“Os cães olham e a caravana espanta-se” - Carlos Cardoso, 1995
“A gente tem que tomar cuidado quando fala de jornalismo investigativo como se fosse a medalha de ouro que cada um quer colocar no peito e se chamar de jornalista investigativo. Quando a gente fala de jornalismo, a investigação deve estar presente em todo o tipo de matéria. Você não faz bom jornalismo hoje se você não for investigativo, a realidade da gente é muito mais complexa do que a 10 anos atrás; o mundo funciona em blocos económicos, então as coisas que acontecem aqui em Moçambique afectam outros mercados, portanto outros mercados tentam interferir na realidade e na autonomia deste país. Isso afecta a política, a cultura, os desportos. Se há algum recado que eu possa deixar, é que tratem a questão do jornalismo investigativo como um método de trabalho que tem que incorporar no dia-a-dia, senão vamos fazer um jornalismo que não vai atender ao público.” – Ricardo Fontes Mendes, 2013
Quando penso em Carlos Cardoso, inevitavelmente perpassa-me a mente o termo Watchdog Journalism e nascem em mim dúvidas sobre o que é isso de “jornalismo cão de guarda”.
Cada vez que reflicto sobre jornalismo – e isso acontece todos os dias - surgem-me mais dúvidas que certezas - apesar de eu amar o jornalismo desde criança e fazer jornalismo praticamente desde o meu primeiro namoro na adolescência. Por isso, de forma recorrente quanto dogmática, converso comigo mesmo enquanto vasculho referências bibliográficas sobre esta “apaixonante ingrata profissão” segundo o meu amigo e antigo parceiro de redacção Policarpo Mapengo.
Para relacionar Carlos Cardoso com o Watchdog Journalism, vou utilizar como minha muleta uma fonte academicamente proibida porém utilitária para o caso: a Wikipedia.
Segundo a Wikipedia, o termo watchdog Journalism está fortemente relacionado a prática de jornalismo investigativo. Watchdog, cão de guarda, é definido como “uma pessoa ou grupo de pessoas que actuam como protectores ou guardiões contra a ineficiência, práticas ilegais, etc”, lê-se na enciclopédia virtual, citando o Collins English Dictionary.
Um jornalista cão de guarda também cumpre esta função de guardião. Ao agir de uma maneira investigativa, o jornalista cumpre o papel de cão de guarda. Jornalismo cão de guarda é também considerado “contingente às condições sociais, políticas e económicas existentes e tanto uma reflexão do momento histórico como das estruturas e culturas de mídia pré-existentes”. Jornalistas cães de guarda são também chamados vigias, agentes de controlo social ou guardiões morais.” Chega de Wikipedia!
Quando trabalhava no Centro de Integridade Pública (CIP) como jornalista investigativo - convidado pelo então director executivo, o herdeiro de Carlos Cardoso (Marcelo Mosse), muitas vezes o na altura director de pesquisa e programas e hoje director executivo, Adriano Nuvunga, utilizava as ferramentas metodológicas próprias de um académico e me desafiava a reflectir sempre sobre a maneira como fazia o meu trabalho jornalístico e se o mesmo era investigativo.
Um dos últimos desafios que Nuvunga me lançou, menos suado que os outros, foi de representar o CIP num debate organizado conjuntamente pela Associação Moçambicana de Jornalismo Judiciário (AMJJ) e pelo Centro de Estudos Aquino de Bragança (CESAB), em Setembro de 2012. Incumbira-me, Nuvunga, da tarefa de pensar e explicar o que é isso de Watchdog Journalism, e como ele se reflectia na vocação Watchdog do CIP.
Questionei a mim e aos presentes: que tipo de cão somos, nós jornalistas moçambicanos? De tão inofensivos que nos tornamos por estes dias para os corruptos e criminosos, ousei perguntar se não criáramos uma versão moçambicana de Watchdog: o mitológico nkenho da nossa infância, cão que ladra mas não morde.
A resposta para mim está em perceber o que fizemos do legado de Carlos Cardoso, como seus colegas de profissão, sem exclusão de partes.
Quando a 22 de Novembro de 2000 foi assassinado Carlos Cardoso, o esquadrão da morte liderado pelo meu vizinho de infância no Alto-Maé, Anibalzinho, apenas matou o homem, pai de Ibo e Milena, marido de Nina Berg. Naquele dia, todavia, nós os jornalistas matámos o Cão Cardoso…
Salvo raras excepções, a partir daquele dia, com o nosso jornalismo conformado, comodista e atrelado aos poderes, enterrámos Carlos Cardoso, e passamos a utilizar uma série de excusas para não fazermos bem o nosso trabalho jornalístico.
Transformamos em nosso prometido Messias o projecto de Lei do Direito a Informação, de tal forma que criamos o Mito de que com uma lei de acesso às fontes oficiais de informação o jornalismo vai melhorar da noite para o dia, que se abrirá a caixa de pandora para o jornalismo investigativo em Moçambique.
Nos tornamos prisioneiros desse mito, através de algemas como a Falta de Memória, Ausência de Método, Autocensura, Ignorância das Leis, rotinas improdutivas, a transformação de jornalistas seniores em senadores dos Media, semi-reformados do jornalismo, a juniorização das redacções e sobretudo das chefias e das editorias. Convertemos essas algemas da consciência em coveiros e não cessámos de enterrar o Cão Cardoso… não o homem, mas o jornalismo que ele representava.
Vou citar Marcelo Mosse em 2010, entrevistado pelo SAVANA - 19.11.2010. “Hoje continuamos a ter os problemas que tínhamos há 10 anos. Mas com outras roupagens. As elites já não pilham na banca ou no Tesouro”, disse Marcelo Mosse, pra quem as elites refastelam-se na preferência por outro tipo de património público, como nas concessões minerais, na manipulação do Procurement, fingindo-se transparência e integridade.
“Cardoso faz falta, 10 anos depois. Temos bons exemplos de investigação jornalística, os media continuam a ser a principal oposição à Frelimo, mas a voz persistente, o seu rigor mordaz, o seu voluntarismo sem fronteiras, incorruptível, pontua pouco”, lamentava Mosse.
Temos de nos libertar do MITO em que transformamos Carlos Cardoso, em verdade escusa para nos desculparmos e nos desculpabilizarmos do nível baixo do jornalismo que praticamos. Já faz parte do ADN do nosso discurso escusatório colocar o jornalismo de Carlos Cardoso num nível sobre-humano, impossível de se fazer hoje e por cada um de nós, comuns mortais…ou comuns mortos?
Como diria o meu colega Ricardo Fontes Mendes, é um fardo pesado colocar sobre os ombros de Carlos Cardoso ou de jornalistas vivos como Marcelo Mosse, Lázaro Mabunda, Luís Nhachote o destino do jornalismo investigativo de toda uma Nação de 23 milhões de habitantes.
Homenagear Cardoso não é repetirmos todos os anos o cerimonial de 22 de Novembro, em que simplesmente enaltecemos as suas qualidades, celebramos os seus feitos e recordarmos sua vida e obra. É preciso, cardosianamente, fazer esse jornalismo engajado, crítico, investigativo, interventivo.
Emular Cardoso não é tentar imitar Cardoso, porque – como bem diz o seu amigo Mia Couto - “Cada Homem É Uma Raça”, emular Cardoso é fazer jornalismo investigativo todos os dias; é o jornalista que habita em cada um de nós apropriar-se da investigação como método básico de trabalho; é fazer profissão de fé aos princípios e valores éticos da classe; é ser vigilante dos poderes públicos e de todos os outros poderes que promíscua e criminosamente corrompem e capturam aqueles.
Sem pretender ser Nietzschiano, julgo que que ao invés do livre arbítrio que devia nos orientar somos jornalistas do cativo arbítrio, filhos do mito segundo o qual a Lei do Direito a Informação será a carta de alforria para um melhor jornalismo. Por isso ficamos assim, qual Camões impotente contemplando a longa espera pela chegada “daquela cativa que me tem cativo”.
O jornalista que investiga, que analisa e critica com critério e sem adultério dos factos, é esse cão que ladra…mordendo. Cão que morde em cada latido do seu trabalho jornalístico, que assume a investigação como método de trabalho.
Ao invés de sermos watchdog, infelizmente nós os jornalistas nos tratamos profissionalmente abaixo de cão. Em cada jornalista cobarde, preguiçoso, medíocre, comerciante da ética, servil dos poderes estabelecidos, traficantes da verdade por dá cá aquela esmola…hoje como há treze anos, nós matamos o Cão Cardoso.
Milton Machel, Facebook