10 Meses depois, o Coja continua sem conseguir encerrar todos os processos.
“O País” mergulhou no mundo da organização dos X Jogos Africanos e revela, nas próximas páginas, o que se ganhou e o que se perdeu com o evento, desde as receitas, despesas até às dívidas.
Se a nível político – projecção da imagem do país – os X Jogos Africanos foram um sucesso, já a nível financeiro e desportivo não se pode dizer a mesma coisa. Uma análise minuciosa dos documentos em nosso poder, das entrevistas e das conversas informais com os dirigentes desportivos e do Coja, constata-se que Moçambique realizou os X Jogos Africanos com um défice orçamental de 1.225.171.657,99 (um bilião, duzentos e vinte cinco milhões, cento e setenta e um mil, seiscentos e cinquenta e sete meticais e noventa e nove centavos), que viria a traduzir-se em dívidas aos fornecedores e prestadores de serviços durante o evento; 10 meses depois, os pisos de alguns pavilhões degradaram-se, tornando-se impraticáveis; a piscina olímpica é um elefante branco; a vila foi vendida; as receitas que se esperavam que fossem históricas (65% previstos) situaram-se abaixo de 6.9% do custo global dos jogos; os resultados esperados em termos de medalhas não foram alcançados; não houve investimentos volumosos de continuidade na massificação do movimento desportivo – os orçamentos das federações não mostram evolução; verificou-se um conflito de interesses entre o Coja, o seu director-geral e a SMS. A República da África do Sul cedeu, em apoio, nove ambulâncias.
Ademais, o Coja nunca teve o orçamento que sempre desejou para o funcionamento pleno, desde que foi constituído em 2009. Esta situação resultou do facto de a empresa contratada para realizar as receitas próprias, através da venda de imagem dos jogos (MARCOM), não ter conseguido e ter assumido diante do Comité Organizador que não estaria em condições de angariar nenhuma receita até 2010, o que acabou precipitando a rescisão do contrato que ligava as partes. As alegações da MARCOM eram de que os jogos não estavam a ser atractivos e que as informações negativas que eram lançadas pela comunicação social criavam penumbras e receios de investimentos em jogos pelos empresários.
Vender ilusão
O défice orçamental dos jogos resultou de uma má orçamentação do evento. É que a ideia primária era de que “realização dos jogos, com sucesso, é bastante realista e viável”. O Governo precisaria de “desembolsar os cerca de 60 milhões de dólares que serão necessários para a operação do jogos, e outro valor adicional de investimento capital no montante de 181 milhões de dólares (construção da vila olímpica, piscina olímpica e pavilhão multiuso”, conforme apurámos da nossa investigação.
Deste valor, o Governo iria recuperar acima de 65% do valor das operações, o que faria com que os Jogos Africanos Maputo 2011 entrassem “nos anais da história como sendo os jogos mais sustentáveis do ponto de vista financeiro”, lê-se no Plano Estratégico dos X Jogos Africanos.
Estas constatações levariam o Governo a assumir, em 2008, a organização dos jogos, na sequência da desistência da Zâmbia, por alegados problemas financeiros e políticos. Em 2009, o Governo cria o Comité Organizador dos Jogos Africanos (COJA). Este, para apurar o real custo dos jogos, contratou um especialista senegalês – não conseguimos apurar o nome – em matéria de necessidades por cada modalidade, incluindo a alimentação adequada, para a organização de um evento como jogos africanos. Do orçamento por ele elaborado, constatou-se que o ideal para os jogos seria cerca 350 milhões de dólares - cerca de 10 biliões de meticais -, incluindo a construção da vila olímpica. Tratava-se de valores muito superiores aos que haviam sido apresentados ao Governo (cerca de 60 milhões de dólares para todos os jogos).
O Governo já tinha assumido a organização dos jogos. A decisão era irreversível, não só por já ter assumido, como também porque os Jogos Africanos constituíam “o evento desportivo mais importante a nível do continente. E para Moçambique constitui um forte motivo de regozijo, representando uma oportunidade de afirmação e elevação da auto-estima nacional”.
Esta oportunidade, segundo o Governo, devia ser capitalizada em todos os aspectos, nomeadamente no incremento dos laços de amizade e cooperação entre os povos, desenvolvimento de infra-estruturas desportivas, promoção do turismo nacional, estabelecimento de parcerias de negócios e de estímulo ao sector privado, em geral, bem como desenvolvimento do desporto.
Mas uma coisa era a vontade de organizar e outra era a disponibilidade de recursos para o efeito. É assim que o Governo ordena os cortes no orçamento inicial do Coja até aos níveis sustentáveis. Os cortes viriam a ser efectuados, baixando a proposta de 350 milhões para 250 milhões de dólares. Este foi o valor anunciado até pelo director-geral do COJA, José Solomone Cossa, em entrevista à Stv ao “O País”, no dia 29 de Julho do ano passado: “O indicativo é 250 milhões de dólares (cerca de 7.5 biliões de meticais) dos quais 140 serão aplicados na área de infra-estruturas e 50 na reabilitação de infra-estruturas, e o resto (60 milhões) para assegurar o funcionamento dos serviços e gestão dos transportes, alimentação, formação de voluntários, entre outros”.
O segundo reajustamento
Porque os valores continuavam bastante elevados para as nossas contas, um novo reajustamento foi feito no sentido de diminuir as despesas até aos níveis suportáveis. Assim, em 2009, o COJA, que acabava de ser criado, submetera um orçamento global, já reajustado, no valor de 4.040.067.240,00 (quatro biliões, quarenta milhões, sessenta e sete mil, duzentos e quarenta meticais). Este valor, na altura, correspondia a 112.224.090,00 (cento e doze milhões, duzentos e vinte e quatro mil e noventa dólares norte americanos), ao câmbio de 36,00 meticais.
O montante destinava-se, essencialmente, à reabilitação das infra-estruturas desportivas, programas de marketing e divulgação, pagamento de todos os contratos relativos aos serviço dos jogos, incluindo o próprio funcionamento do COJA.
No mesmo exercício, vendeu-se a Manuel Chang e ao Governo a ideia de que o COJA arrecadaria uma receita própria de 1.414.980.270,00 (um bilião, quatrocentos e catorze milhões, novecentos e oitenta mil e duzentos e setenta meticais), o equivalente a 39.305.020,00 dólares. Chang assumiu, em função da proposta que foi apresentada, que o orçamento geral do COJA seria constituído por receitas próprias e receitas do Tesouro.
“O Tesouro Público conseguiu honrar parte das suas obrigações, enquanto o COJA Maputo 2011 não conseguiu contribuir com a parte que lhe cabia, em 2010, esperando-se que ela venha a ser cabalmente coberta em 2011”, refere a avaliação da execução orçamental do COJA de 2011, acrescentando que o contrato assinado com a empresa de marketing previa que estas receitas próprias começassem a entrar em 2011.
COJA nunca teve orçamento desejado
Em 2009, o COJA só teve acesso a 6.5 milhões, o equivalente a 0.16% de um total de 676 milhões de meticais que haviam sido solicitados para cobrir as suas necessidades referentes a este período, que se encontravam inscritos no orçamento do Ministério da Juventude e Desportos. A verba permitiu o pagamento de algumas despesas de funcionamento, tendo a totalidade sido consumida pelo pagamento dos serviços necessários para a organização da Primeira Reunião Conjunta do Conselho Supremo dos Desportos em África (SCSA).
No ano seguinte, o mesmo órgão submeteu ao Ministério das Finanças as suas necessidades orçamentais, avaliadas em 2.162.635.650,00 (dois biliões, cento e sessenta e dois milhões, seiscentos e trinta e cinco mil, seiscentos e cinquenta meticais), para realizar grande parte das despesas. Do pedido submetido, a Direcção Nacional do Orçamento prontificou-se a dar 1.182.274.150,00 (um bilião, cento e oitenta e dois milhões, duzentos e setenta e quatro mil, cento e cinquenta meticais), dos quais 563.715.010,00 proveriam das receitas do Orçamento do Estado, e o remanescente, no valor de 618.559.140,00 (seiscentos e dezoito milhões, quinhentos e cinquenta e nove mil, cento e quarenta meticais) deveriam provir das receitas próprias do COJA (seria colectado pela MARCOM), para cobrir as despesas com equipamentos e maquinarias. Na verdade, desse valor, apenas estiveram disponíveis 315.537.143 Mt, o que corresponde a 7.8% do total solicitado.
2011, o ano da realização dos jogos, não fugiu à regra. Do orçamento de 3.524.547.557,56 (três biliões, quinhentos e vinte e quatro milhões, quinhentos e quarenta e sete mil, quinhentos e cinquenta e sete meticais e cinquenta e seis centavos) que o COJA solicitou ao Ministério das Finanças, “com todos os ajustes e correcções feitas para assegurar uma organização com sucesso dos X Jogos Africanos”, este, através da Direcção Nacional do Orçamento, apenas disponibilizou 1.064.070.050,00 (um bilião, sessenta e quatro milhões, setenta mil e cinquenta meticais), muito abaixo do desejado, ou seja, alocou apenas 26% do orçamento desejado.
Olhando para os recursos financeiros disponibilizados pelo Tesouro Público nos três anos do COJA, conclui-se que no ano passado houve um crescimento na ordem dos 70%. Ou seja, o Tesouro Público disponibilizou 748.532.906,40 a mais.
Contudo, o total dos valores disponibilizados situavam-se abaixo das necessidades do COJA para organizar o evento. Por outras palavras, o COJA só tinha tido acesso a 1,379,607,193.60 (um bilião, trezentos e setenta e nove milhões, seiscentos e sete mil, cento e noventa e três meticais e sessenta centavos) dos 4.040.067.240 (quatro biliões, quarenta milhões, sessenta e sete mil, duzentos e quarenta meticais) previstos.
Face a esta situação, o Governo viria, no mesmo ano, a injectar um fundo adicional de 391.600 mil meticais, totalizando, até poucos meses dos jogos, 1.771.207.193.6 Mt, o que significa que o défice reduzira para 2.268.860.046.6.
O relatório dos 90 dias
O défice viria a criar problemas organizacionais. É que há 90 dias dos jogos, o COJA tinha ainda um défice orçamental na ordem de 68%, embora tivesse baixado ligeiramente em relação aos primeiros meses do mesmo ano, conforme atesta o relatório do COJA e da Missão Moçambique de Junho de 2011: “O défice actual reajustado às necessidades do COJA é de 2.010.950.554,17 Mt, (dois biliões, dez milhões, novecentos e cinquenta mil e quinhentos e cinquenta e quatro meticais e dezassete meticais)”, correspondente a 68% do orçamento global necessário”.
Choque entre COJA e Finanças
As dificuldades do COJA em 2010 viriam a agudizar quando o Departamento do Tesouro Público do Ministério das Finanças congelou, em Dezembro de 2010, todos os pagamentos programados pelo COJA, tendo solicitado que todas as necessidades programadas fossem enviadas ao Tesouro para efeitos de autorização e devido pagamento. Submetida a documentação relevante, apenas foi autorizado o pagamento ao SCSA, faltavam ainda os pagamentos relativos aos contratos de reabilitação das infra-estruturas desportivas.
Por outro lado, o COJA alertara o Governo que a retirada dos fundos anteriormente alocados teria “repercussões bastante negativas na execução do plano de actividades” do Comité Organizador, pois as actividades programadas, tais como os concursos públicos, na altura lançados e adjudicados, não encontrariam verbas para serem executadas. Tal situação, não somente “irá comprometer os nossos planos, bem como irá pôr em causa a credibilidade e seriedade do Comité Organizador perante as entidades contratadas, encontrando-se a maior parte delas no terreno a realizar actividades”.
O terceiro e último reajustamento
O Governo tinha o relógio, mas os X Jogos Africanos tinham o tempo. E o tempo não depende de quem tem relógio. O Governo corria atrás do tempo. Nas proximidades dos jogos, o COJA volta a lançar o último grito de alerta: “O valor disponibilizado, apesar de ser relativamente superior ao disponibilizado no ano transacto, situa-se ainda abaixo do necessário para a organização dos X Jogos Africanos, nos moldes e formato previamente estabelecidos”. E como solução, o COJA fez a última proposta: “Partindo do princípio de que os 4.040.067.240,00 nos permitiriam organizar os jogos para 6.500 atletas, então, o valor disponibilizado em 2011 somente nos permitirá organizar os jogos para cerca de 2.100 atletas, com os consequentes ajustes, nomeadamente: número de países participantes, modalidades, quantidade de autocarros, apartamentos, quantidade de mobiliário e o número de refeições”.
Igualmente, propôs a eliminação do regime de exclusividade no contrato de marketing, permitindo assim que mais empresas nacionais e estrangeiras pudessem participar no esforço de angariação de patrocínios, para minimizar a exiguidade da verba.
Ora, os jogos estavam à porta. Os convidados já tinham convites em mão e, inclusive, tinham confirmado a presença. Reduzir o número de participantes e das delegações era a pior decisão. Isso poderia criar incidentes diplomáticos e até uma má imagem de Moçambique diante do órgão reitor dos jogos Africanos (SCASA). A solução era continuar com os abates. É neste contexto que o Governo ordena novos cortes no Orçamento, o que fez baixar ligeiramente o orçamento global para 3.406.271.466,00 Mt (três biliões, quatrocentos e seis milhões, duzentos e setenta e um mil, quatrocentos e sessenta e seis meticais). Daqui já não havia condições para mais revisões orçamentais.
Entrar deficitário, sair endividado
Os jogos tinham de começar. Os convidados não queriam saber das dificuldades do anfitrião. E já começavam a chegar. O Governo e o COJA tinham que acelerar o processo. O COJA solicita, desta forma, aos empresários nacionais que forneçam os serviços. Os pagamentos seriam efectuados. Os custos já não eram tão importantes que os jogos. Estava em causa o “Orgulho Nacional e o Auto-estima”. Os empresários importaram bens sem observar o critério preço.
No final dos jogos e na hora balanço, as contas são elevadas: “Até 30 de Novembro, as despesas globais dos X Jogos situavam-se em 3.406.271.466,00 Mt, das quais 89,7% foram executadas, havendo um défice de 1.225.171.657,99 Mt (cerca de 43.5 milhões de dólares)”, lê-se no relatório global do COJA, de 16 de Dezembro, apresentado ao Conselho de Ministros em Fevereiro passado. O mesmo relatório refere que a maior execução é de bens e serviços, devido aos contratos de prestação de serviços (alimentação, transportes e aquisição de mobiliário para a vila dos jogos), seguida das construções e reabilitações, deixando claro que o resto dos serviços ainda não tinha sido pago.