consciências, provocaram indignação e agravam a pobreza dos mais pobres dos pobres. As manifestações do dia 31 de Outubro são uma síntese de tudo o que acontece no país e dos sentimentos dos cidadãos.
Em resposta a estas evoluções, o governo e o sistema político, particularmente do partido no poder, não tem correspondido com discursos modernos, fundamentados e que respondam às demandas dos cidadãos. Não menos que mudo, o poder tem sido surdo e cego. Não tem revelado decisões e reflexões que transmitam a percepção de decisões suportadas por estudos. Muitas vezes as manifestações são proibidas e percursos das ruas e avenidas condicionados sem razões aparentes e muito menos justificadas e, em alguns casos, reprimidas policialmente. O governo revela-se pouco ou nada dialogante actuando apenas em situações in extremis. A propaganda informativa associada ao poder possui uma aparente e superficial capacidade manipulatória e existem claras actuações para controlar a informação. A arrogância assume grandes proporções com fraseologia pouco dignificante ou mesmo boçal e a armada de papel G40 revela-se pobrezinha na defesa do poder. O poder esquece-se da força da comunicação digital, das redes sociais. O poder, antes de tudo, não aceita que nem tudo vai bem.
A intensificação da exploração dos recursos naturais e as apressadas e muito optimistas expectativas de riquezas e da emergência de um novo país rico é acompanhada com um grande influxo de divisas e, simultaneamente, por uma fase de redução da cooperação externa, do financiamento directo ao Estado e de claros sinais de um endividamento crescent do Estado, da economia e das elites burocráticas, com expectativas de receitas futuras (dos recursos naturais). A redução da dependência de donativos, um elemento importante para Moçambique, embora seja positivo, possui, nas actuais circunstâncias, elevados riscos.
O risco da não consolidação da democracia e das possibilidades de retoma do autoritarismo, repressão e perdas de algumas conquistas democráticas, são evidentes. Há o risco de implantação de um regime autoritário
 de natureza fascista. Os valores da ética, da honradez, da competência, do respeito, da justiça, etc., estão em crise. O sistema político está desajustado no discurso, nas relações com a sociedade e contradiz-se com os valores dos libertadores.
A redução da influência e/ou das exigências dos parceiros externos no que respeita à concretização de passos significativos para a democraticidade das instituições e da sociedade, a reforma no sistema político, a luta contra a corrupção e para uma maior transparência na gestão pública, como consequência de uma menor dependência da comunidade internacional, é gradualmente substituída pela influência e/ou exigências do capital externo, das novas diplomacies económicas de alguns países e da emergência de economias com elevado poder de investimento externo mas que, alguns deles, fazem parte do grupo de países mais transgressors dos direitos humanos, do ambiente à escala planetária e com democracias de fachada. As multinacionais destes países, actuando muitas vezes com créditos de empréstimos públicos dos seus países (e portanto dos impostos dos seus cidadãos e empresas), têm-se revelado serem tanto ou mais predadores e exploradores que as suas congéneres ocidentais. Mas há pelo menos uma diferença fundamental: enquanto alguns países actuam paralelamente com agências internacionais e de cooperação de influência sobre valores políticos e sociais, as novas economias e as suas empresas não interferem nesses assuntos e apenas desejam os recursos naturais (incluindo a terra). O poder enaltece a bandeira do nacionalismo, pensando- se que se fica mais soberano em momento da globalização onde os governos mandam cada vez menos.
O governo e as alianças sociais do poder têm actuado como partes interessadas nos milionários negócios. Quando o Estado não intervém face aos abusos comprovados nos reassentamentos e na usurpação de terras, na predação dos recursos naturais, etc., então está claro que este Estado é mais aliado do capital que do povo que diz representar. Quando estas alianças não se traduzem em benefícios para o país e para os cidadãos, mas sim e em grande medida (ou quase que exclusivamente) para os investidores e alguns amendoins para uma elite muito reduzida associada ao poder, com instrumentalização do Estado para a realização dos negócios em benefício próprio ou de grupos, então, talvez fosse preferível não haver esses investimentos.
Talvez fosse preferível por várias razões. Primeiro, porque o país e os cidadãos absorvem uma parte muito reduzida dos benefícios dos seus próprios recursos naturais, não se traduzindo em desenvolvimento sustentável. Segundo, porque os recursos podem acabar e, como se diz coloquialmente, ficarão os “buracos”. Terceiro, porque se constitui uma elite burocrática, não produtiva, não competitive e rentista (corrupta). Quarto, existem elevados riscos de implantação de um regime autoritário para reprimir as reacções das comunidades, da sociedade e dos designados de críticos. Quinto, instalam-se valores do amiguismo, do “esquema” e desenrasca, entre outras características de sociedades em crise de valores e de economias e mercados selvagens. Tudo isto tem um elevado preço a longo prazo.
Por outro lado, não se assiste, nos discursos políticos, a intervenções pedagógicas de educação da cidadania quanto aos valores de sociedade democrática. O que existe são alusões patéticas acerca dos críticos e dos cidadãos que manifestam descontentamentos legítimos porque directamente afectados. Ameaçam e intimidam pessoas porque “estão a “falar demais”. Retêm-se ilegalmente cidadãos nas esquadras por estarem a desenvolver actividades de cidadania sem contrariar a Constituição ou qualquer outro articulado legal. Diz- -se que os jornalistas são agitadores porque também reportam acontecimentos reais em perspectivas que o poder não gosta. Usa-se o racismo e outras manipulações para mal dizer cidadãos. Quando a sociedade está apreensiva pelos raptos e pela guerra, surgem vozes que referem estar o país estável. O discurso e as fundamentações já ficaram infantis.
Porque o discurso não é pedagogic no sentido da criação da cidadania? Será porque não existe legitimidade e moral para o efeito? Será que o poder convictamente que este é o caminho do desenvolvimento e o bem-estar dos cidadãos? Em situações de grandes desafios nacionais, com elevados riscos para o país e para os cidadãos, em encruzilhas da unidade e soberania nacional, na disputa no quadro da globalização (não apenas económica), entre outros aspectos, são necessaries Homens de dimensão universal que a actual sociedade moçambicana carece. O povo moçambicano, como qualquer outro povo, não merece este tipo de poderes.



João Mosca, Savana 15-11-2013

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