Monday 16 September 2013

Os perigos de um processo eleitoral viciado

 
“O que se observa é que em muitos países com um partido dominante – que é o caso de Moçambique – o campo de competição eleitoral é tão estruturalmente desnivelado que é problemático ...falar de eleições justas, na medida em que o partido dirigente, muitas vezes o conquistador da independência e fundador do Estado, nunca se encara como um partido político, mas, sim, como o próprio Estado e a expressão do interesse geral” – Adriano Nuvunga

Maputo (Canalmoz) – O académico e director do Centro de Integridade Pública (CIP), Adriano Nuvunga, fez ontem em Maputo uma apresentação que abordou a transparecia e a justiça nos processos eleitorais em Moçambique e a sua consequência para a legitimidade dos governos eleitos. Nuvunga demonstrou com base em factos combinados com teorias que em ambientes em que um partido domina os órgãos de administração eleitoral (NdR.: o caso do partido Frelimo para com a Comissão Nacional de Eleições), os governos daí resultantes não podem ser considerados legítimos e as eleições não podem ser consideradas justas. “…o campo de competição eleitoral está tão desnivelado a favor do partido dirigente que é problemático falar de eleições justas”, disse Nuvunga.

Devido à pertinência do assunto discutido pelo académico, o Canalmoz publica, na íntegra, a apresentação aqui:

“Enquadramento

Estas são notas para uma comunicação a ser feita no Fórum Consultivo 2013 do Programa AGIR, que se realiza no dia 11 de Setembro de 2013. O tema proposto é complexo por exprimir um conjunto de premissas que são, de alguma forma, normativas dentro do actual paradigma dominante, o liberal.
Na tentativa de fazer uma discussão mais substantiva e menos normativa, o texto discute a premissa subjacente ao tema dentro do conceito de governação visto através das lentes do Banco Mundial e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e vai, paulatinamente, dissecando sobre a ideia de eleições justas e transparentes e como o mesmo se liga aos demais aspectos apresentados no tema.
A escolha desta abordagem deve-se ao facto de as eleições serem parte do amplo conceito de governação e ser dentro deste que se compreende o seu alcance.

Governação

O Banco Mundial define a governação como tradições e instituições através das quais a autoridade é exercida num país para o bem comum . Nesta concepção, a governação inclui:
O processo através do qual os que estão em posição de autoridade são seleccionados, monitorados e substituídos;
A capacidade do governo de gerir efectivamente os seus recursos e implementar políticas adequadas; e
O respeito dos cidadãos e do Estado pelas instituições que governam as interacções económicas e sociais entre eles.
Mais amplamente, o PNUD conceptualiza a governação como o sistema de valores, políticas e instituições através das quais a sociedade gere os seus negócios económicos, políticos e sociais através da interacção dentro e entre o Estado, sociedade civil e o sector privado. É a forma através da qual uma sociedade se organiza para tomar e implementar decisões, alcançando compreensão, acordo e acção mútua.
Este sistema compreende os mecanismos e processos para os cidadãos e os grupos articularem os seus interesses, mediarem as suas diferenças e exercerem os seus direitos e obrigações legais. É o conjunto de regras, instituições e práticas que estabelecem limites e proporcionam incentivos aos indivíduos, organizações e empresas. A governação, incluindo as suas dimensões política, social e económica, opera a todos os níveis da empresa humana, seja na família, vila, município, nação, região ou globo (PNUD, 1997).
A ênfase nas duas definições é que as teorias da governação desafiam a compreensão tradicional do que constitui a força do Estado. Da perspectiva de governação, o Estado busca a sua força, mais nos recursos públicos e privados coordenados do que nas suas capacidades legais e constitucionais. O ‘poder sobre’ de tipo legal foi substituído por um ‘poder para’ mais de tipo contextual (Stone citado em Pierre & Peters, 2000). A implicação é que a transformação do sector público envolve ‘menos impulso no comando’ e ‘mais articulação e/ou dinamização.

Da legitimidade dos governos

Inerente a esta proposta está a questão da legitimidade do governo, uma vez que isso determina a sua habilidade de coordenar as várias redes que trabalham para a prossecução do bem comum. O pressuposto principal subjacente a esta posição é o de que os governos democraticamente eleitos possuem a legitimidade de tomarem decisões difíceis, porém necessárias, principalmente na arena económica.
As duas definições acima apresentadas sugerem que a legitimidade é visualizada em duas dimensões: legitimidade orientada pelos subsídios (inputs) e orientada pelos resultados (outputs). A legitimidade orientada pelos subsídios deriva do acordo daqueles a quem lhes é pedido o cumprimento das leis, enquanto a legitimidade orientada pelos resultados deriva da efectividade das regras em produzir resultados tangíveis. Por conseguinte, os argumentos orientados pelos inputs dizem respeito ao estabelecimento de procedimentos democráticos, aceites pela maioria, para a tomada de decisões colectivas vinculativas, enquanto os argumentos orientados pelos resultados referem a critério substantivo de buon governo, no sentido de que políticas efectivas podem reivindicar legitimidade se servirem ao bem comum (Scharpf, 1997, citado em Kjaer, 2004:12).
O argumento é que se a governação for largamente definida como o estabelecimento, aplicação e cumprimento das regras de jogo, tais regras necessitam de ser legitimadas para que possam ser estáveis. Sobre este assunto, Rueschemeyer et al. (1992) e Mainwaring (1992) são esclarecedores quando dizem que a única característica óbvia duma democracia (consolidada) é quando ‘…todos os actores assumem como dado adquirido que os processos democráticos determinam a renovação do governo’ (p. 532).
Usando a definição de Schumpeter (1965), a democracia liberal é tida como tal ou pode ser tida como consolidada quando as pessoas, partidos políticos e grupos perseguem os seus interesses de acordo com negociações e cooperação pacífica, competição com base nas regras dentro dum dispositivo institucional para chegar a decisões políticas, nas quais os indivíduos adquirem o poder de decidir, através de uma luta competitiva pelo voto popular.
O principal argumento que emerge da afirmação acima é que a confiança no processo, bem como no resultado de processos eleitorais é crucial para a consolidação democrática. Mainwaring (1992) defende que uma condição necessária para a sobrevivência das democracias é a aquiescência das regras do jogo político e a lealdade a essas regras, isto é, a aquiescência sobre o processo democrático em si, especialmente por elites políticas.
Leftwich (1997) argumenta que para a democracia se consolidar, deve haver legitimidade política dentro do regime. Mas, tal legitimidade é defendida pela medida em que o eleitorado – ou, mais realisticamente, os partidos políticos – consideram que o governo tem processualmente direito de estar no poder. Isso significa que, para os objectivos presentes, o governo pode ser tido como politicamente legítimo quando o resultado da eleição reflecte as preferências da votação de acordo com determinadas regras e quando os resultados não tenham sido fraudulentos. Para Barker (1990) a legitimidade existe quando há crença no direito dum governo para governar.
Em resumo, Leftwich (1997) diz que um regime democrático não pode sobreviver por muito tempo a menos que goze de uma forma de legitimidade, tanto através da aceitação pacífica como, mais comummente, através da aprovação passiva. Por conseguinte, a consolidação democrática com sucesso ocorre via legitimação e, neste contexto, legitimação deriva da (boa) governação eleitoral. Nesta conformidade, Przeworski (1988) vê a democratização como um processo de institucionalização da incerteza; de sujeitar todos os interesses à imprevisibilidade.

Desnivelamento do Campo de Competição Eleitoral

A incerteza resulta dos pressupostos subjacentes aos regimes democráticos que envolvem uma competição aberta para a conquista do poder, para que ninguém ou nenhum grupo esteja certo da vitória antes da conclusão do processo eleitoral. Quando um antigo partido-estado aceita a democracia, este abandona o controlo efectivo sobre os resultados do processo eleitoral. Este posiciona-se, então, numa situação com pelo menos duas dimensões, ambas compreensivamente ameaçadoras: por um lado, pode não ganhar as eleições e perder o poder e, por outro lado, as mudanças políticas introduzidas por um novo governo podem danificar os seus interesses. Neste contexto, a boa governação eleitoral é importante para a credibilidade das instituições e, em particular, para a transição e consolidação das novas democracias.
Elklit e Reynolds (2002) identificam a principal tarefa da governação eleitoral como sendo de providenciar certeza processual para assegurar a substancial incerteza subjacente às eleições democráticas. Schedler e Mazaffar (2002) exploram esta questão mais profundamente. Eles observam que as escolhas da governação eleitoral efectuadas por indivíduos e grupos poderosos são importantes. Estas escolhas estão relacionadas com uma série de questões, como a estrutura organizacional da instituição central encarregue pela gestão eleitoral; a sua independência política, as suas motivações internas e a sua transparência. Assim, a governação eleitoral é sobre as escolhas feitas em torno das instituições eleitorais que têm um impacto sobre os níveis gerais de prestação de contas.
Pastor (1999) concorda com esta análise. Ele aponta para o crescente reconhecimento de que o quadro organizacional da gestão e administração eleitoral – como a competência e a imparcialidade das comissões eleitorais ‘independentes’ – é importante para a qualidade da democracia eleitoral. Ele nota que enquanto os elementos que tornam as eleições livres e justas são ilusoriamente simples, os governos dispostos a manipular os resultados geralmente estabelecem as suas fundações para o fazer muito antes dos períodos eleitorais.
Enquanto os critérios de avaliação de eleições justas e transparentes dizem respeito ao processo eleitoral, os aspectos fundamentais que distorcem a competitividade eleitoral acontecem bastante antes do processo eleitoral iniciar. Em inglês se usa o termo playing field que em português seria o equivalente a ‘campo de competição’. O que se observa é que em muitos países com um partido dominante – que é o caso de Moçambique – o campo de competição eleitoral é tão estruturalmente desnivelado que é problemático falar de eleições justas, na medida em que o partido dirigente, muitas vezes o conquistador da independência e fundador do Estado, nunca se encara como um partido político mas, sim, como o próprio Estado e a expressão do interesse geral.
Nesta conformidade, o seu interesse é o de saborear os frutos da legitimidade eleitoral sem se sujeitar à incerteza eleitoral subjacente ao jogo democrático-eleitoral. O papel do próprio Estado é, de alguma forma, desvirtuado e orientado para obliterar os espaços de força da oposição e, desta maneira, enfraquecer e derrotar a oposição antes de iniciar o processo eleitoral. É que muitos partidos dominantes tiveram sucesso em se fazer passar pelo próprio Estado, onde muitos funcionários encaram o seu papel como sendo de defender o partido dirigente e não de servir o interesse público, no sentido de bem comum que, por conceito, se situa acima do interesse dos vários partidos políticos que agitam o sistema político. Por assim dizer, e num posicionamento Aristotélico, muitos funcionários do Estado, incluindo em Moçambique, não qualificam o conceito de funcionários públicos, porque apesar de pagos pelos impostos públicos compreendem o seu papel, como sendo o de defender os interesses dum partido e não do bem comum.

A terminar

Voltando para os três aspectos do conceito de governação do Banco Mundial, fica claro que, em contextos de partidos dominantes, como Moçambique, o primeiro aspecto, o que tem que ver com o processo através do qual os que estão em posição de autoridade são seleccionados, monitorados e substituídos, é seriamente problemático.
Primeiro, em torno da própria governação eleitoral que é marcada por questionamentos em torno da legalidade e legitimidade de parte dos órgãos de administração eleitoral e das regras que pretendem implementar. A exclusão de partidos políticos em 2009 e a retirada de partidos políticos do processo eleitoral em 2013 constrangem a legitimidade dos processos eleitorais, compreendendo que mais do que os cidadãos e os observadores eleitorais nacionais internacionais, são os partidos políticos e demais actores políticos que devem concordar com a legalidade e legitimidade dos processos eleitorais.
Segundo, conforme referido acima, o campo de competição eleitoral está tão desnivelado a favor do partido dirigente que é problemático falar de eleições justas. Em todo o mundo, o partido dirigente usa o poder público para tirar vantagens em relação aos seus adversários, mas em contextos de partidos dominantes como Moçambique isso é tão estrutural que distorce o alcance de competição eleitoral. Nalguns contextos, a retirada de partidos políticos da oposição de processos eleitorais e, em caso de participar, de não legitimar os resultados é hipoteticamente movido pela impossibilidade institucional de alterar o status quo que muitas vezes, como em Moçambique, assenta numa vitória eleitoral frágil, por um lado, por ser sustentada por apenas pouco menos de um terço de eleitores recenseados e, por outro, pelo facto de a abstenção ser perto do quase o dobro dos votos do partido dominante.
Daqui decorre a legitimidade ou não dum governo para assegurar as duas últimas partes da definição de governação apresentada pelo Banco Mundial, nomeadamente: a (i) capacidade do governo de gerir efectivamente os seus recursos e implementar políticas adequadas; e (ii) o respeito dos cidadãos e do Estado pelas instituições que governam as interacções económicas e sociais entre eles. Para estas duas dimensões do conceito de governação a questão fundamental que se coloca é: até que ponto há, na sociedade e, principalmente, entre os actores políticos, a crença no direito dum governo para governar. Este direito decorre de sucesso eleitoral obtido num processo conduzido num quadro de boa governação eleitoral.
A legitimidade política decorrente da conquista do poder político num quadro de boa governação eleitoral assegura a confiança e autoridade do poder público para, num quadro de aceitação pública, articular, coordenar e liderar os vários segmentos da sociedade política, económica e social para a realização do bem comum. Na verdade, onde há legitimidade decorrente de conquista do poder político num quadro de boa governação eleitoral não há lugar para a ameaça à paz, à estabilidade política e social e, necessariamente, haverá uma boa governação (que em harmonia com a definição do PNUD, acima apresentada, se manifestará, pelo menos, no respeito pelo bem público e necessidade de sua destrinça com o bem privado), porque o governo do dia será temente de perca de poder nas eleições seguintes.
Quando este temor não existe, a função política das eleições é esvaziada e permite um insidioso processo de politização do Estado e particularmente de confusão entre Estado e partido; funcionário público e partidário disfarçado de público. Em contextos de partido dominante, como Moçambique, a ideia de eleições transparentes e justas pode, na verdade, significar pouco para uma governação democrática se o campo de competição eleitoral já tiver sido estruturalmente desnivelado antes do processo eleitoral iniciar. O principal dos problemas decorrentes deste quadro é a confusão entre o interesse público e o interesse político do partido dirigente que se operacionaliza através dum Estado que tende a não ter uma existência independente do partido dominante. (Redacção)

*Título da responsabilidade do Canalmoz. O título original do artigo é: “Eleições Justas e Transparentes – um Passo Fundamental para Assegurar a Gestão Responsável e Transparente do Interesse Público, Preservação da Paz e Estabilidade Nacional”


Canalmoz
Photo: Os perigos de um processo eleitoral viciado* (#canalmoz)

“O que se observa é que em muitos países com um partido dominante – que é o caso de Moçambique – o campo de competição eleitoral é tão estruturalmente desnivelado que é problemático falar de eleições justas, na medida em que o partido dirigente, muitas vezes o conquistador da independência e fundador do Estado, nunca se encara como um partido político, mas, sim, como o próprio Estado e a expressão do interesse geral” – Adriano Nuvunga

Maputo (Canalmoz) – O académico e director do Centro de Integridade Pública (CIP), Adriano Nuvunga, fez ontem em Maputo uma apresentação que abordou a transparecia e a justiça nos processos eleitorais em Moçambique e a sua consequência para a legitimidade dos governos eleitos. Nuvunga demonstrou com base em factos combinados com teorias que em ambientes em que um partido domina os órgãos de administração eleitoral (NdR.: o caso do partido Frelimo para com a Comissão Nacional de Eleições), os governos daí resultantes não podem ser considerados legítimos e as eleições não podem ser consideradas justas. “…o campo de competição eleitoral está tão desnivelado a favor do partido dirigente que é problemático falar de eleições justas”, disse Nuvunga.

Devido à pertinência do assunto discutido pelo académico, o Canalmoz publica, na íntegra, a apresentação aqui:

“Enquadramento 

Estas são notas para uma comunicação a ser feita no Fórum Consultivo 2013 do Programa AGIR, que se realiza no dia 11 de Setembro de 2013. O tema proposto é complexo por exprimir um conjunto de premissas que são, de alguma forma, normativas dentro do actual paradigma dominante, o liberal. 
Na tentativa de fazer uma discussão mais substantiva e menos normativa, o texto discute a premissa subjacente ao tema dentro do conceito de governação visto através das lentes do Banco Mundial e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e vai, paulatinamente, dissecando sobre a ideia de eleições justas e transparentes e como o mesmo se liga aos demais aspectos apresentados no tema. 
A escolha desta abordagem deve-se ao facto de as eleições serem parte do amplo conceito de governação e ser dentro deste que se compreende o seu alcance. 

Governação 

O Banco Mundial define a governação como tradições e instituições através das quais a autoridade é exercida num país para o bem comum . Nesta concepção, a governação inclui: 
O processo através do qual os que estão em posição de autoridade são seleccionados, monitorados e substituídos;
A capacidade do governo de gerir efectivamente os seus recursos e implementar políticas adequadas; e 
O respeito dos cidadãos e do Estado pelas instituições que governam as interacções económicas e sociais entre eles. 
 
Mais amplamente, o PNUD conceptualiza a governação como o sistema de valores, políticas e instituições através das quais a sociedade gere os seus negócios económicos, políticos e sociais através da interacção dentro e entre o Estado, sociedade civil e o sector privado. É a forma através da qual uma sociedade se organiza para tomar e implementar decisões, alcançando compreensão, acordo e acção mútua. 

Este sistema compreende os mecanismos e processos para os cidadãos e os grupos articularem os seus interesses, mediarem as suas diferenças e exercerem os seus direitos e obrigações legais. É o conjunto de regras, instituições e práticas que estabelecem limites e proporcionam incentivos aos indivíduos, organizações e empresas. A governação, incluindo as suas dimensões política, social e económica, opera a todos os níveis da empresa humana, seja na família, vila, município, nação, região ou globo (PNUD, 1997). 
A ênfase nas duas definições é que as teorias da governação desafiam a compreensão tradicional do que constitui a força do Estado. Da perspectiva de governação, o Estado busca a sua força, mais nos recursos públicos e privados coordenados do que nas suas capacidades legais e constitucionais. O ‘poder sobre’ de tipo legal foi substituído por um ‘poder para’ mais de tipo contextual (Stone citado em Pierre & Peters, 2000). A implicação é que a transformação do sector público envolve ‘menos impulso no comando’ e ‘mais articulação e/ou dinamização. 

Da legitimidade dos governos 

Inerente a esta proposta está a questão da legitimidade do governo, uma vez que isso determina a sua habilidade de coordenar as várias redes que trabalham para a prossecução do bem comum. O pressuposto principal subjacente a esta posição é o de que os governos democraticamente eleitos possuem a legitimidade de tomarem decisões difíceis, porém necessárias, principalmente na arena económica.
As duas definições acima apresentadas sugerem que a legitimidade é visualizada em duas dimensões: legitimidade orientada pelos subsídios (inputs) e orientada pelos resultados (outputs). A legitimidade orientada pelos subsídios deriva do acordo daqueles a quem lhes é pedido o cumprimento das leis, enquanto a legitimidade orientada pelos resultados deriva da efectividade das regras em produzir resultados tangíveis. Por conseguinte, os argumentos orientados pelos inputs dizem respeito ao estabelecimento de procedimentos democráticos, aceites pela maioria, para a tomada de decisões colectivas vinculativas, enquanto os argumentos orientados pelos resultados referem a critério substantivo de buon governo, no sentido de que políticas efectivas podem reivindicar legitimidade se servirem ao bem comum (Scharpf, 1997, citado em Kjaer, 2004:12). 
O argumento é que se a governação for largamente definida como o estabelecimento, aplicação e cumprimento das regras de jogo, tais regras necessitam de ser legitimadas para que possam ser estáveis. Sobre este assunto, Rueschemeyer et al. (1992) e Mainwaring (1992) são esclarecedores quando dizem que a única característica óbvia duma democracia (consolidada) é quando ‘…todos os actores assumem como dado adquirido que os processos democráticos determinam a renovação do governo’ (p. 532). 
Usando a definição de Schumpeter (1965), a democracia liberal é tida como tal ou pode ser tida como consolidada quando as pessoas, partidos políticos e grupos perseguem os seus interesses de acordo com negociações e cooperação pacífica, competição com base nas regras dentro dum dispositivo institucional para chegar a decisões políticas, nas quais os indivíduos adquirem o poder de decidir, através de uma luta competitiva pelo voto popular. 
O principal argumento que emerge da afirmação acima é que a confiança no processo, bem como no resultado de processos eleitorais é crucial para a consolidação democrática. Mainwaring (1992) defende que uma condição necessária para a sobrevivência das democracias é a aquiescência das regras do jogo político e a lealdade a essas regras, isto é, a aquiescência sobre o processo democrático em si, especialmente por elites políticas. 
Leftwich (1997) argumenta que para a democracia se consolidar, deve haver legitimidade política dentro do regime. Mas, tal legitimidade é defendida pela medida em que o eleitorado – ou, mais realisticamente, os partidos políticos – consideram que o governo tem processualmente direito de estar no poder. Isso significa que, para os objectivos presentes, o governo pode ser tido como politicamente legítimo quando o resultado da eleição reflecte as preferências da votação de acordo com determinadas regras e quando os resultados não tenham sido fraudulentos. Para Barker (1990) a legitimidade existe quando há crença no direito dum governo para governar. 
Em resumo, Leftwich (1997) diz que um regime democrático não pode sobreviver por muito tempo a menos que goze de uma forma de legitimidade, tanto através da aceitação pacífica como, mais comummente, através da aprovação passiva. Por conseguinte, a consolidação democrática com sucesso ocorre via legitimação e, neste contexto, legitimação deriva da (boa) governação eleitoral. Nesta conformidade, Przeworski (1988) vê a democratização como um processo de institucionalização da incerteza; de sujeitar todos os interesses à imprevisibilidade. 

Desnivelamento do Campo de Competição Eleitoral 

A incerteza resulta dos pressupostos subjacentes aos regimes democráticos que envolvem uma competição aberta para a conquista do poder, para que ninguém ou nenhum grupo esteja certo da vitória antes da conclusão do processo eleitoral. Quando um antigo partido-estado aceita a democracia, este abandona o controlo efectivo sobre os resultados do processo eleitoral. Este posiciona-se, então, numa situação com pelo menos duas dimensões, ambas compreensivamente ameaçadoras: por um lado, pode não ganhar as eleições e perder o poder e, por outro lado, as mudanças políticas introduzidas por um novo governo podem danificar os seus interesses. Neste contexto, a boa governação eleitoral é importante para a credibilidade das instituições e, em particular, para a transição e consolidação das novas democracias. 
Elklit e Reynolds (2002) identificam a principal tarefa da governação eleitoral como sendo de providenciar certeza processual para assegurar a substancial incerteza subjacente às eleições democráticas. Schedler e Mazaffar (2002) exploram esta questão mais profundamente. Eles observam que as escolhas da governação eleitoral efectuadas por indivíduos e grupos poderosos são importantes. Estas escolhas estão relacionadas com uma série de questões, como a estrutura organizacional da instituição central encarregue pela gestão eleitoral; a sua independência política, as suas motivações internas e a sua transparência. Assim, a governação eleitoral é sobre as escolhas feitas em torno das instituições eleitorais que têm um impacto sobre os níveis gerais de prestação de contas. 
Pastor (1999) concorda com esta análise. Ele aponta para o crescente reconhecimento de que o quadro organizacional da gestão e administração eleitoral – como a competência e a imparcialidade das comissões eleitorais ‘independentes’ – é importante para a qualidade da democracia eleitoral. Ele nota que enquanto os elementos que tornam as eleições livres e justas são ilusoriamente simples, os governos dispostos a manipular os resultados geralmente estabelecem as suas fundações para o fazer muito antes dos períodos eleitorais. 
Enquanto os critérios de avaliação de eleições justas e transparentes dizem respeito ao processo eleitoral, os aspectos fundamentais que distorcem a competitividade eleitoral acontecem bastante antes do processo eleitoral iniciar. Em inglês se usa o termo playing field que em português seria o equivalente a ‘campo de competição’. O que se observa é que em muitos países com um partido dominante – que é o caso de Moçambique – o campo de competição eleitoral é tão estruturalmente desnivelado que é problemático falar de eleições justas, na medida em que o partido dirigente, muitas vezes o conquistador da independência e fundador do Estado, nunca se encara como um partido político mas, sim, como o próprio Estado e a expressão do interesse geral. 
Nesta conformidade, o seu interesse é o de saborear os frutos da legitimidade eleitoral sem se sujeitar à incerteza eleitoral subjacente ao jogo democrático-eleitoral. O papel do próprio Estado é, de alguma forma, desvirtuado e orientado para obliterar os espaços de força da oposição e, desta maneira, enfraquecer e derrotar a oposição antes de iniciar o processo eleitoral. É que muitos partidos dominantes tiveram sucesso em se fazer passar pelo próprio Estado, onde muitos funcionários encaram o seu papel como sendo de defender o partido dirigente e não de servir o interesse público, no sentido de bem comum que, por conceito, se situa acima do interesse dos vários partidos políticos que agitam o sistema político. Por assim dizer, e num posicionamento Aristotélico, muitos funcionários do Estado, incluindo em Moçambique, não qualificam o conceito de funcionários públicos, porque apesar de pagos pelos impostos públicos compreendem o seu papel, como sendo o de defender os interesses dum partido e não do bem comum. 

A terminar 

Voltando para os três aspectos do conceito de governação do Banco Mundial, fica claro que, em contextos de partidos dominantes, como Moçambique, o primeiro aspecto, o que tem que ver com o processo através do qual os que estão em posição de autoridade são seleccionados, monitorados e substituídos, é seriamente problemático. 
Primeiro, em torno da própria governação eleitoral que é marcada por questionamentos em torno da legalidade e legitimidade de parte dos órgãos de administração eleitoral e das regras que pretendem implementar. A exclusão de partidos políticos em 2009 e a retirada de partidos políticos do processo eleitoral em 2013 constrangem a legitimidade dos processos eleitorais, compreendendo que mais do que os cidadãos e os observadores eleitorais nacionais internacionais, são os partidos políticos e demais actores políticos que devem concordar com a legalidade e legitimidade dos processos eleitorais. 
Segundo, conforme referido acima, o campo de competição eleitoral está tão desnivelado a favor do partido dirigente que é problemático falar de eleições justas. Em todo o mundo, o partido dirigente usa o poder público para tirar vantagens em relação aos seus adversários, mas em contextos de partidos dominantes como Moçambique isso é tão estrutural que distorce o alcance de competição eleitoral. Nalguns contextos, a retirada de partidos políticos da oposição de processos eleitorais e, em caso de participar, de não legitimar os resultados é hipoteticamente movido pela impossibilidade institucional de alterar o status quo que muitas vezes, como em Moçambique, assenta numa vitória eleitoral frágil, por um lado, por ser sustentada por apenas pouco menos de um terço de eleitores recenseados e, por outro, pelo facto de a abstenção ser perto do quase o dobro dos votos do partido dominante.
Daqui decorre a legitimidade ou não dum governo para assegurar as duas últimas partes da definição de governação apresentada pelo Banco Mundial, nomeadamente: a (i) capacidade do governo de gerir efectivamente os seus recursos e implementar políticas adequadas; e (ii) o respeito dos cidadãos e do Estado pelas instituições que governam as interacções económicas e sociais entre eles. Para estas duas dimensões do conceito de governação a questão fundamental que se coloca é: até que ponto há, na sociedade e, principalmente, entre os actores políticos, a crença no direito dum governo para governar. Este direito decorre de sucesso eleitoral obtido num processo conduzido num quadro de boa governação eleitoral. 
A legitimidade política decorrente da conquista do poder político num quadro de boa governação eleitoral assegura a confiança e autoridade do poder público para, num quadro de aceitação pública, articular, coordenar e liderar os vários segmentos da sociedade política, económica e social para a realização do bem comum. Na verdade, onde há legitimidade decorrente de conquista do poder político num quadro de boa governação eleitoral não há lugar para a ameaça à paz, à estabilidade política e social e, necessariamente, haverá uma boa governação (que em harmonia com a definição do PNUD, acima apresentada, se manifestará, pelo menos, no respeito pelo bem público e necessidade de sua destrinça com o bem privado), porque o governo do dia será temente de perca de poder nas eleições seguintes. 
Quando este temor não existe, a função política das eleições é esvaziada e permite um insidioso processo de politização do Estado e particularmente de confusão entre Estado e partido; funcionário público e partidário disfarçado de público. Em contextos de partido dominante, como Moçambique, a ideia de eleições transparentes e justas pode, na verdade, significar pouco para uma governação democrática se o campo de competição eleitoral já tiver sido estruturalmente desnivelado antes do processo eleitoral iniciar. O principal dos problemas decorrentes deste quadro é a confusão entre o interesse público e o interesse político do partido dirigente que se operacionaliza através dum Estado que tende a não ter uma existência independente do partido dominante. (Redacção)

*Título da responsabilidade do Canalmoz. O título original do artigo é: “Eleições Justas e Transparentes – um Passo Fundamental para Assegurar a Gestão Responsável e Transparente do Interesse Público, Preservação da Paz e Estabilidade Nacional”

 

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