Wednesday, 10 December 2014

Bichos com asas e democracia asinina



 O pai da Mafalda começa a ler em voz alta um texto do jornal que tem nas mãos:
– “O eleito abriu uma nova esperança, ao dizer, no seu discurso, que esperava incorporar na sua governação algumas…
E a Mafalda adianta a conclusão da frase:
– “… algumas pessoas que não pertencem ao seu partido!”...
E o pai da Mafalda conclui a leitura da frase:
– “… algumas das ideias que fluíram de todos os quadrantes.”
O certo é que os escritos que aparecem em certos jornais já só fazem lembrar as tiras da querida Mafalda criada por Quino.
No jornal que o pai da Mafalda está a ler, aparece anunciado um novo tipo de democracia, que vai ser inaugurado pelo dito eleito: é a democracia melosa, que consiste em fazer peditórios de mel. A democracia melosa consiste em que os direitos constitucionais dos cidadãos são substituídos por ofertas de mel.
Já houve quem dissesse que alguém disse que ficou rico como criador de patos. Parece que o país vai agora ser entregue a um apicultor. Quando a perspectiva seria a de evoluir de ave para mamífero, acaba de ser agora anunciada a perspectiva de regredir de ave para insecto.
A democracia melosa não é uma ditadura, é uma democracia ditada, e já que é uma democracia ditada, dita-se que nela não há fraude, nem sequer a mínima dúvida ou suspeita, há apenas “discurso da fraude”. Na democracia ditada, o poder da lei consiste na existência de um certa quantidade de palavras escritas numa certa quantidade de papéis, e não na aplicação dessas palavras. Na democracia ditada, o que conta é o que se diz, não é o que se faz.
Os geniais criadores da democracia melosa estão em fase de campanha pós-eleitoral, tentando convencer que o ex-candidato, agora dito eleito, não é o mesmo que fez a campanha eleitoral.
Pôde ser observado publicamente quem compunha os cortejos de campanha e os participantes em sessões de angariação de fundos. São esses que se sentem representados pelo ex-candidato, sabem que ele serve os seus interesses, ele é aquele que lhes convém. Fez uma campanha a dizer que ia resolver problemas que nunca antes disse que existiam, e muito menos apontou quem os criou. A sua primeira acção de campanha consistiu em espezinhar a Constituição da República, ao aceitar participar em sessões em que foi utilizado um órgão de soberania do Estado para fazer apresentações de um candidato partidário. E agora os democratas melosos querem convencer os cidadãos de que este ex-candidato vai respeitar essa Constituição durante a ocupação do cargo! No dia em que tomar posse, talvez por efeito de um milagre da seita de terrorismo psicológico que o “abençoou”, transforma-se no oposto daquilo que é, e trai todos os que financiaram a sua campanha.
Convém aqui salientar que isto não pretende ser um comentário sobre os actos do ex-candidato, o qual até tem dado todas as provas de grande coerência consigo próprio e com os interesses imutáveis da sua organização. O que se está aqui a comentar é a atitude daqueles que estão a atribuir ao ex-candidato o estatuto de apicultor.
Por outro lado, no panorama do carnaval nacional, um grupo de foliões que gosta de se mascarar de ilusionista, aparece agora a mascarar-se de saltitante no tempo.
No calendário convencional, neste fim de ano, seria de supor que se estivesse a falar nas perspectivas para 2015, mas isso não é o que está a acontecer. Por acção dos saltitantes no tempo, dá a impressão de que do ano de 2014 salta-se para o ano de 2019. Quem deseje mudanças, que espere mais cinco anos.
Alguns vão mais longe, e já fazem projecções de um segundo mandato. É uma cópia fiel do que se passou há cinco anos. Nessa altura, mesmo antes do início de um segundo mandato, os saltitantes no tempo logo começaram a lançar projecções sobre um hipotético terceiro mandato. Ou seja, antes do início do segundo mandato, já estava feito o balanço positivo do mesmo, de tal modo que já se justificava pensar num terceiro mandato. A partir daí, o eleito pode dedicar-se a fazer turismo externo e interno, seja de helicóptero, de bicicleta ou de triciclo, porque o balanço já está feito.
Esta democracia melosa representa um avanço extraordinário, porque, entretanto, já foram recentemente anunciados os resultados antecipados dos próximos dez actos eleitorais. Pode presumir-se que este anúncio tem peso oficial, visto que foi feito, e até aplaudido, na presença do Presidente-da-República-Eleito, que é um novo órgão constitucional criado pelos democratas melosos.
E todos aqueles que anseiam por uma vida digna, aguardem calmamente até ao ano de 2064, que depois logo se vê. Pode ser que o plano seja renovado por mais cinquenta anos.
Este anúncio antecipado dos resultados dos próximos cinquenta anos já não deixa qualquer dúvida de que o resultado eleitoral de 2014 já estava inscrito nesse plano.
Os criadores da democracia melosa, ou se sentem acossados e estão desesperados, ou então estes melosos democratas pacifistas confiam plenamente na força da organização armada que tem o poder nas mãos, sendo esta segunda hipótese a mais provável, e por isso dão-se ao luxo de fazer paródia, parindo a democracia do mel, que também pode ser definida como democracia asinina.
A democracia asinina, ao contrário do que a ortografia desta última palavra possa fazer crer, não é uma democracia para bichos com asas – aves ou insectos – é, segundo elucida o dicionário, uma democracia para os burros. Por outras palavras, é uma democracia apropriada para aqueles que querem convencer o povo de que a democracia consiste em andar a pedir mel.




(Afonso dos Santos, Canalmoz)

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