Wednesday, 25 May 2011

A propósito da revisão da Constituição

Eduardo Mulémbwè diz que a comissão “ad hoc” espera ir à África do Sul e Tanzania para se inspirar nos modelos políticos destes países, mas na mesma semana, na Zambézia, o Presidente Guebuza disse em comício popular que o sistema de governação em Moçambique é bom.

Resisti imenso à tentação de me pronunciar sobre o projecto de revisão da Constituição da República, anunciado pela Frelimo, em meados do ano passado, na expectativa de que o proponente colocaria na mesa os dados para melhor análise e aí, sim, eu escreveria com melhor propriedade sobre o assunto.
Mas passam agora cerca de 12 meses desde que a Frelimo tornou pública a sua intenção de rever a lei-mãe e, no entanto, até agora o partido no poder ainda não disse efectivamente o que está mal na actual Constituição, que é preciso rever. Pior que tudo, não parece interessado em dizê-lo. Pelo menos por ora, como deu para perceber, esta semana, na intervenção do deputado Eduardo Mulémbwè, chefe da comissão “ad hoc” encarregue de dirigir o processo.
No espaço que o parlamento reservou para a comissão apresentar aos moçambicanos o relatório do que já fez e está a fazer no processo de revisão constitucional, Eduardo Mulémbwè limitou-se a enumerar actividades meramente administrativas, sem nunca pôr o guizo ao gato, prometendo dar a conhecer o principal de uma revisão constitucional – o que se está e quer rever – apenas... na próxima sessão da Assembleia da República. Portanto, lá para o final do ano.
Ou seja, entre o período em que a Frelimo manifestou a intenção de rever a Constituição e aquele em que revelará o que quer mudar nessa Constituição, passará (...) um ano e meio! Parece evidente que a Frelimo lançou um isco na esperança de dar os próximos passos em função da reacção social a esse isco. Se ninguém se importar, avança com a revisão constitucional. Se houver reacções negativas, coloca-se a jeito de um impasse com a Renamo e termina o processo.
Eduardo Mulémbwe disse que a comissão que lidera, esperava estudar as constituições da África do Sul e da Tanzania como modelo a seguir pela nossa futura Constituição. Quer dizer, parece que voltámos para 1990, ainda a tentar consolidar o fim da guerra, ainda à procura de um modelo constitucional a seguir. Do jeito que Mulémbwè caracterizou o processo, parece que somos o Sudão do Sul, a novel pátria que está a nascer em África, ainda à procura de um rumo e de melhores modelos. Estes 21 anos de vigência da Constituição multipartidária, e as melhorias que esta mesma Constituição sofreu em várias ocasiões desde então, a última das quais em 2007, parecem uma ficção para algumas pessoas.
Admito que haja aspectos a melhorar na actual Constituição. Não sou um radical. Vejo a Constituição como um documento que não é estático, que tem que acompanhar a evolução do país, mas, convenhamos, a revisão da Constituição tem que ser ditada por imperativos absolutamente incontornáveis. Como sucedeu, por exemplo, em 2007, na última revisão pontual desta mesma Constituição, para acomodar a realização de eleições provinciais, ou ainda antes, em 2004.
E tanto em 2004 como em 2007, desde a primeira hora, estavam claras as questões centrais da discussão. Isso não sucede agora, mais de um ano depois de lançada a ideia. É isto, em parte, que adensa a ideia de que este processo traz consigo uma agenda pouco conhecida pela sociedade em termos dos seus interesses; que, em linguagem popular, se diga que há qualquer outra coisa que a Frelimo quer atingir, mas não revela publicamente. E até pode não haver nada, mas a atitude da Frelimo legitima essas especulações!
Aliás, olha-se para o peso específico da equipa que a Frelimo colocou na comissão “ad hoc” de revisão da Constituição e fica-se, logo, com a convicção plena de que a Frelimo está a preparar algo de verdadeiramente grandioso na próxima Constituição. Esse algo não estará, provavelmente, alheio à corrida pela sucessão, um assunto que se evita abordar em voz alta, mas que está no topo da agenda de alguns militantes seniores deste partido, parte significativa dos quais está precisamente (será coincidência?) na comissão “ad hoc” de revisão da Constituição.
Portanto, o problema central é mais da pertinência do que da necessidade. Das prioridades, se quisermos ser mais precisos. Porque esta própria Frelimo nos ensina, todos os dias, que a nossa principal agenda, agora, é combater a pobreza; que é para este objectivo que devemos concentrar recursos a atenção.
Para nos calarem, digam-nos lá, então, em que a actual Constituição impede, verdadeiramente, o combate à pobreza. Quando isso acontecer, serei o primeiro a vir escrever e penitenciar-me.
Eduardo Mulémbwè diz que a comissão “ad hoc” espera ir à África do Sul e Tanzania para se inspirar nos modelos políticos destes países, mas na mesma semana, na Zambézia, o Presidente Guebuza disse em comício popular que o sistema de governação em Moçambique é bom, é dos mais participativos que há no mundo. Ora, se é bom, então, por que querer mudá-lo?
Em abono da verdade, muitos dos membros da Frelimo concordam que é preciso rever a Constituição, nas suas intervenções públicas, mas nenhum deles é capaz de dizer porquê ou o que é absolutamente urgente rever. Dizem que o debate público vai clarificar o que é preciso mudar. É uma espécie de cheque em branco. Vamos aceitá-lo? Ou, pelo contrário, vamos adoptar medidas cautelares para evitarmos que as possíveis mudanças constitucionais não abram espaço para o nosso retrocesso?

PS

Na semana passada, a bancada da Renamo teve uma jogada de mestre no parlamento, como não é usual neste partido: apresentou a proposta de revisão da lei 1/79, sugerindo a extensão das penas gravosas aos quadros seniores do Estado, que desviarem fundos públicos. Tinha sido essa, afinal, a principal reclamação do Procurador-geral da República, no seu último informe na Casa magna ao povo, não há muitas semanas. Mesmo sabendo que dificilmente isso poderia acontecer, por força do regimento de que ela própria é subscritora, a Renamo propôs que o seu projecto fosse discutido com carácter de urgência ainda nesta sessão. A Frelimo mordeu o isco e opôs-se tenazmente, evocando, com razão, as leis da casa, que poucos conhecem, cá fora. Para todos os efeitos, em termos políticos, a Renamo capitalizou ganhos: debitou culpas no seu rival, projectando à sociedade a ideia de que é a Frelimo que não quer que os que se apoderam dos fundos públicos sejam penalizados exemplarmente; que a Frelimo não tem pressa, quando se trata de rever leis para punir os que vivem à custa dos dinheiros do Estado. Que pena que a oposição só tenha alguns laivos de lucidez...

Jeremias Langa, O País

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