Monday 28 July 2008

Quem pára a condução automóvel nas praias?

Regressei há pouco tempo de Chidenguele, distrito de Mandlakaze, um dos principais pólos de atracção turística da província de Gaza e lugar para regressar obrigatoriamente, dada o encanto das suas gentes, praias, lagoas e paisagens.
Tendo visitado a praia de Chidenguele, não podia deixar de ficar horrorizado com a acção vândala de pessoas que teimam em conduzir as suas viaturas pelas praias de área tão ecologicamente sensível como se de um rali se tratasse. Os rastos dos pneus eram marcantes, como verdadeiras feridas na areia dourada e fina, e pertenciam a várias viaturas todo-o-terreno que tinham circulado naquela manhã nos dois sentidos da praia, provenientes da estrada que desemboca no complexo turístico “Paraíso Beach Resort”.
Não encontrei em nenhum lugar tabuletas informando os utentes da proibição de conduzir nas praias, ou sinais da presença de agentes da fiscalização, o que indicia claramente a impunidade com que os infractores se deslocam por aquelas bandas. Na perspectiva de tão ignóbeis campeões do volante, as dunas, a vegetação nativa, os caranguejos ou ninhos de tartaruga estão muito longe de ser bens dignos de importância e, portanto, merecedores de respeito.
Chegam, inclusivamente, a pôr em risco a vida de alguns dos pobres coitados dos banhistas, que, apanhados inadvertidos, poderão encontrar um destino fatal em lugar idílico. Em estilo extraordinariamente ostensivo, põem as suas máquinas a rugir, brotando sons intoleráveis num espaço que devia ser destinado à paz, à contemplação e à reflexão, violando, assim, o direito ao sossego dos demais utentes da praia.
Este cenário verifica-se um pouco por toda a costa moçambicana, especialmente nas províncias do sul, onde existem maiores investimentos no sector turístico. Guardo na memória recente os mesmos comportamentos nas praias da Barra e Jangamo (Inhambane), Bilene (Gaza), bem como Dobela e Milimbagala (Maputo província). Esta constitui uma nova oportunidade para chamar a atenção do público em geral para a entrada em vigor do Regulamento sobre a Prevenção da Poluição e Protecção do Ambiente Marinho e Costeiro, aprovado pelo Decreto n.º 45/2006, de 30 de Novembro. Este Regulamento resultou de um processo verdadeiramente democrático, algo pouco frequente na história da feitura de leis em Moçambique, e que juntou, em primeira linha, a associação Justiça Ambiental e o Ministério para a Coordenação da Acção Ambiental, e que, em parceria, colheram contribuições importantes de outros ministérios e entidades públicas, organizações não governamentais, operadores privados, docentes e investigadores e vários cidadãos interessados em ver melhorada a gestão que fazemos do ambiente marinho e costeiro.
Um dos principiais aspectos regulado no referido instrumento legal consiste precisamente no tratamento da condução de veículos motorizados nas praias, aliás, a principal razão que conduziu à decisão de legislar. Passamos a transcrever na integra o artigo 54.°, que versa sobre esta matéria:
Artigo 54
(Condução de veículos terrestres motorizados)
1.Não é permitida, nas áreas que constituem objecto do presente Regulamento, a circulação de veículos terrestres motorizados, designadamente automóveis, motociclos e outros de natureza similar, fora das vias de acesso estabelecidas e definidas para o efeito, pelas Administrações Marítimas, ou, no caso das áreas sob jurisdição dos municípios, pelos Conselhos Municipais.
2. Exceptuam-se do regime estabelecido nos números anteriores os seguintes veículos:
a) Veículos utilizados no transporte de e para o mar, através de rampas de lançamento ou demais percursos autorizados, de embarcações, motorizadas ou não motorizadas ou outros meios flutuantes;
b) Veículos ligados a operações de fiscalização, prevenção, socorro e salvamento;
c) Veículos utilizados por indivíduos portadores de deficiência motora;
d) Veículos destinados à produção e realização de filmes, publicidade, programas de televisão e sessões de fotografia;
e) Veículos utilizados para efeitos de investigação científica.
3. Para a prática das actividades referidas no número anterior é obrigatória a obtenção de uma autorização junto da entidade competente e que será emitida somente quando não haja quaisquer riscos sérios de poluição, degradação ou outros danos ao ambiente.
4. No caso de viaturas afectas à construção ou manutenção das infraestruturas autorizadas ao abrigo de licenças especiais, estas serão apenas utilizadas no tempo estritamente necessário à realização dos trabalhos, com respeito pelo ambiente do local, após a emissão da necessária autorização junto da autoridade competente.
De acordo com o Anexo VII do referido Regulamento, a circulação de veículos terrestres motorizados sem licença ou contra as condições da licença é punida com sanção de multa de 20.000,00 MT; já o parqueamento de viaturas fora dos locais indicados pelas entidades competentes é sancionado com a multa de 2.000,00 MT.
Nos termos do artigo 78.°, do referido Regulamento, deverão ser apreendidos todos os meios e instrumentos utilizados na prática da infracção pelos agentes de fiscalização, o que, no caso em apreço, envolve as viaturas dos prevaricadores.
Exactamente para obrigar o infractor ao pagamento da multa, e com o propósito de garantir a realização de justiça no caso de esta não vir a ser paga, o legislador estabeleceu, como sanção acessória, à luz da alínea a) do n.º 1 do artigo 84.°, a “reversão a favor do Estado dos instrumentos utilizados na prática da infracção, quando não haja lugar ao pagamento da multa, ou cumprimento da sanção alternativa e/ou outras obrigações legais”. E o legislador foi mais longe quando pensou no destino a dar aos bens, nos seguintes termos: “as viaturas ou embarcações motoras revertidas para o Estado ao abrigo do número anterior serão necessariamente canalizadas para o reforço dos serviços de fiscalização da Direcção Provincial para a Coordenação da Acção Ambiental, Administração Marítima ou Conselho Municipal, consoante os casos”. (Cfr. Artigo 84.°/2 do Regulamento).
Para acautelar a situação dos estrangeiros, que, uma vez autuados, poderiam desaparecer sem deixar notícias, determinou-se que, “no caso de os infractores não possuírem residência em Moçambique todos os meios utilizados para a prática da infracção, designadamente as viaturas envolvidas, artes de caça ou pesca, entre outros, serão imediatamente apreendidos até ao pleno pagamento da multa” (Cfr. Artigo 84.°/3 do Regulamento).
Finalmente, perante a questão de saber quem tem competência para a fiscalização e, especialmente, para o levantamento dos autos, tendo presentes as dificuldades associadas à implementação das leis, previu-se um papel chave de três órgãos – o MICOA (através das direcções provinciais), o INAMAR (sob tutela do Ministério dos Transportes e Comunicações) e os Conselhos Municipais, nas áreas sobre sua jurisdição (Cfr. Artigo 74.° do Regulamento).
Para além destes, “poderão intervir no processo de fiscalização, para além das entidades referidas no artigo anterior, as Forças de Defesa e Segurança, os agents de segurança pública, as autoridades comunitárias, os funcionários dos Ministérios do Turismo, da Energia, da Agricultura, das Pescas, das Obras Públicas e Habitação, os fiscais ajuramentados, os operadores turísticos, com especial destaque para os nadadores – salvadores por estes contratados e os funcionários públicos, em geral”, os quais deverão efectuar a “participação de todas as infracções de que tomarem conhecimento, junto das entidades referidas no artigo anterior, para que estas procedam ao levantamento do respectivo auto de notícia, sem prejuízo da tomada de medidas que assegurem a detenção do presumível infractor” (Cfr. Artigo 74.°/2 e 3, respectivamente, do
Regulamento).
Temos que começar a pôr travão a tamanha pouca vergonha que acontece nas nossas praias, e mostrar que ainda pode haver esperança na construção de um País em que as leis não foram feitas unicamente para inglês ver. Daí que tais comportamentos constituem não apenas indício de profundo défice no domínio da educação e consciencialização, sendo a ignorância a palavra mais emblemática, mas também de manifesto desprezo pelas leis que vigoram no ordenamento jurídico moçambicano e vincado egoísmo no relacionamento com o ambiente.
É tempo de parar com esta brincadeira e começarmos todos a zelar pelo nosso património. Por isso, faço aqui um apelo a todas as entidades, bem como a todos os cidadãos interessados num desenvolvimento verdadeiramente sustentável, para que, juntos, trabalhemos na divulgação e implementação do Regulamento sobre a Prevenção da Poluição e Protecção do Ambiente Marinho e Costeiro.
(Carlos Serra/Justiça Ambiental, no Canal de Moçambique de 22/07/08, retirado com a devida vénia )

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