Tuesday 11 October 2011

Os 19 anos da paz

Pode ter passado despercebido para a maioria das pessoas, mas isto significa que, 19 anos depois, temos um país continuamente em paz, é verdade, mas também profundamente dividido na sua estrutura social e política, porque uma das partes sente uma negação permanente do outro. As armas calaram, mas as almas não serenaram.

O país assinalou, esta semana, 19 anos de paz, exibindo duas facetas distintas e até certo ponto antagónicas da retórica política dos subscritores do Acordo de Roma de 4 de Outubro de 1992. Por um lado, na Praça dos Heróis, os membros do Governo e do partido Frelimo celebravam com discursos de optimismo, sublimando expressões como concórdia, compreensão e diálogo. Em contraponto, em Nampula, e com eco algures no suburbano bairro maputense do Hulene, o líder da Renamo e seus membros eram a real expressão do pessimismo, alicerçado num discurso de frustração, desencanto e auto-exclusão.
Pode ter passado despercebido para a maioria das pessoas, mas isto significa que, 19 anos depois, temos um país continuamente em paz, é verdade, mas também profundamente dividido na sua estrutura social e política, porque uma das partes sente uma negação permanente do outro. As armas calaram, mas as almas não serenaram.
Paz e democracia pressupõem serenidade, ausência de tensão social, aceitação das diferenças, tolerância, negociação permanente, acordos; pressupõem que os direitos das pessoas são respeitados e suas vozes são ouvidas; pressupõem ainda que os conflitos são resolvidos através do diálogo. Mas há muito tempo que a Renamo deixou de acreditar na via do diálogo. E também há muito que a Frelimo não abre verdadeiramente a porta ao diálogo.
Na verdade, do ponto de vista da imagem pública, estes 19 anos de paz pouco mudaram o que se cristalizou nos 16 anos de guerra: a Frelimo continua a representar os bons e a Renamo os maus, independentemente do que cada um fizer. Enquanto foi presidente, Chissano tentou amenizar esta ideia, mantendo entreaberta a porta ao líder da Renamo, mas Guebuza não se permitiu sequer ao folclore, deixou sempre Dhlakama a falar para o boneco, como sói dizer-se.
O recurso a ameaças de manifestações violentas e o endurecimento do discurso é, em parte, um sintoma de algum sentimento de marginalização a que Dhlakama se sentiu votado pelo actual Chefe do Estado, pouco avesso a conversas desde que assumiu o posto (paradoxal esta imagem de Armando Guebuza-Presidente da República, não é? Foi ele o negociador-chefe do Governo nos 2 anos que duraram as negociações com a Renamo e com ele ficaram os louros e a imagem de hábil e paciente negociador).
O problema é que, apesar dos seus sistemáticos desatinos políticos, Afonso Dhlakama ainda tem carisma, força, popularidade e capacidade q.b. de mobilizar massas, como mostra cada vez que interrompe os seus longos retiros sabáticos e faz-se às bases. E, amiúde, exibe alguma perspicácia política. Por exemplo, nos últimos tempos, introduziu um dado novo no seu discurso. Já não se limita unicamente a acusar o seu inimigo fidagal de ilegitimidade política e falta de transparência nos actos eleitorais. Faz agora uso do jogo económico-social, questionando os critérios de distribuição dos recursos do país. Diz que todas as oportunidades de negócio, que surgem no país, estão a ir para os que vestem de vermelho. Todos os outros são excluídos.
É certo que há aqui uma dose de extremismos nas palavras do líder da Renamo, mas também todos nós sabemos que há um quê de verdade nesta afirmação, por isso, este discurso facilmente pode ser galvanizador, pode encontrar seguidores em consideráveis segmentos socialmente desfavoráveis, que agora abundam nas periferias das grandes cidades deste país. Estes segmentos sentem-se marginalizados do processo de desenvolvimento e quando olham para a sua frente têm poucas dúvidas de quem é o inimigo a abater. Uns não têm formação nem sequer rumo nenhum, outros até beneficiaram desta paz, que hoje celebramos, para estudar, ter melhores hospitais e estradas, mas não encontram nenhuma inserção profissional, ou a que desejavam.
E isto, por si só, é suficiente para uma nova guerra? A resposta é não. Mas é suficiente, e isto, sim, é verdade, para criar terreno fértil para ajudar a desencadear um ambiente de instabilidade. Uma súbita instabilidade pode retrair e até afastar investimentos no país; pode afectar a credibilidade duramente conquistada e transformar-nos numa Guiné-Bissau ou Costa do Marfim.
Todos estes indivíduos, que não sentem nas suas vidas, no imediato, os efeitos do crescimento da economia, são vulneráveis a discursos inflamados e mostraram, primeiro a 5 de Fevereiro de 2008, e depois a 1 e 2 de Setembro de 2010, do que são capazes e sobretudo que os seus alvos predilectos são todos os bens que simbolizam o principal ganho destes 19 anos: a prosperidade, o bem-estar.
Isto quer dizer que, na euforia das celebrações, temos que nos lembrar daqueles que têm a percepção de que a paz não lhes trouxe ganhos pessoais e que, pelo contrário, a sua vida social degradou-se ainda mais. Estas pessoas, e ao contrário de alguns discursos, são a prova de que a paz não é, infelizmente, uma conquista definitiva, há uma tensão social latente, que não hesitará em deflagrar para pô-la em causa. Alguns destes fazem parte de uma geração que não conheceu a guerra e os seus efeitos, porque ou eram muito novos ou não eram nascidos. Para esta geração, evidentemente que a palavra paz não tem o mesmo peso semântico de quem viveu os horrores da guerra.

Jeremias Langa, O País

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