Friday 4 February 2011

Sebastianismo político

Tem andado por aí na blogosfera um corropio de possíveis candidatos à PR. Ainda a procissão não vai no adro e já se jogam no tabuleiro político as mais diferentes previsões. Espantosa esta maneira de se medir a predilecção dos eleitores. Oportunista a percepção dos intelectuais do Governo para quem, um povo, tal como as moscas, pesca-se com mel e não com vinagre. É preciso semear para colher. E para tal, nem que se tenham de inventar pseudo-sondagens na síndrome de um congresso, vale tudo para se vestir agora de trajes garridos e femininos a tese peregrina do novo Messias moçambicano, triunfalmente cavalgando em bubus e lantejoulas, as esperanças de um ansiado bem-estar.
Obviamente, todas as figuras até aqui servidas aos comensais pertencem ao mesmo conjunto universal. Seria mesmo utópico, à luz desta sociedade, pensar-se que uma mudança política poderá acontecer aqui, tal como sucede na Tunísia ou até no Egipto. Aqui, onde até já tivemos duas grandes erupções sociais por motivos parecidos, para cedo nos apercebermos quão fraccionada é a sociedade moçambicana. Daí achar natural que muita gente, mesmo reconhecendo que escolhe mal, prefere manter a sua escolha, a ter que navegar na incerteza entre o mau e o péssimo.
Em qualquer sociedade política evoluída, a acumulação simultânea de cargos políticos e empresariais seria o suficiente para ditar a rejeição de uma candidatura por parte de seus eleitores. Porque na definição original, governar um país é funcionalismo público. É missão e não acumulação primitiva de capital. Nos EUA, o país de todos os defeitos para alguns de nós, o presidente recebe ao longo do seu mandato muitas ofertas materiais e pecuniárias, todavia os seus rendimentos são limitados por lei. O que significa dizer que se o valor da oferta ultrapassar o limiar permitido, ela deverá ser entregue ao Tesouro para ser transferida para Fort Knox ou oferecida a instituições de caridade. Note-se que o salário anual do Presidente dos EUA é de conhecimento público. Ronda os 400 mil USD e inclui 50 mil USD para despesas pessoais justificadas durante a comissão de serviço, 100 mil USD não taxáveis para viagens, além de 19 mil USD para entretenimento pessoal e habitação. Por seu turno, a Primeira-Dama dos EUA recebe cerca de 20 mil USD. Após o mandato presidencial, o título e algumas regalias oficiais são mantidas de acordo com a lei, cabendo ao ex-presidente 150 mil USD de pensão vitalícia, mais 150 mil USD para manutenção de algum staff que a dignidade do título lhe confere. E nem vale a pena comparar isto com o custo de vida médio local, ou até o PIB. Percebe-se que é um salário digno, mas não se compara com os rendimentos de um empresário médio norte-americano. Aliás, importa salientar que, de um modo geral, antes e depois dos mandatos, salvo motivos de força maior, os presidentes do EUA continuam a exercer a sua carreira profissional. Como é evidente, uma passagem pela Casa Branca é portfolio mais do que suficiente para não se morrer pobre, à custa de conferências e autógrafos.
Mas o Presidente dos EUA pode perder imediatamente o seu cargo se sonegar alguma coisa fora deste grupo de regalias. Ora, que grande contraste para quem, como eu, puder ler no BR que até é legal receber 10%252525 como estímulo salarial de um investimento qualquer, traduzidos num punhado de dólares, para se autorizar a concessão de uma coutada luxuosa de caça, uma fábrica de pasta de papel, uma barragem, um simples projecto para crianças desfavorecidas ou educação da rapariga, uma fabriqueta de abre-latas ou até, a manutenção ad aeternum de um projecto anti-malária num distrito qualquer para fidelizar o mercado local de consumidores de redes mosquiteiras e insecticidas avulsos, incluindo o perigoso DDT. E o pior, ainda se vem a terreiro e com cobertura mediática reclamar grandes feitos para a nação!
Tudo isto é absolutamente surrealista, mas é o modo de se pensar e viver hoje em Moçambique. Habituou-se neste país a contentar-se sebastianicamente com rótulos. Um consultor de imagem é agora o dono da profissão mais lucrativa do nosso mercado. Há uma profusão de firmas de marketing e de comunicação e imagem. Paga-se para se ter uma imagem limpa e antiséptica, pouco se trabalha para não se emporcalhar a própria imagem. Dane-se o desempenho das instituições e quiçá do próprio país. Não há problema, um pornocrático sistema publicitário, umas t-shirts e uns bonés na dose certa resolvem.
Um enxame de consultoras legais e financeiras nos cerca, com os mais espantosos gurus da gestão e das leis cintilando no seu quadro, especialistas em soluções do tempo da pedra lascada, com o propósito uno de preservar o monopólio e a cartelização de franjas do mercado. Nada de positivo trazem para a economia real de Moçambique, porque não produzem nada, senão relatórios e muito parlatório. Questionam a venda da Riversdale à Rio Tinto por 3800 milhões de dólares norte-americanos, pelo facto do Estado moçambicano não ter encaixado nem sequer um centavo, tendo em conta que as reservas de carvão, o negócio em causa, encontrarem-se em território nacional. Ora, desde os primórdios da Revolução Industrial que é sabido que uma multinacional nunca foi uma instituição de caridade. Inclusive a Banca. E tão surpreendidos ficam com as suas descobertas, que mal se aperceberam que a siderúrgica sul-coreana Posco e a brasileira Vale estão prestes a fazer o mesmo. E que depois delas, muitas outras o farão.
Estuda-se nas nossas universidades contabilidade clássica, para criativamente se maquilhar no dia-a-dia prejuízos financeiros e penalizar-se o fomento da boa gestão com rodriguinhos de burocracia inaudita. Encoraja-se sobretudo a desonestidade intelectual, que vai ao ponto de nos dizer que nos últimos oito anos, o saldo do endividamento externo, excluindo os grandes projectos, foi além do dobro, passando de 377,2 milhões de dólares em 2002 para 907 milhões em 2009. E que a dívida global das empresas privadas, excluindo os mega-projectos, aumentou cerca de 28 porcento do PIB em 2002 para 41, porcento em 2009. Concluindo-se que isto indicia a estabilidade macroeconómica que caracteriza o país. Não sou economista, mas dificilmente perceberei se algum deles me disser que um crescente endividamento externo é economicamente próspero e simpático para os demais moçambicanos.
Todas empresas têm passivos cíclicos ou mesmos permanentes. Perfeitamente natural numa economia de mercado, já Marx o diria. Quantas vezes não ouvimos falar de grandes multinacionais com um enorme passivo? E porventura vão à falência? Não. Vão ao mercado procurar dinheiro. Fazem OPA’s, vendem acções, refazem a sua estrutura accionista, diminuem a força de trabalho, etc. Agora, o que não vivem é de aparências. Porque é preciso apresentar sempre as contas certas para se ter credibilidade. Porque a qualidade do seu trabalho deve justificar socialmente a sua existência. Quando assim não é sucumbe-se na crise que tudo e todos arrasa como um rolo compressor, incluindo os messias novos ou recauchutados, cavalgando em manhãs de nevoeiro...

Ricardo Santos, Notícias

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