Sunday 15 July 2012

Acusado de doutor na forma tentada

Este assunto do ministro Miguel Relvas querer ser doutor na forma tentada, dá vontade de rir, mas obedece à cultura pacóvia (não só apanágio dos portugueses, diga-se) que foi zurzida pelo Eça e pelo Camilo, e, também, pelo Fialho e pelo padre Agostinho de Macedo.
Está-nos na massa do sangue este gosto pela reverência que a palavra "doutor" suscita. Não é preciso sê-lo, basta parecê-lo, em muitos casos, como é vertente em Relvas. Relvas é um político em miniatura. Não o fosse e teria outra dimensão e a grandeza de ser, apenas, o que é, pouco ou muito. O homem sabe mover-se na engrenagem da política, desta política, que exige muito mais astúcia e malícia do que conhecimentos e espírito de decência.
No fundo, é isso mesmo que está em questão: a decência. Não os saberes. Porque esses, por tão poucos e superficiais, qualquer um, com manha e despudor, os adquire empiricamente. O empirismo é um valor: a experiência vale ouro e, no estrangeiro, em muitos países, atribuem-se títulos académicos pelos "doutos saberes." Claro que, neste caso, é preciso ter uso de muitas disciplinas do conhecimento. Obtém-se o conhecimento nos livros, na rodagem da vida, nos encontros e correspondências com outros, de outro gabarito.
Não recuso o título de "doutor" a Miguel Relvas. Cabe a ele aceitá-lo ou recusá-lo. Mas não faz grande diferença ao mundo o ministro ouvir-se chamar: dr. Miguel Relvas. E esta pequena aldrabice, porque de aldrabice se trata, põe em causa a permanência dele no Governo? A decência, aqui, não é uninominal: Pedro Passos Coelho tem uma palavra a dizer. Assim como, noutro campo, o ministro Nuno Crato não pode continuar calado. Que tem a dizer acerca do caso pessoal e do caso mais delicado que envolve uma universidade? Crato, sorridente, julgou despejar o problema para o caixote do lixo, alegando que não comenta matéria dos seus colegas de Governo.
O descaramento, aqui, assume idênticas proporções, pela evasiva e pelo indecoro, ao provocado pela licenciatura Relvas. A cumplicidade no silêncio nada tem a ver com lealdade. E lealdade não é nunca fidelidade. Fidelidade é própria dos cães. Lealdade tem a ver com carácter. E Nuno Crato deve-nos lealdade, a nós, portugueses, e não, exclusivamente, ao seu "colega de Governo." Aliás, mais a nós do que ao "colega", e esse peso de responsabilidade devia ter sido tomado em conta.
Todas estas pequenas realidades pertencem aos territórios da moral e da ética, comportamentos hoje muito tripudiados por quem prefere o êxito a todo o preço, e a "visibilidade" a troco de tudo.
É pior o ministro Relvas ser acusado de doutor em forma tentada do que o procedimento que teve no caso com o "Público", ou um facto resulta do outro e ambos são farinha do mesmo saco? E Miguel Relvas, mais as trapalhadas envolventes serão banalidades, "um não-assunto", no extraordinário dizer de Pedro Passos Coelho, ou, realmente, algo de muito importante porque abrange uma universidade e o sistema de ensino, o alegado favoritismo e a ascendência do poder sobre instituições tão relevantes como aquela?
Os valores e os padrões deveriam ser, antes de tudo, as bandeiras do poder. Porém, a razão dominante impõe as emergências do dinheiro e das falsas aparências como méritos essenciais. Ser "doutor" é, certamente marcante, porque resultado de trabalho por vezes insano e incansável. Mas ser homem, ser pessoa, é, sem dúvida mais importante, essencial e indispensável.
Confesso não estar muito interessado em descortinar o destino de Miguel Relvas. Estas e outras coisas de igual jaez e semelhante estilo são rapidamente absorvidas por outras actualidades, e o esquecimento recuperará os seus domínios. Até que outro "escândalo" se substitua àquele e a comunicação social, afobada e muito enérgica, se dedique aos casos que as exigências da oportunidade exigirem.
Como dizia, há dias, numa das televisões, uma senhora de belo rosto cheio de rugas: "É como as águas do rio: abrem-se para receber uma pedra que lhes foi atirada, mas logo se fecham e tudo fica na mesma."
Tudo fica na mesma. É isso, sem tirar nem pôr.

Baptista Bastos, Jornal de Negócios

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