Thursday 23 January 2014

.Guebuzismo: desde o “apartheid”até ao colonialismo

O guebuzismo fez ressurgir, a discriminação racial, um tipo de “apartheid”, fundado num sistema de castas raciais, mais pelo determinismo social e político, como acontece na Coreia do Norte. Tal é manifestado nas seguintes categorias raciais: os moçambicanos de gema, os goeses, os expatriados, os tribalistas e os párias.
Os moçambicanos de gema, por contraposição aos goeses, são os negros. Estes constituem a classe dominante.
Na procura do lançamento de um nacionalismo negro, o guebuzismo cunhou de goeses a uma determinada elite que na primeira república era mais chegada ao presidente Samora Machel e hoje é crítica aos métodos de governação de Armando Guebuza. São indivíduos de primeira linha da Frente de Libertação de Moçambique, comprometidos com o ser africano e a Negritude. Estes indivíduos, agora expurgados, têm reminiscências raciais africanas, asiáticas e europeias.
Na lógica dos porta-vozes do regime, os expatriados são jornalistas independentes tidos como portadores de uma segunda pátria ou que não se deixam arregimentar. São implicitamente os moçambicanos de origem europeia e africanos com uma atitude de cidadania marcadamente universais e que se notabilizam por uma atitude crítica e distanciada da governação de Guebuza. No advento da independência assumiram a cidadania moçambicana e engajaram-se em todos os processos/frentes da revolução.
Com a emergência do liberalismo económico e da corrupção adoptaram uma atitude social em função da realidade. São os considerados detractores e hostis ao regime do dia, pois mantém a luz do dia, aquilo que foi o conto de fadas da Frelimo: libertar a terra da opressão e do colonialismo, criação de uma sociedade de bem-estar comum, um Estado social a exemplo da União Soviética.
Alguns hoje tidos como expatriados eram também intelectuais da primeira linha de Samora Machel, a quem os novos ideólogos da Frelimo imputam as falhas e descalabros cometidos pelo dirigente da primeira república.
Os tribalistas são fundamentalmente os nacionais que se distanciaram da Frelimo e encarnam outro conceito de progresso e nacionalismo. São os cidadãos das cidades da Beira, e Quelimane, segundo disse recentemente um dos corifeus do regime, porque votam no MDM. Contam-se neste grupo descendentes dos que combateram o marxismo-leninismo e a ditadura em Moçambique mais os excluídos da nova aristocracia e burguesia nacional. Contam-se também como tribalistas aqueles cujo pensamento nacionalista não vai de acordo com o dogma do regime.
Os párias do sistema são os cidadãos que exercem assumidamente a cidadania, quer através de partidos de oposição, quer através do activismo em organizações da sociedade civil. São os que o sistema não conseguiu capturar, incluso mais de cinquenta por cento de cidadãos com idade eleitoral que não vota em virtude de descrédito dos órgãos eleitorais.
São os tidos como cidadãos financiados com fundos estrangeiros para desestabilizar o poder do “Filho Mais Querido do Povo”, termo que textualiza com “Querido Líder”, como é apanágio do regime norte-coreano tratar Kim Jong I, no nosso caso o Presidente da República.
Os goeses, os expatriados, os tribalistas e párias são os considerados detractores do regime e por isso alvos da purga do regime, quer a partir do aparato militar, quer a partir dos órgãos judiciais.


Como funciona o “apartheid” moçambicano?
 

A primeira casta é a dos leais, coincidentemente o mesmo género adoptado pela Coreia do Norte. Dela fazem parte os mais próximos ao Guebuza, aqueles que evocam e exaltam o nacionalismo económico moçambicano (analogia implícita a uma elite económica negra/de gema/genuína). Aqui cabem os filhos de Guebuza e dos combatentes da luta de libertação entre si unidos, em diferentes alianças e conexões empresariais. Inclui-se o círculo restrito do poder, a chamada linha dura do actual regime e mais todos os entusiastas do presidente da República e da Frelimo. Desta casta também fazem parte aqueles que buscam pela salvação económica e temem o ostracismo (directores, ministros, governadores, secretários dos bairros, administradores, chefes dos postos e secretários permanentes) e parte dos cerca de duzentos mil funcionários públicos que não têm outra forma de sobrevivência e não têm como se livrarem das amarras de O Glorioso. Aqui cabem ainda os juízes dos tribunais judiciais, administrativos e aduaneiros, conselhos superiores de comunicação social e magistratura, reitores de universidades públicas, PCAs de todas as empresas públicas e entidades eleitorais.
Os expatriados, goeses e apelidados tribalistas têm pouca possibilidade de progredir na vida económica. Os leais são os que dentro da aristocracia têm sangre azul. Têm mais hipótese de mobilidade até escala mais alta da aristocracia/oligarquia/establishment, diferentemente de um mero cidadão comum. Por exemplo, um cidadão, que esteve desempregado durante três anos, depois de arregimentar-se de forma aberta, foi promovido a director de informação num órgão de comunicação social e obteve licença de exploração mineira.
Qualquer crítica fora da classe leal que puser em causa a forma de direcção do país, da governação de Guebuza e do partido no poder, estuda-se o autor. Se for de um goês, um indivíduo conotado tribalista ou um expatriado é alvo imediato.
Logo é para ser abatido na imprensa pública (TVM, RM). Aqui só têm direito à opinião os leais ao regime, nomeadamente os acólitos do regime, e todo aquele que, temendo o ostracismo, pense dentro da linha do regime do dia, através de hossanas ao também apelidado de Visionário, Clarividente e Generoso (termos com que se pretende elevá-lo à qualidade de Guia Espiritual).
Se alguma crítica despir a qualidade sacro-santa do “Guia Espiritual”, os acólitos de regime ensaiam a preparação da cama do autor, a começar pela TVM, RM, depois via Conselho Superior de Comunicação Social. Em última instância o articulista é processado pela Procuradoria da República.
Num país onde milhares de queixas-crime apodrecem nos cartórios das instâncias judiciais, o processo do expatriado é julgado com celeridade.
O caso Nuno Castelo-Branco, acusado de ofender o “Querido Líder”, é disso um exemplo.
Na situação em que numa publicação os leais (Sargento Aposentado, Silvestre Nhungo e Jorge Xiyahimassiku) da aristocracia ofendem um indivíduo que não seja de gema, o pedido de desculpa deste (ofendido) é ignorado. O caso Sérgio Vieira é disso exemplo.
Um dos acólitos do regime, cliente do Correio da Manhã, atribuiu parte de responsabilidades dos descalabros de Samora ao jornalista Fernando Veloso, com tons racistas, mas o CSCS faz vistas grossas.
O “apartheid” introduzido por este regime em Moçambique têm alicerces no método do controlo social do regime totalitário da Coreia do Norte.
Tem uma componente mais elaborada e intrusa, o que é feito na vida social e mormente através de escuta dos telemóveis e policiamento social, incluso nas redes sociais onde os acólitos lançam pedidos de amizade imbuídos de má fé.
A instrução do processo-crime contra Castelo-Branco é também mais uma forma de fazer-se ao controlo de um cidadão nacional através deste clássico método de ‘apartheid’.
A pressão sobre o poder judicial tem em vista a satisfação da expectativa de alguns moçambicanos de “gema”, que pretendem ver reposto o seu orgulho ferido, através de linchamento da “imprensa expatriada”.
No cenário político actual não se reconhece nenhuma integridade ao tribunal O tribunal que está a julgar este processo, atendendo que o judicial está a ser industriado a agir contra a mídia independente, que na óptica dos acólitos do regime suportam a oposição.
O poder político afirma amiúde que cumpre com a Constituição da República e o princípio de separação de poderes, mas neste caso está-se a urdir uma sentença política, para desencorajar os cidadãos e a sociedade civil crítica ao sistema, de fazerem ondas.
O que suporta a tese de que a “mídia expatriada” é inimiga declarada do guebuzismo são as afirmações literais do secretário-geral do partido Frelimo, Filipe Paunde, para quem a crítica ao autoritarismo do “Filho Mais Querido” deve-se ao excesso de liberdade de opinião/imprensa. Todavia, o sentimento quase generalizado dos moçambicanos é de que a fonte de discórdia nacional e a razão da presente tensão político-militar do país é o “Filho Mais Querido”.
Margarida Talapa, outra figura como Paunde pertencente a “realeza”, tem o mesmo posicionamento do seu secretário-geral no tocante a liberdade de imprensa.


O endocolonialismo e o regresso da escravatura


A memória dos homens que libertaram a pátria está corrompida pela arrogância e prepotência.
O país viveu de 1975 a 1990 um regime totalitário e monopartidário. De 1990 até 2012 houve relativa fruição de liberdades: política, de pensa de 2013 conheceu-se uma viragem.
A imprensa pública foi capturada pelo partido no poder.
O país, com índice de pobreza de 54 por cento, agora vive novo conto de fadas.
É um índice de pobreza que vem de há mais de 10 anos, e que, se não tende a agravar-se, tende a criar um grande fosso entre pobres e ricos.
A riqueza de Moçambique está grosso modo nas mãos da família Guebuza, o seu círculo restrito e figuras de proa do partido Frelimo. Todo o crítico das desigualdades sócio-económicas, da corrupção do Governo, da primitiva acumulação de capital da parte da família do Presidente é apelidado “apóstolo da desgraça”, “tagarela” e “intriguista”.
No passado criticava-se o colonialismo pela restrição de direitos fundamentais.
O conto de fadas que a elite política transmite é de que o colonialismo oprimia o povo.
Fazia do moçambicano a sua propriedade. Todavia, a elite política é ao mesmo tempo a elite económica que reparte entre si o queijo dos recursos naturais e energéticos. Detém o estatuto de privilegiado, é protegida por lei. Um estatuto de que se serve para tratar os demais como súbditos e subordinados.
Eis o que se vive: o endocolonialismo. Onde o negro nacional é o novo opressor.
Todavia, hoje a oligarquia está a reproduzir os mesmos erros do passado. Os intelectuais são desencorajados de criticar os mega-apetites económicos e o autoritarismo do presidente.
O partido Frelimo tornou-se dono do povo, a quem só é permitido venerar/exaltar o Clarividente e o Glorioso. Paunde, quando secretário da Frelimo em Sofala, defendeu a tese de que o multipartidarismo não é bom porque atrasa o desenvolvimento.
Daí compreende-se a assanha e saga contra a oposição e a liberdade de imprensa/ expressão em Moçambique.
Ressalta daqui um paradoxo recorrente, pois só a um escravo se lhe diz que tem excesso de liberdade.
O hino moçambicano refere no último verso “nenhum tirano nos escravizará”, mas a escalada de violência do poder político revela uma amnésia do passado e um extremismo que poderá conduzir o país ao abismo.
Refira-se que de 1990/2003 Moçambique chegou a ocupar um lugar de vanguarda em África no campo da liberdade de expressão. À sua chegada ao poder, Guebuza agravou o regime de indemnizações para o caso de difamações na imprensa: de quinhentos meticais para vinte mil meticais
Em matéria de respeito às minorias raciais, Moçambique conheceu uma fase sinuosa, quando o então ministro do interior, Armando Guebuza, declarou 24/20, o que precipitou na saída em debandada do país de 200 mil cidadãos brancos de origem portuguesa.
De recordar que até 1976 havia nas cadeias moçambicanas cinco mil moçambicanos detidos por pensar diferente. Os traumas estão latentes e o país funde-se numa escalada de terror.
O isolamento do regime e a sua clausura, que se limita a um círculo cada vez mais fechado, fez nascer na sociedade moçambicana duas classes sociais antagónicas: os civilizados (leais ao Guebuza) e os bárbaros (críticos), por via disso excluídos. Nesta dicotomia discriminatória há claramente uma instituição do ‘apartheid’, onde se materializa a instituição dos novos “mulungus” encarnados num colectivismo dialéctico “nós” (defensores do guebuzismo) e “outros” (a classe dos inferiores).
Daqui infere-se a necessidade de os moçambicanos se rebelarem contra o ‘apartheid’ que tende a dividir os filhos desta mesma pátria. Há necessidade de os moçambicanos indignarem-se contra este regime que já não oferece nenhuma visão quanto ao tipo de sociedade que pretendemos ser. Há necessidade de os moçambicanos perseguirem esse ideal porque o poder político está algo confuso. A soberania que lhes foi outorgada na base do contracto social está a ser usada como um meio de supremacia/
domínio de um grupo fundado num chauvinismo aventureiro e perigoso, capaz de levar a deterioração da paz social, deixando desamparado o povo que esperada a protecção deste mesmo poder político.
A liberdade, nos termos em que o poder político pretende coarctar, é indisponível.
Ao contrário é a escravatura.

Adelino Timóteo, Canal de Moçambique – 15.01.2014, no Moçambique para todos

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