Beira (Canalmoz) - O tempo, historicamente, encarrega-se de ser o Sol que faz derreter as verdades que não são verdade. Tudo isto vem a propósito de declarações recentes de protagonistas do processo histórico nacional. Abertamente ainda se recusam a falar em termos abertos de erros e coisas que foram mal feitas. Muito menos querem admitir que alguns dos seus actos foram autênticos crimes. Em forma de livro ou sob forma de entrevistas tem aparecido a público declarações mais ou menos revestidas de substância sobre factos e ocorrências nacionais. É tudo feito de um modo apertado e limitado àquilo que é permitido dizer ou perguntar. Não se fala abertamente de tudo e nem poderia ser de outro modo. Os próprios entrevistadores se vergam à estatura dos entrevistados e só se atrevem a percorrer caminhos tacitamente permitidos. Mas a força da história tem empurrado os seus sujeitos a falar do que antes nem se podia colocar como pergunta. Isto constitui um ganho para o conhecimento da história nacional embora seja manifestamente insuficiente para a satisfação da sêde de saber que existe nos cidadãos. É importante que o estatuto de “semi-deuses” que alguns indivíduos tinham esteja a ser reequacionado e que toda uma maneira de estar e de fazer as coisas esteja a ser examinada à luz de outras lentes. Moçambique não é o país das maravilhas ou o “Wonderland” como alguns porta-vozes tendem a declarar. Temos um passado nem sempre tão linear como muita gente gosta de fazer crer. Houve erros e excessos como em todos os países. Muitos dos passos dados foram fruto de uma posição dura e inflexível de uma elite política que nem sempre dominava os dossiers em mão. Os detentores do poder nos primeiros dias da independência até há bem pouco tempo não tinham assim tanta independência para agir e decidir. Assim como tinham feito a luta de libertação contra o jugo colonial com forte apoio de um dos beligerantes na Guerra-Fria, todo o exercício de governar o país após a derrocada do Bloco de Leste foi feito com suporte em instituições multilaterais como o FMI/BM. Tudo isto configura uma dependência que obviamente tem as suas consequências. Se antes o país foi obrigado a abrir-se à exploração de seus recursos pelos países do Bloco de Leste a realidade actual mostra até que ponto o mesmo país tem de obedecer às receitas do Consenso de Washington. Os países constroem-se com realismo e no quadro de um complexo sistema de relações. A interdependência afecta a todos e nisto não podemos dizer que os caminhos seguidos foram os possíveis naquelas circunstâncias específicas. Alguma da responsabilidade do que aconteceu tem de ser atribuída a alguém. E limitar o debate a este tipo de considerações pode parecer a maneira mais simples de tirar qualquer culpa no cartório dos sucessivos governos que o país foi tendo. Uns dirão que não havia mais nada que fazer senão submeter-se aos poderosos da altura. Primeiro aos que tinham apoiado a luta armada de libertação nacional com armas e depois os que se dispuseram a apoiar financeiramente o mesmo país face à derrocada visível da sua economia. É preciso reconhecer os constrangimentos históricos e concretos com que um governo tem de lidar. Mas não se pode dissociar tal governo das suas acções e escolhas. Em qualquer análise que se faça do Moçambique de hoje há que prestar muita atenção ao que se diz e ao que se faz efectivamente. A tendência de nos satisfazermos com pouco ou pior ainda, de abraçar uma política feita à base de slogans, tem como resultado imediato impedir que a verdade venha ao de cima e que se conheçam com profundidade as motivações dos nossos governantes. Quando existe recusa de abrir espaço para que uma reconciliação nacional efectiva seja promovida e se pretende substituir esse factor fundamental para o desenvolvimento nacional com fórmulas de Unidade Nacional demagógicas está-se efectivamente procurando esconder coisas. Há uma reticência em abrir dossiers antigos ao público porque alegadamente isso iria contrariar uma suposta agenda nacional. Mas qual agenda nacional pode ser concretizada com moçambicanos desavindos? Quando se falou da necessidade da constituição de uma Comissão da Verdade e Reconciliação como alguns países fizeram, os detentores do poder negaram-se dizendo que no nosso caso não era necessário. Que isso iria abrir feridas no tecido social nacional. Que isso serviria a agenda dos que não querem o progresso do país. Mas está visto que a recusa essencialmente serve os que sempre detiveram o poder no país. Responder que cabe ao governo do dia esclarecer os casos tenebrosos perpetrados por gente conhecida e ainda viva é uma tentativa simplicista de fugir às responsabilidades. Enveredar pela “pintura cor-de-rosa” do país e das realizações governamentais é o caminho certo para “não perturbar as pedras” e deixar tudo na mesma. Sempre que confrontados com factos verificáveis que denunciam práticas ilícitas há uma corrida frenética de defesa do regime. Inegavelmente que isso é um procedimento básico de auto-protecção. Mas não corresponde à agenda de todos os moçambicanos. Quando é que será que se retirará o véu que cobre determinados assuntos? Porquê a recusa de chamar aos outros de heróis? Porquê só gente de uma “casta” é que merece ser glorificada? Porquê a apropriação de feitos e factos em que os outros também participaram? Porquê o exercício de intoxicação permanente dos moçambicanos? O espectáculo que a TVM oferece com a utilização de fundos de todos os moçambicanos é deveras caricato. Está visto que isso jamais fará os excluídos esquecerem de que também fazem parte deste Moçambique. “Fugir com o rabo à seringa” é um exercício com duração curta na maioria dos casos. Factos testemunhados em outros países em que se derrubam estátuas de ditadores e personalidades que um regime queria deificar demonstram que algum dia no futuro, o mesmo acontecerá em Moçambique. É de questionar o posicionamento de gente que aparentemente está comprometida com a resolução de conflitos em outros países mas que no seu próprio se recusa a admitir que os outros também são parte da equação pelo desenvolvimento nacional. Brilhar além-fronteiras pode parecer parte de uma estratégia que garante vitórias eleitorais internas mas não satisfaz a agenda nacional. Não pode haver agenda nacional desenhada unicamente por uma parte de cidadãos que se julga com o direito de governar o país com exclusividade. Quando erramos fica bem pedir desculpas. Isso não é sinal de fraqueza nem de derrota política. Quando o Vaticano se curva e pede desculpa por erros e crimes cometidos em nome de uma suposta fé católica cumpre um dever e obrigação histórica para com as vítimas. No nosso caso queremos ver um Moçambique realmente reconciliado e isso passa pela via da promoção de um diálogo aberto e incondicional. Não se pode construir um Moçambique, em que a prosperidade seja vivida e sentida por todos, com amnésicos e personalidades que se recusam a admitir que os outros também são parte do mesmo Moçambique. A recusa permanente de aceitar algo não elimina a existência do mesmo. Só a protecção e apoio de toda uma máquina governamental, bancária e empresarial subordinada ao regime do dia é que torna possível que certas personalidades se manifestem com uma arrogância insultuosa para com os seus concidadãos. Em nome e para uma reconciliação nacional efectiva há que parar com determinados exercícios de propaganda barata e historicamente falidos. Não somos perfeitos e reconhecer isso não diminui a ninguém... (Noé Nhantumbo, CANALMOZ, 30/06/10)
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