Tuesday 16 March 2010

Um escândalo biométrico?


Sobre os novos documentos de ide­ntificação biométricos, muita coisa já foi dita, mas muito pouco se sabe dos contornos do processo que determinou a escolha da SEMLEX como a empresa contratada pelo governo para a emissão destes documentos.

Só o facto de não ter havido concurso já é matéria para muita especulação. O contrato é bastante oneroso para o Estado, e seria de esperar que todo o processo de selecção do fornecedor deste serviço fosse conduzido com a maior transparência possível e em conformidade com a lei, para evitar suspeições e comentários pouco abonatórios.

Também deve ser questionável a decisão de privatizar a emissão de documentos tão sensíveis e que tocam com a segurança nacional, e que como tal, normalmente são propriedade do próprio Estado. E como se tudo isso não fosse bastante, o custo de emissão destes documentos é qualquer coisa fora daquilo que é a realidade em Moçambique, do ponto de vista dos rendimentos da maioria dos seus cidadãos.

O custo de emissão do bilhete de identidade passa de 50 para 180 meticais, mais do que o triplo. Se muitos mo­çambicanos nas zonas rurais já andavam indocumentados, este agravamento da taxa de emissão do bilhete de identidade só os poderá desencorajar de procurar regularizar a sua situação, contrariando dessa forma a própria política do Estado, que é de encorajar o maior número de cidadãos a docu­mentarem-se.

A taxa de três mil meticais para a obtenção de um passaporte é absolutamente irrealista, considerando que este valor está mesmo acima do salário mínimo nacional. A consequência será uma maior incidência de casos de violação de fronteiras, criando problemas com os países vizinhos, e pondo em causa ganhos do passado quanto à livre circulação de pessoas na região .

Mais controverso ainda é como foi decidida a distribuição dos espólios deste chorudo negócio. A parte do leão dos valores a serem arrecadados com a emissão de bilhetes de identidade, passaportes, e de vistos de entrada e de residência para estrangeiros ficará com a SEMLEX, numa proporção que vai de 60 porcento no caso dos passaportes, vistos e documentos de identificação de estran­geiros, até 83 porcento no caso dos bilhetes de identidade. A racionalidade humana havia de esperar que sendo o Estado o proprietário destes documentos, caberia a ele absorver a maior parte das receitas.

Por outro lado, a questão do valor a ser pago por um documento do estrangeiro residente em Moçambique, levanta uma série de questões que precisam de ser cuidadosamente avaliadas. Este docu­mento passará a custar o equivalente a mil dólares, o que ao câmbio actual representa mais 30 mil meticais. Estes documentos são passados a cidadãos estrangeiros que residam no país. Mas se outros países decidirem retaliar, é pouco provável que haja moçambicanos a residir no estrangeiro, particularmente nos países vizinhos, com capacidade de desembolsar quantia equivalente para a normalização da sua situação como residentes estrangeiros nesses países.

Há outras questões à volta deste negócio que requerem uma investigação. Onde é que fica a sede desta empresa em Moçambique? Será verdade que para o início da operação de emissão dos bilhetes de identidade biométricos os fundos necessários foram disponibilizados pela própria Direcção de Identificação Civil (DIC), e não pela SEMLEX, como seria de esperar na sua qualidade de concessionário?

São questões que devem ser es­clarecidas, porque se não poderemos estar em presença de um gigantesco escândalo biométrico, em que o Estado terá pra­ticamente sido burlado, à semelhança de outros como a Guiné Bissau.

Por Fernando Gonçalves, SAVANA, 12/03/10

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