Saturday, 19 June 2010

Três locais para estagiar. Deste mundo e do outro

Magaliesburgo tem tudo o que Queiroz queria mas é um deserto entre o bairro de lata da Coreia e os luxos do Brasil

"Magaliesburgo foi escolhido pelas condições do hotel, tranquilidade, envolvência, atmosfera, proximidade das infra-estruturas desportivas sem trânsito ou confusão, condições climatéricas, altitude e simpatia das pessoas". Justificações e palavras foram coisas que não faltaram a Carlos Queiroz na altura de explicar o porquê da escolha do estágio. Que, para alguns, e como foi reproduzido na imprensa portuguesa, constituiu a primeira escolha. Mas que, para outros, já a nível de imprensa estrangeira, redundou na segunda - o objectivo era o local agora ocupado pelo Brasil. Entre uma e outra versão estará a verdade dos factos. Uma coisa é certa: a zona onde ficou a Coreia do Norte nunca foi sequer cogitada. Magaliesburgo, à noite, pode parecer quase um deserto. Mas as opções dos próximos adversários nacionais situam--se entre a pobreza de um bairro de lata e o luxo e riqueza de um clube de golfe.

DE OLHOS EM BICO O i saiu de manhã na direcção do hotel Protea, onde estão concentrados os norte-coreanos. Com a notícia ainda fresca do desaparecimento, entretanto desmentido, de quatro elementos. Mas, por aqui, é complicado confirmar o que quer que seja: à mínima aproximação os olhos dos seguranças disparam com uma violência pouco habitual. E até um dos empregados do hotel, ao volante de um carro da empresa, faz questão de fitar com atenção tudo o que passe junto à unidade. Parece que querem decorar a cara, a roupa e a matrícula de todos. "Bem-vindos" é apenas mais uma das palavras abolidas do dicionário da Coreia do Norte nesta zona.
Portas trancadas no hotel, trancas à porta no estádio onde decorrem os treinos. O pior é mesmo lá chegar - atravessando o Tembisa, o segundo maior bairro de lata sul-africano (500 mil pessoas) logo atrás do Soweto. Até lá, viam-se BMW topo de gama; a partir daí, até carroças antigas puxadas por dois cavalos.
Cheira a queimado, devido às fogueiras na rua. E a lixo, porque qualquer berma da estrada é bom local para deixar um saco algumas vezes ainda aberto. Todos os moradores que andam pela rua têm roupas sujas ou rasgadas. Grande parte, sujas e rasgadas. Miúdos ainda ensaiam uns toques com uma bola que poderia ser trisavó da Jabulani. Imperam os barbeiros (em pequenos cubículos de tijolo, barracas ou ao ar livre) e, pasme-se, as lojas para carregar telemóveis. As paredes da escola, perto do campo, são revestidas com arame farpado mas há um pormenor humano: os desenhos dos maiores heróis da Walt Disney.
No estádio, nem um polícia, nem um movimento que indicie o mínimo de ruído. Não há treino e todas as portas estão fechadas. Incluindo a velha porta verde com tinta a saltar e o cartaz que diz "VIP Area". Saímos do recinto. E atrás chega o inevitável - trancam tudo a cadeado...
Mais uma passagem pelo bairro de lata e atenções num outro fenómeno: curandeiros, "não no pior sentido que lhe dão mas dos que fazem remédios tradicionais com ervas caseiras, os muti". Mais cabeleireiros, mais pobreza, mais locais para carregar os telemóveis. E chega-se à auto-estrada, onde se vê um centro comercial mais recente "para evitar que as pessoas daqui saiam destas zonas..."

BICO NOS OLHOS A caminho de Randburg, parece que se chega a um outro país. Ou planeta - no lado esquerdo da via, casas que chegam a custar quase dois milhões de euros têm picadeiros para cavalos e segurança privada do mais alto nível. O Brasil tem muitos jogadores que vieram de infâncias complicadas (Kaká funciona como uma das poucas excepções) mas, agora, a vida deu uma volta de 180 graus. Aquela que é considerada a melhor selecção do mundo tem um dos melhores, ou mesmo o melhor, alojamento entre todas as equipas: nos arredores, imperam os carros de grande cilindrada, as carrinhas para transportar os tacos de golfe, as roupas de quem quer ser vaidoso mesmo se o frio ameaçar não o ser. Nas vivendas, as bandeiras da África do Sul misturam--se com as de Portugal. E muitas das casas têm vigilância da Piranha Security.
Chegados ao The Fairway, onde até os polícias locais são mais simpáticos e cordiais, podem ver-se logo à entrada os oficiais do exército brasileiro, quase dez, com mãos nos bolsos quase a dizer que por ali não há problemas. Os jornalistas têm um ar saudável - afinal, estão bem perto dos melhores e mais luxuosos centros comerciais e lojas de Joanesburgo, onde é seguro passear e os preços são de terceiro mundo. À noite, chegam a ser organizadas festas para todos relaxarem após um cansativo dia de trabalho. Sinais da equipa só mesmo ao longe, porque uns painéis verdes tapam toda a vista para o complexo que alberga toda a comitiva da canarinha. E até existem jornalistas com camisolas de clubes (Corinthians e Internacional) a passearem junto à sala de imprensa (bem maior e com centenas de jornalistas de todo o mundo). "Há tudo para a equipa trabalhar sossegada e nós fazermos o relatório na perfeição", explicam-nos. Um dos assessores, o mais jovem de todos, faz comentários via Messenger pelos companheiros da Globo e tenta provocar alguém do outro lado do mundo com sorriso nos lábios. Respira--se saúde, cheira-se a relva que foi acabada de cortar. Até os cafés curtos, típicos de Portugal mas desconhecidos por estes lados, aumentam a moral de todos.
Chega a conferência. Quase uma hora, num ambiente familiar onde Júlio César até admite que não gosta de entrevistas. Há uma confusão organizada. Como em Tembisa. Muda o cenário, os preços, os frequentadores, o ambiente, o luxo ou a falta dele. É hora de voltar ao deserto...


Bruno Roseiro, ionline.

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