Sunday 21 March 2010

O Olho de… João Paulo Borges Coelho


Olhos azuis, discurso claro e palavras brandas e pausadas. João Paulo Borges Coelho, vencedor do Prémio Leya com o romance policial «O Olho de Hertzog» (já disponível no mercado nacional e moçambicano), cativa com facilidade o seu interlocutor. A sua postura é de uma pessoa disponível para ouvir, mas também pronta para falar, ou seja, uma pessoa ciente de que nada deve interferir uma conversa. Professor universitário em Maputo, contraria assim a imagem de afastamento que transmitem os académicos, algo tão presente na Europa. Talvez seja dos ares de Moçambique, onde muitos dizem que o tempo tem outro… tempo.
João Paulo Borges Coelho começa esta quinta-feira a digressão de promoção da sua obra. Hoje será em Lisboa, na Sociedade de Geografia, pelas 19h00. Segue-se Porto, no dia 19, Coimbra, no dia 20, Luanda, no dia 25, e São Paulo, em Junho.
Leia aqui o primeiro capítulo.

«O Olho de Hertzog» serve-se antes de tudo do romance policial para contar uma história sobre… Lourenço Marques, que João Paulo Borges Coelho considera ser a personagem principal do seu livro. Professor de História Contemporânea de Moçambique e África Austral na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, este moçambicano que nasceu no Porto veste com facilidade a pele de escritor, já que vê a literatura como uma «exploração interior». E é através dessa «exploração» que constata que vivemos a nível global um tempo onde o presente esquece o passado e ignora o futuro. Como acontece hoje por exemplo com a nova geração moçambicana, que desconhece por completo o período colonial. «É como se a independência fosse uma espécie de página em branco, que fez nascer um país e tudo e todo o resto passou a ser uma massa difusa, onde não há sequer nenhuma necessidade de informação. E o livro procura também chamar a atenção para isso. É importante pensar esse passado».

O júri considerou a sua obra «uma metáfora da demanda do destino individual e colectivo e do nunca desvendado mistério do ser». Concorda com esta consideração?
É uma afirmação suficientemente genérica para nos levar a concordar sempre, posto assim dessa maneira. Mas de facto há algumas pontes, no sentido de que procurei fazer com que cada personagem fosse ambígua, representasse muitas coisas ou estivesse coberta por muitos véus que caem à medida que a história avança. No fundo é uma espécie de jogo com a História sem aceitar a História. A pergunta é um pouco esta: «E se as coisas não tivessem acontecido assim?». É este jogo ambíguo que caracteriza a narrativa do livro. Cada um afinal não é exactamente aquilo que fazia crer.

E porque escolheu um alemão como um dos personagens principais?
Um pouco por capricho mas também pela necessidade que tinha de encontrar alguém suficientemente neutro. Se fosse um português estabelecia imediatamente outro tipo de relação com o jornalista luso-moçambicano, que representa a cidade, digamos assim. Ao mesmo tempo um alemão permitia ligar estruturalmente a história à campanha militar alemã no Norte de Moçambique.

E a escolha inicial foi desde sempre essa? A verdade é que muitas vezes sentimos que a personagem está dentro do romance, mas ao mesmo tempo fora.
Arrastei a resposta da presença dele quase até ao fim do livro. O objectivo foi estabelecer uma ponte entre duas narrativas diferentes. Interessava-me trabalhar sobre a guerra, ligando-a à cidade. Essa campanha militar é quase desconhecida em Portugal mas também em Moçambique. E é um pouco estranho como a capital viveu esse período. A resposta talvez seja que a cidade de Lourenço Marques, nessa altura, apresentava uma ligação muito forte com a África do Sul, que atraía de forma muito enérgica a atenção da capital, levando-a a deixar de lado a campanha militar.

Mas esse esquecimento tem alguma razão especial do seu ponto de vista?
A partir dos anos 60 aconteceram os primeiros movimentos de libertação, que deixaram uma marca muito forte na sociedade. A seguir houve a guerra civil, que também deixou uma marca fortíssima no povo e na história de Moçambique. Ou seja, há uma sequência recente de conflitos muito intensa. Mas a verdade é que não há um grande conhecimento do período colonial, é como se a independência fosse uma página em branco que fez nascer um país e todo e tudo o resto passa a ser uma massa difusa, de que não há sequer nenhuma necessidade de informação. E o livro procura também chamar a atenção para isso. É importante pensar esse passado.

Ou seja, os moçambicanos pretendem, querem esquecer esse período colonial?
Não tem a ver com isso. A geração que viveu o período colonial está a desaparecer rapidamente. É um pouco como no Brasil, onde a pirâmide é diferente da Europa. A maior parte da população moçambicana já nasceu depois da independência, não tem qualquer tipo de experiência simbólica, macabra, traumática. Portanto, não sente necessidade de conhecer o seu passado.

Mas isso também acontece em termos académicos?
Não, mas não tem o peso da independência, por exemplo. O período colonial não é vivido como tão relevante, importante. Mas isso acontece em todo o lado, vivemos cada vez mais o presente. O período colonial está presente, mas não com a complexidade que deveria ter. Há a escravatura, os contratos mercantis, a história tende quase um pouco para o estereótipo. Mas isso eventualmente ressurge de outra maneira, pois o jogo da afirmação identitária exige também um diálogo com esses períodos. O que queria dizer é que a própria civilização, no sentido global, cada vez mais vive o presente, impõe uma amnésia ao passado e mesmo ao futuro. É preciso desfrutar o que acontece neste momento, o presente é fortíssimo, esquece o passado e não abre muitas perspectivas em relação ao futuro. E é um pouco nesse sentido que o livro reflecte.
Eu olho para a cidade… no fundo o livro foi também um pretexto para escrever sobre Lourenço Marques. Talvez seja inclusive a personagem principal do romance. Uma cidade que, apesar de jovem, com um historial já tão intenso, surge hoje completamente apagada, por essa incrível força do presente. Pretendi dizer que Lourenço Marques já foi outra coisa, não necessariamente melhor, mas foi uma cidade que teve várias vidas. E que continuará a ter… A vida de Maputo não se resume ao que é hoje.

Mas a sua ideia inicial foi escrever sobre Lourenço Marques e a história surgiu depois ao seu redor?
Eu não parto para um livro com um plano definido, mas com uma ideia. Depois faço uma espécie de auscultação a intuição, se aquilo vai ou não crescer. Já aconteceu por exemplo falsas partidas. Neste livro em concreto não havia apenas um ponto de partida, mas vários. Um era de facto Lourenço Marques com um jornalista lá dentro, mas também havia a campanha militar.

A ideia que temos do livro é também que as primeiras raízes de afirmação de Moçambique como Estado, como país foram plantadas nesta guerra. Mas a verdade é que a independência demorou quase sete décadas a surgir…
O Moçambique de hoje é de alguma maneira, e isso talvez seja mal interpretado, uma criação colonial. Ou seja, Moçambique, antes da criação colonial, não existia como unidade, quer utópica quer política. Foi a demarcação das fronteiras que criou o país. Havia muitas unidades culturais autónomas, mas só com a criação da fronteira, e a sua política para o território, é que tudo ficou normalizado, foi quando se criou um denominador comum de moçambicanidade, que é também um denominador de subalternidade. Nesse sentido o país é filho do colonialismo. As fronteiras cortaram, e continuam a cortar, complexos culturais e linguísticos que são comuns. Ou seja, o crescimento da semente da independência durou o tempo de fermentação natural dos anos. Isso no ponto de vista interno, já que, do ponto de vista externo, surgiram nos anos 60/70 condições mais gerais para a independência.

Há algum rancor dos moçambicanos com os portugueses?
Não diria rancor, mas uma produção de distanciamento, algo natural porque está ligada à dinâmica da afirmação identitária, que é muito recente. Acredito que é natural esse vigor da afirmação nacional, da afirmação identitária, que passa pela necessidade de produzir esse distanciamento.

E isso justifica a ideia que temos aqui em Portugal de que Moçambique está cada vez mais próximo da África do Sul?
Na realidade sempre esteve. Talvez seja uma ilusão que se criou em Portugal que as amarras foram rompidas após a independência. Mas o próprio crescimento de Moçambique colonial só fez sentido como periferia da África do Sul. Moçambique cresceu alimentando o crescimento da África do Sul. A ligação com a África do Sul não é actual, é uma ligação que existe desde o princípio do conceito de Moçambique, digamos a partir de meados do século XIX.

Considera-se um cronista de Moçambique?
Não, o meu objectivo não é dar a conhecer Moçambique, mas definir os meus próprios temas no campo da literatura. Moçambique existe porque é uma literatura que se procura alimentar do que a cerca. O objectivo não é uma ideia de uma literatura estritamente nacional. Não me considero de modo algum um cronista de Moçambique.

E além de Moçambique qual o traço comum nas suas obras?
É um pouco difícil responder a isso porque o que me faz mover dentro da escrita é sobretudo a experimentação, por exemplo, a experimentação de vozes, de escritas diferentes. Eu sou um escritor relativamente tardio e portanto não tenho o menor apego à ideia de fazer uma carreira coerente, de explorar um filão. O que prometo é a incongruência, a inspiração, a experimentação. Trabalhar diferentes matérias com perspectivas diferentes e divertir-me nesse percurso.

Ganhou também o Prémio José Craveirinha. Não queria comparar os dois prémios, cada um vale o que vale, mas o que sentiu com um e com o outro?
São dois prémios de natureza totalmente diferente, mas devo dizer que olho para ambos como uma coisa exterior à própria escrita. Não é algo que influencie a minha prática de escrita no sentido directo. Seria um bocado ingénuo e mentiroso se dissesse que os prémios não me influenciam de uma certa maneira, mas isso não me deslumbra. Penso que continuo com a mesma perspectiva que tinha antes em relação ao que pretendo com a minha prática literária. O Prémio Craveirinha é um prémio nacional no sítio onde vivo, portanto tem um determinado tipo de expressão, embora muito menos do que pode ser levado a crer a partir do exterior. Tem o impacto que tem na literatura em Moçambique, que é muito reduzida dentro do país. Nesse aspecto era importante que tivesse muito mais expressão, ou seja, que a literatura em si tivesse um maior impacto. Já o Prémio LeYa provoca outro tipo de visibilidade, que é até um pouco intimidante, e tem efeitos talvez positivos, um pouco como cascata, não só em relação a este livro, mas também com os restantes.

Também é professor, onde deve ter uma visão muito racional das coisas. No papel de escritor, pelo contrário, pode exercer a liberdade ao seu belo prazer, entregar-se à emotividade. Onde esses dois mundos se cruzam? Há alguma complementaridade entre ambos ou são campos opostos?
Digamos que há interferências e também uma certa complementaridade no sentido em que a própria História, que é a disciplina que lecciono, vive muito da imaginação. As ciências humanas e sociais não são exactas. Há interferências mas o que busco nas duas práticas não é complementaridade, mas o contraste, ou seja, acredito que na literatura há um espaço diferente para os aspectos intuitivos, emocionais, inclusive para o capricho. Ou seja, uma liberdade que na narrativa académica não é compatível, já que aí o paradigma é diferente, o paradigma da verdade, que no entanto nunca será atingível, já que há várias verdades, várias narrações da mesma história. A História não existe, não aconteceu como nós a escrevemos. Já na literatura é diferente, até o espaço do não-racionalizado cabe. E é isso que busco na literatura. Não procuro nela uma forma diferente de passar a mesma mensagem da História, mas um mecanismo. Se calhar até um pouco de exploração interior. Acredito que não são caminhos opostos, mas caminhos e interesses diferentes, distintos. Evacuar totalmente a História da literatura já seria uma posição suspeita de complementaridade porque era viver a literatura contra a História. E esse não é o meu objectivo, mas viver a literatura fora da História.

Este livro exigiu uma grande pesquisa da sua parte?
É curioso que a ideia que passa ao leitor é que foi um livro muito estudado. Mas a pesquisa não foi intensa, havia um capital interior acumulado muito grande. Por exemplo, o meu próximo projecto está centrado num período histórico diferente, não tem tanto esta visão de contexto, o contexto está mais distorcido. Mas não deixam de ser cargas de informação que tenho. Às vezes é necessário um certo tipo de escape, ter uma abordagem completamente mais abstracta, como já me aconteceu no passado, com o «Campo de Trânsito», que não tem qualquer contexto temporal ou geográfico. Não me senti estafado ao escrever este livro. Não faço um investimento tão dramático com a escrita. Não estou numa febre permanente de criação. Quando o livro não me responde estou a trabalhar em outras coisas. Nem todos os dias tenho a mesma disposição de escrever especificamente para um determinado livro, já que o acto de escrever é um vício, mas nem sempre dirigido para a mesma obra. Isso significa que há momentos de pico mas não são permanentes. Mas quando eles ocorrem só existe aquilo. Nunca tive a angústia da página em branco.

Como é a sua relação com os leitores moçambicanos? Como eles viram o prémio?
Há muita resposta a nível de estudantes das universidades. Mas como disse há pouco, a literatura ocupa um lugar muito restrito no país. O prémio é um fenómeno com um certo eco mas não um fenómeno nacional. Num certo sentido, ainda bem, mas por outro lado demonstra o lugar que a literatura ocupa em Moçambique, um lugar mais frágil do que ocupa em Portugal, por exemplo, onde sofre poderosas concorrências. A ideia é tornar a literatura mais forte em Moçambique, embora não sei de que modo. A literatura nunca vai retomar o papel que já teve, mas há legitimamente na sociedade um papel que lhe cabe.

A sua vida mudou desde o Prémio LeYa?
Não de todo. Apenas algumas mudanças estruturais. Não tem sentido do ponto de vista material viver da escrita. É muito difícil sobreviver hoje da escrita. E também nem sei se gostaria. Às vezes parece que teria uma vida mais relaxada, mas outras vezes também me passa pela cabeça que uma pessoa que vive só de um determinado tipo de escrita acaba por entrar numa dinâmica autofágica porque não tem canais formais de ligação com a sociedade.

(Pedro Justino Alves, Diário Digital, 18/03/10)

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