Vejo-os religiosamente todos os dias às primeiras horas, à excepção dos sábados
e domingos. Como que de um impulso, sempre que chego ao aconchego do trabalho
assomo a janela e vejo-os, como se os estivesse a espiar.
Os mesmos de sempre, sentados ou “empeados”. Emprestam uma estranha
contradição semântica: são barulhentos e zaragateiros, mas, sobretudo,
simpáticos e, mais do que isso, são tipos suficientemente letrados. Do alto da
simplicidade das suas vestes e falas que denunciam algum desacato para com o
verbo e a língua de Camões nada leva a crer que saibam mais do que vender
jornais. Mas sabem mais do que pensamos. É só vê-los folheando e degustando
gulosamente os jornais enquanto esperam por clientes. Vejo-os, mas sobretudo
ouço-os, comentando as mais importantes notícias. Falam dos Mambas e da vergonha
de Marraquexe, da remodelação governamental, das quezílias do Parlamento, do
Desportivo de Maputo, do preço dos transportes, das mortes encomendadas, do
jogo Real Madrid-Barcelona e discutem, com convicções diferentes, se Ronaldo ou
Messi, qual deles tem o estatuto de rei do futebol. Enfim, é uma malta que vive
o dia-a-dia procurando sobreviver às agruras da vida e, por isso, buscando
honestamente o pão de cada dia. Percebo, do canto da janela de onde os espreito,
que desfrutam de ambiente amigo, pois há muitos anos que andam nesta empreitada,
o que os torna cúmplices entre si. É interessante perceber que alguns se assumem
como verdadeiros patrões, uma vez o tempo os ter conferido o estatuto de mais
experimentados na actividade. Estes vão à esquina dos ardinas apenas para
monitorar a distribuição dos jornais pelos “putos” que se encarregarão de “bater
a cidade” para a revenda. No fim do dia os “putos” deverão prestar contas ao
“boss”, que estará em algum canto triturando as amarguras da vida com outros
afazeres.
Sempre que chega o carro carregado de jornais os tipos exultam freneticamente
de alegria, como que “dopados” pela ânsia de tê-los à mão. Emitem estrondosos
assobios e ululam palavras guerreiras acercando-se do veículo. Formam um
estranho exército de guerreiros do ébano. Em sacos bojudos e com os jornais
empilhados ao ombro, saltam acrobaticamente do veículo para fazerem as primeiras
e rápidas conferências, primeiro da sequência do jornal, e, depois, dos
principais títulos, de onde depois partirão para “ziguezaguear” a cidade.
Dali da Rua Joaquim Lapa (agora Rua Joe Slovo ) partem extasiados pelo cheiro
acre do jornal e vão pela cidade fora apregoando as manchetes do dia, envergando
blusões de ganga e sempre de “olho vivo” e esperto. Conhecem todos os cantos da
cidade, são trabalhadores incansáveis, vendem jornais todos os dias, sem folga
e, muito menos, férias.
Não há rua ou beco onde não cheguem os ardinas com as notícias frescas. Têm
uma vida difícil. A grande maioria vive na periferia, mas às primeiras horas é
vê-los já de prontidão combativa. Os ardinas da “Joaquim Lapa” são zaragateiros
e brigões mas também simpáticos e ganham a vida honestamente. Da janela os espio
todos os dias e já me habituei a eles.
Fazem parte da minha paisagem psicoterapêutica.
Shalom.
- Leonel Magaia - leoabranches@yahoo.com.br
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