Thursday, 8 November 2012

Continuamos presos... reféns de um acordo assinado em 1992”

 
Lourenço do Rosário em Grande Entrevista.
Há muita gente que nasceu depois da guerra e já está no mercado de trabalho, mas que também ainda está presa ao Acordo Geral de Paz, porque, de facto, alguns aspectos não foram devidamente implementados, não podemos negar isto.
O Relatório do MARP diz, a dada altura, que a implementação inconclusiva dos aspectos-chave do Acordo Geral de Paz e a existência de práticas que desviam o seu espírito e letra levam a um recuo do compromisso e concessões acordadas em Roma. Que aspectos e práticas são essas?
Estão aí na mesa... só quem não leu o relatório que foi apresentado em 2009 é que pode não perceber que houve recuo em relação àquilo que era a euforia da assinatura do Acordo Geral de Paz. Eu acredito que há um grande número de cidadãos neste país, que têm muita responsabilidade e que não têm consciência do que está, de facto, em jogo. Em 2009, nós não fomos capazes de ver que alguns aspectos não foram adequadamente atendidos. Há problemas concretos que foram apresentados, do ponto de vista do Acordo sobre a paridade nas forças armadas, nas forças policiais, e que, naturalmente, foram sendo postergados. por isso, estamos com problemas sérios neste momento e que colocam o país, praticamente, sob tensão (...). Também temos a problemática do pacote eleitoral que gera, constantemente, quando temos um calendário eleitoral, conflitos pré e pós-eleitoral, nem que sejam eleições num município. Já não faz sentido, neste momento, em eleições num município, termos conflitos desta natureza: pré e pós-eleitoral. Portanto, há de facto problemas, daí ser necessária uma revisão.
Está a dizer que os problemas que vivemos são decorrentes da má implementação do Acordo Geral de Paz?
Pelo menos o processo depois do Acordo Geral de paz não foi devidamente implementado, de modo a que nós possamos, 20 anos depois, viver completamente em paz e esquecermos o acordo. O problema é esse! Continuamos presos (...), reféns de um acordo que foi assinado em 1992, quando estamos em 2012. Se as coisas tivessem sido aplicadas como devia ser, e julgo que há responsabilidade aqui, provavelmente já nem nos íamos lembrar dele. Há muita gente que nasceu depois da guerra e já está no mercado de trabalho, mas que também ainda está presa ao Acordo Geral de Paz (AGP), porque, de facto, alguns aspectos não foram devidamente implementados, não podemos negar isto.
Terá razão o presidente da Renamo ao pedir uma renegociação do Acordo?
Quando ele levanta estas questões não está a levantar no ar, temos de ser justos, ele não está a inventar absolutamente nada, está a levantar estas questões porque, de facto, há algumas lacunas na implementação do AGP. Por isso, o nosso trabalho quer no MARP, quer na Agenda 2025, na análise da situação actual do país, mostra esse aspecto. O que deve ver-se é, de que forma ele levanta, podemos discutir isto: por que ele levanta desta maneira. Se calhar, ele tem um estilo, uma forma de estar que não é entendida. Por exemplo, o Presidente Samora chamava, constantemente, as pessoas de macacos (dizia: seus macacos), e nós não tínhamos que nos incomodar, porque aquilo era uma expressão que ele usava sempre. Lembro-me que Tomás Vieira Mário chamou à atenção sobre a retórica do presidente da Renamo, no sentido de que não devemos levar à letra determinadas situações e, provavelmente, foi levado à letra na sua retórica e foi sendo empurrado, acusado até chegar a este extremo e, neste momento, ele esticou a corda. Agora que não haja dúvidas que há elementos legítimos, há, não se pode negar. O relatório está claro, não é a minha opinião, é o que vem no Relatório do MARP.
O próprio líder da Renamo está aquartelado, com mais de 700 homens e com demonstração de manobras militares, um facto antes visto no período pós-guerra dos 16 anos. Julga que o Governo tem estado a dar respostas de forma adequada?
O Governo não tem que nos dizer que respostas está a dar, porque é um assunto tão delicado, que me parece estar a tomar uma atitude de prudência natural para não pôr as pessoas em pânico, ou seja, numa situação de pré-guerra, não me parece que seja isso. Eu penso que, na mais alta instância, as coisas estão a movimentar-se naturalmente. Temos os mega-projectos aí, grandes investimentos estrangeiros e o país está a respirar, está a andar, por isso, não nos interessa a todos que o país recue, nem interessa ao próprio presidente da Renamo. Agora, nós estamos em África e estamos habituados a passar do óptimo para o péssimo, em pouco tempo, e sabemos também que a presença de grandes riquezas naturais tende sempre a fazer eclodir conflitos que favorecem, não aos cidadãos do país, e, sim, a outros interesses. Que isso pode ser aproveitado, pode ser aproveitado, sim, se nós não formos suficientemente patriotas para desenvolver acções para neutralizar esta situação.
Neste momento, há este risco de aproveitamento da situação?
Totalmente!
Haverá grupos interessados na desestabilização do nosso país e que possam financiar a própria Renamo?
É só ver o Congo, olhar o Sudão e ver outros países. Por exemplo, Angola, por quanto tempo ficou em conflito por causa deste tipo de problemas? Olhar a Libéria, a Serra Leoa, e todos os países que viveram ou que vivem em conflitos devido aos recursos. Então, não podemos pensar que nós somos uma excepção. Está aí a confusão entre a Tanzania e o Malawi. portanto, basta haver riquezas naturais, é preciso evitar os factores de instabilidade, porque, senão, são aproveitados.
Como país, será que estamos mesmo a levar esta questão a sério para, rapidamente, ultrapassarmos o problema?
Eu fico preocupado quando as pessoas continuam a tecer discursos de incompreensão do que está na mesa a ser discutido, mas isso não é por falta de aviso. Está aí o relatório do MARP de 2009, que é nosso: fomos nós que produzimos e não somos anti-patriotas. Fizemos um relatório ouvindo vários cidadãos, de diferentes estruturas sociais, de várias cores partidárias e foi apresentado na mais alta instância da União Africana (...). As pessoas sabem o que está lá escrito, não foi por falta de aviso. E se as pessoas continuam hoje a fazer o mesmo tipo de discurso, então estamos completamente mal. Há um outro aspecto, extremamente importante, que também vem no relatório, que é a expressão eleitoral. O nosso eleitorado está gradualmente a faltar aos pleitos eleitorais. A legitimidade dos governos democráticos é dada pela expressão eleitoral que, neste momento, corresponde a apenas 30 por cento dos cidadãos em idade de votar e os correspondentes a 70 por cento não votam. Por isso é preciso sentar e discutir isto. Há muitos que ficam satisfeitos por terem uma grande expressão eleitoral, 60 a 70 por cento do voto ganho, mas são apenas dos 30 por cento dos que votaram, e os outros? Isso tem que ser debatido, tem que ser entendido e analisado.
Isso, por si só, pode representar um grande perigo para o país?
Exactamente! Ou neste país leva-se as coisas a sério ou somos uma presa fácil de qualquer aventureiro que venha a financiar este tipo de instabilidade.
Uma das questões que não foram resolvidas e de que a Renamo se tem queixado é a inclusão dos homens que eram da guarda pessoal de Dhlakama na polícia e o enquadramento dos que deviam estar nas Forças Armadas. Também se fala de três mil homens em Marínguè e que os poucos que estão nas Forças Armadas são passados para reserva, despromovidos (...), simplesmente por serem da Renamo, facto que levanta a questão da partidarização do Estado. Perante esta realidade, julga que há condições para acomodar as reclamações da Renamo?
Comecemos pela partidarização do Estado. Nós sabemos que a Frelimo ganhou as eleições e, por isso, o Governo é da Frelimo e, naturalmente, vai implementar o seu manifesto eleitoral. Isso não está em causa. Agora, não vamos confundir governo com administração do Estado. Normalmente, aqueles cidadãos mais distraídos e que são os mais agressivos, dizem que se a Frelimo ganhou as eleições, com certeza, tem que governar e tem que estar no Estado. Uma coisa é o governo, que tem que implementar o manifesto eleitoral da Frelimo, e está correcto. Quando o relatório fala da partidarização do Estado, recomenda que os mecanismos de administração do Estado sejam despartidarizados: ingressos, nomeações, promoções, progressões, etc. e o problema não está na existência ou reunião de uma célula, este não é o problema. A questão é o peso que o partido pode ter no comportamento do Aparelho do Estado, o comportamento na contratação das pessoas, na priorização das acções do Estado ou do partido num dado momento. Mesmo os membros mais lúcidos e seniores do partido Frelimo reconhecem este aspecto como sendo corrigíveis, mas há aqueles que, dentro do partido, têm excesso de zelo e confundem o Governo com o Aparelho do Estado. Muitas vezes, estes aspectos acontecem sobretudo nos órgãos locais do Estado e não nos órgãos centrais. Há vontade de ultrapassar isso, mas ainda não está a reflectir-se.
Nos últimos anos, alguns membros da Renamo foram afastados de algumas funções em determinadas instituições, com destaque para os Aeroportos de Moçambique, INAV e Universidade Eduardo Mondlane. Para alguns, bastou assumirem-se membros da Renamo para serem afastados dos cargos. Não estamos a regredir?
Isso é reconhecido dentro do partido Frelimo que o mesmo tinha vindo a perder o seu fôlego, até à eleição do presidente Guebuza.
Mas era perder o fôlego ou estava aos poucos a admitir que era preciso não escolher quadros para o Aparelho do Estado na base de cor partidária?
É preciso ver isso do ponto de vista do partido Frelimo. Efectivamente, quando o presidente Guebuza foi eleito secretário-geral e, depois, presidente do partido, reestruturou o partido e. Ao fazer isso, não quer dizer que ele não controla o partido todo, pois há, naturalmente, aqueles pretorianos que vêem nisto um partido forte que se instala onde pode efectivamente exercer o poder. Eu vejo que há esta confusão. Sem dúvidas, reconheço que no passado houve exemplos concretos que, agora, raramente podem ocorrer. E, depois, há o recuo dos meios de comunicação, há uma mudança, há um pudor, digamos assim. E voltamos a dizer que este é nosso ou não é nosso, está connosco ou não. portanto, são formas de ser que não são correctas numa sociedade.
Perigam a própria democracia?
Trazem estas situações que vivemos. E, depois, vão dizer que é falta de diálogo, etc... mas achamos que há muita coisa que é preciso corrigir.
Voltamos à questão militar...
Isto é um problema recorrente. A própria Frelimo, depois da Luta de Libertação Nacional, não conseguiu resolver totalmente a questão dos desmobilizados, não foi resolvida como as pessoas esperavam que fosse resolvida, dentro do próprio partido. Fica muito mais complicado ter que resolver, neste momento, a questão dos desmobilizados das Forças Populares da Luta de Libertação e dos homens da Renamo e compor um novo exército e forças policiais, a partir da letra dos AGP, que dizia 50 por cento de homens de cada parte. E você, depois, coloca o governo como árbitro e jogador, ao mesmo tempo, para poder decidir isso. Em qualquer jogo em que você é arbitro e jogador, o jogo não vai correr segundo as regras. Nesse caso concreto, o problema começa aí.
E isto representa uma ameaça à paz em Moçambique, uma vez que se trata de homens armados - embora haja desmobilizados sem armas -, além de estarmos num país onde, facilmente, se pode ter armas. Como resolver isto?
Do meu ponto de vista, o Governo deve transmitir aos cidadãos sinais de que está empenhado seriamente em resolver este problema e não sinal de que este problema não existe. E, em segundo lugar, o governo deve reconhecer que é muito difícil resolver sozinho este problema, razão pela qual é preciso ter a contraparte que esteja em condições de poder dizer que vamos transformar este problema numa agenda comum. Em terceiro lugar, deve recorrer-se também aos parceiros de cooperação para que nos ajudem a resolver o problema.
Seria o caso de o presidente da República se sentar com o líder da Renamo e discutirem esta questão?
Não é necessário que o presidente da República se desloque a Gorongosa, como o líder da Renamo diz, não vejo a questão por aí. Sem dúvidas, defendo, como cidadão e como membro do MARP, que se deve reconhecer o problema e se discutir formas de ultrapassá-lo.
Um dos vossos relatórios diz que, “exceptuando as eleições municipais de 2003, as restantes foram rejeitadas pela oposição e este facto constitui um desafio para a continuidade das eleições periódicas. O que se pretende dizer com isso?
Eu disse, há momentos, que não faz sentido termos sempre conflitos pré e pós-eleitorais, mesmo quando é para um município, e isso é um problema do pacote eleitoral. É que havia o artigo 85 que permitia o enchimento de urnas e estava lá. Distraidamente, alguém colocou e passou, como aquele de que o presidente se pode recandidatar duas vezes. Havia várias coisas no pacote eleitoral que não permitiam que se vivessem as eleições como momentos de festa.
Acredita que esta revisão vai trazer mudanças?
Acredito que haja passos importantes para que haja menos conflitos.
X CONGRESSO
A Frelimo realizou, recentemente, o seu X Congresso e sei que esteve lá como convidado. Será que houve uma discussão séria sobre este e outros problemas do país?
Para mim, o grande debate estava contido no relatório do Comité Central, na apresentação do programa e nos Estatutos da Frelimo e, depois, no processo eleitoral. Aí é que é o congresso. Muita gente dizia que se perdeu muito tempo com os cânticos, saudações de partidos amigos, do que propriamente com o debate e, aliás, diziam que não havia uma sequência das questões a levantar: um falava de um aspecto e outro de algo muito diferente e não havia um debate real. Eu acho que, na verdade já não havia nada a debater, porque tudo aquilo já tinha sido incorporado, essa é a leitura que faço, no relatório do Comité Central, no programa e nos Estatutos da Frelimo e que, depois, teve a expressão das eleições internas.
Havia muita expectativa à volta do X Congresso. Será que a mesma se esvaziou ou foi satisfeita?
A expectativa era exterior ao partido: era dos cidadãos. O problema de que o presidente Guebuza não se ia recandidatar e se queria ver a nova cara, essa era uma das expectativas. a questão de quem sobe, quem desce nos vários patamares do partido e, naturalmente, os problemas internos, que existem, e há várias opiniões no partido, e os protagonistas das várias opiniões como iriam dirimir as suas posições no Congresso e isso não apareceu. e, como tal não aconteceu, a expectativa acabou esvaziando-se neste aspecto. Do meu ponto de vista, o Congresso começou muito antes com o debate das teses.
Olhando para os órgãos eleitos, a sua composição, etc., considera que estão preparados para enfrentar estes desafios que o país atravessa?
A primeira tese que defendo é que a visão do presidente Guebuza vai continuar, estando ele ou não e, como tudo indica, ele não vai estar na presidência da República. O caso de combate à pobreza, etc., que ele iniciou em 2005, vai continuar porque ele procurou reforçar, à sua volta, uma equipa que comunga das suas convicções, ele estreitou este núcleo de coesão e penso que em 2017, no XI Congresso, provavelmente, vai haver a efectiva passagem de testemunho. Porque a geração de 25 de Setembro, biologicamente não estará em condições de ir para além de 2017, alguns mais resistentes, sim. Em 2014, vamos viver uma situação de perfeita passagem de testumunho, porque esta visão, este programa vai continuar mesmo sem ele na presidência da República, e mesmo na do partido.
NEGÓCIOS NO PAÍS
O país definiu que até 2015 tem que ser o melhor país para fazer negócios na região austral da África. Porém, nos últimos dois anos, temos estado a cair num índice internacional denominado “Doing Business” e a maior queda foi este ano: sete lugares. Será que estamos a caminhar certo?
Não! Não estamos a caminhar certo. É que a democraticidade de acesso ao negócio está a minguar. Há grupos de negócios que estão neste momento a assambarcar as oportunidades de negócios e, naturalmente, vão criando obstâculos a todos os outros que queiram chegar aos negócios. Faz-se holdings que têm interesses nas minas, nos transportes, na energia, etc. e, se for a ver, são os mesmos grupos que se vão ramificando, dificultando os pequenos para chegarem a este campo. Quando se fala de distribuição, está-se a falar nos vários patamares de bem-estar, mas também se fala de distribuição de oportunidades de negócios. De facto, nós estamos a descer porque a governação corporativa não está bem neste momento.
Em reacção, os governantes dizem que estes relatórios não reflectem o que se passa no nosso país. será que estamos preparados para ver os problemas e agirmos para resolver esta situação.
Nós temos instituições de pesquisa neste país com muita credibilidade, que fazem pesquisa real e podem fazer o levantamento de grupos económicos que existem e verifica-se que estes grupos são muito estreitos em relação a grandes pretendentes que querem entrar no mundo dos negócios no país, e isso vai provocando um recuo.
No fim do dia, podemos dizer que a riqueza do país está a ficar num grupo reduzido de pessoas?
Claro, porque você não tem acesso ao financiamento, você tem juros altíssimos, você não tem como criar a empresa que sobreviva. Uma série de coisas relacionadas com desenvolvimento corporativo. Por isso, não há democraticidade, é real isto, não é preciso olhar para longe.
Como sair disto, porque periga a nossa prosperidade e a própria paz?
Periga, essencialmente, a estabilidade social. O que está a passar-se em relação a transporte urbano é horrível, em relação a vias de comunicação é horrível, em termos de políticas agrícolas, não é bom. Portanto, estes grupos não podem responder por toda a economia do país. E o namoro aos mega-projectos é um namoro quase que indecente. O debate da opinião pública forte pode mudar a face do país.


O País

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