Saturday, 26 November 2011

Somos todos cúmplices

@Verdade reporta, na página 5 desta edição, que um cidadão, aparentemente na casa dos 40 anos, morreu em plena avenida do Trabalho, depois de ter perdido os sentidos e terem passado pouco mais de 24 horas sem que ninguém o socorresse.
O mais curioso, o mais cretino, o mais caricato é que a polícia foi prontamente informada, mas não se fez ao local por “falta de meios”, estavam à espera de um carro que nunca mais chegou.
Pois, era complicado para a polícia chegar ao local sem um meio circulante. Pouco menos de 500 metros é distância digna de ser percorrida por um fundista como Gibresillassie e não por um agente que se preze. As pessoas foram uma, duas vezes e sempre obtiveram a mesma resposta: “já temos informação. Estamos à espera do carro”.
Essa crença, a de que a polícia resolveria a situação, fez com que ninguém se lembrasse de ligar para o número de urgências. Até porque, no imaginário popular, as sirenes da ambulância não podem, de forma nenhuma, levar um miserável.
Resultado: no dia seguinte, o cidadão anónimo foi socorrido, mas perdeu a vida nas portas do hospital. Antes mesmo de ser socorrido, vários carros da polícia passaram pelo local em que este se encontrava estatelado, sem ao menos procurar saber do que se tratava.
A sua prioridade era, como de costume, o pacato cidadão que não traz o BI porque a entidade responsável ainda não o emitiu, o coitado que só porque é de cor branca é confundido com estrangeiro, o vendedor de esquina, e derivados.
Mais um Zé-ninguém que viveu sem honra e morreu como um cão. Esta morte que podia ter sido evitada representa o destino de muitas pessoas sem meios e devia constituir uma reclamação pública do incompreensível adiamento de uma intervenção que se impõe na prestação dos primeiros socorros.
É também o reflexo das prioridades do país no sector da saúde pública e da assistência social. Confessamos que acordar e ouvir que alguém morreu porque a polícia não quis socorrer é, acima de tudo, deprimente. E leva-nos a ter o desejo de escrever a todas as autoridades deste país ou a pedirmos aos nossos concidadãos que subscrevam por todo o lado abaixo-assinados para que casos destes acabem urgentemente.
Esta história, no seu ridículo, reveste-se de um grau simbólico da caricatura que se vai desenhando sobre o país. É ridícula pa ra o país. E também por isso é de clamar contra as coisas macabras que se alastram sobre uma nação que se quer, e se pensa, séria.
Um cidadão, por mais pobre que seja, não pode morrer dessa forma miserável. Isso é um desrespeito desmedido pela vida. Aqui, na verdade, nem é o problema da polícia enquanto autoridade. É o problema da insensibilidade do homem. É a percepção aterradora do quão a vida do próximo é desprezada, insignifi cante e banal para nós.
Vivemos demasiadamente concentrados nas nossas “vidinhas”, nas nossas “guerrinhas” e no nosso desejo de ascensão social que ignoramos que não somos nada sem os outros. É assim no “chapa”, é assim no hospital, na escola, no serviço. Em suma: é assim em todo sítio. Somos todos cúmplices, uns em menor medida, outros em maior, mas não deixamos de ser responsáveis pela morte dos zés-ninguéns que criámos...

PS: Para quê serve a polícia para além de manter a ordem e tranquilidade públicas? Não que tenha que de ser necessariamente filantrópica, mas sim manifestamente humanista. A PRM não pode apenas investir no apetrechamento dos seus instrumentos repressivos e descurar o seu serviço público (promoção do civismo, urbanidade, pronto-socorros, etc).
Não consegue caber no saco de valores da nossa consciência que a mesma polícia que é capaz de mobilizar, em três tempos, uma frota de viaturas e de carros-blindados para “amortecer” uma manifestação pacífica de antigos combatentes “esfomeados” não consiga alocar uma única viatura para assistir um reles cidadão na linha ténue entre a vida e a morte...
Isto é, a nosso ver, u m tiro certeiro de uma AKM no coração da dignidade de qualquer ser humano. Temos meios para reprimir, espancar ou matar mas os mesmos meios desaparecem como bolas de sabão no ar da nossa vergonha quando é para assistir, socorrer e salvar?!

Editorial, A Verdade

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