Wednesday, 3 August 2011

Sobre a reforma no pacote anti-corrupção

Estas reformas podem não vir a resolver integralmente os problemas que se levantam na relação, por vezes conflitante, entre os governantes e os governados, mas vão, com certeza, criar um clima para uma maior confiança pública sobre quem está em posições cimeiras no sistema de governação.
O Governo anunciou, esta semana, encorajadoras reformas no chamado pacote anti-corrupção. De entre outras relevantes mudanças, finalmente, o enriquecimento ilícito, o conflito de interesses e o tráfico de influências poderão passar a figurar como novos tipos legais de crime de corrupção, e o Gabinete Central de Combate à Corrupção poderá ver as suas competências alargadas à realização da instrução preparatória dos processos criminais e à acusação directa dos processos por si averiguados ou investigados.
É verdade que estes instrumentos legais carecem ainda da aprovação da Assembleia da República, mas não há dúvidas que ao decidir produzir propostas de lei concretas sobre estes temas, o Governo mostra, finalmente, o cometimento político que faltava na protecção da dignidade e prestígio das instituições da administração do Estado.
A lei 6/2004, de 17 de Junho, vulgo lei de combate à corrupção, só tem sete anos de vida, mas quase todos os especialistas da área lhe reconheceram defeitos de nascença. Fora feita para acomodar exigências dos doadores, não para combater, exemplarmente, actos de corrupção. Que o digam os magistrados do Ministério Público, que muitas vezes se vêem à nora, quando confrontados com actos que são manifestamente corruptos, mas que até agora a lei não os considera como tal.
Como reconheceu o próprio procurador-geral da República, no seu último informe na Assembleia da República, a legislação anti-corrupção em vigor está muito longe de responder às expectativas do povo na punição exemplar dos corruptos. A sua punição é com uma simples pena correccional até dois anos e não tem em conta o montante da corrupção. Significa isso que o funcionário corrupto, que cobrou 50 meticais para apressar um documento, é colocado no mesmo patamar do funcionário que recebeu um milhão de dólares para facilitar a passagem de uma mercadoria. O crime compensa, diz-se na gíria popular.
Mais: à luz da actual legislação, a corrupção é exclusiva das instituições do Estado, não sendo praticável directamente nem no sector privado nem no desporto.
Ao propor a introdução de reformas na lei 6/2004, incorporando o enriquecimento ilícito, o tráfico de influência, a fraude, a responsabilidade criminal de auditores privados e públicos, a corrupção passiva, a corrupção de juízes, agentes do Ministério público e da PIC, entre outros, o Governo coloca, finalmente, a legislação à altura do discurso; livra-se da percepção pública de que não tem interesse efectivo de promover leis para combater a corrupção e endossa a pressão para a Justiça, agora sim, sem muito por onde se justificar para agir e mostrar resultados relevantes.
Como diria alguém, com a aprovação destas leis, os governantes colocam-se, agora, eles próprios também à mercê de serem escrutinados. Primeiro, porque a nova proposta alarga, no caso da declaração de bens, o âmbito da sua aplicação a um vasto número de governantes, funcionários e agentes do Estado, todos sob as mesmas regras. No caso do conflito de interesses, definem-se com clareza os deveres éticos do servidor público na sua relação com o Estado e com o cidadão.
Estas reformas podem não vir a resolver integralmente os problemas que se levantam na relação, por vezes conflitante, entre os governantes e os governados, mas vão, com certeza, criar um clima para uma maior confiança pública sobre quem está em posições cimeiras no sistema de governação e fortalecer o processo democrático. Esta reforma não resolverá o problema da corrupção no país. Não tenhamos ilusões. Mas ajudará muito a lá chegar, sobretudo se forem encarados os outros desafios que se colocam para complementar esta acção reformadora. Por exemplo, as reformas na Polícia de Investigação Criminal.
Uma investigação competente é, inequivocamente, meio caminho para dissuadir os criminosos. O conflito do “prende e solta” que muitas vezes assistimos entre juízes, cidadãos, polícias e até governantes (o governador da Zambézia, Itaí Meque, mostrou-se há dias desconsoladamente desgastado com os juízes), gerando desconfianças entre o cidadão e as instituições, é resultado, em grande medida, da incapacidade técnica da Polícia de Investigação Criminal de fazer a produção de prova.
Por isso, urge que se aproveite esta onda reformista para se repensar também na PIC, porque uma polícia incapaz de localizar um ladrão de um televisor, porque não tem viatura para se mover com rapidez nem comunicação, muito menos laboratórios especializados, não é, definitivamente, capaz de produzir a prova em casos complexos, como são normalmente os de tráfico de influência.
Reformar a Polícia de Investigação Criminal é ainda premente agora que, à luz da lei 24/2007, de 20 de Agosto, os tribunais judiciais distritais passaram a ter competências também para julgar processos de querela com moldura penal abstracta até 8 e 12 anos. Pela sua complexidade, estes processos exigem maior investigação, um processo mais sinuoso de recolha de provas por parte da PIC. Ora, se esta polícia tem a (in)capacidade que mostra, ao nível central, imagine-se aquela que (não) terá nos distritos, ainda mais num país com a extensão do nosso. Eis, pois, um exemplo concreto onde a reforma legislativa, sozinha, não chegou para resolver um problema real.
Para que esta onda reformista se complete, depois deste pacote anti-corrupção, pede-se que se avance rapidamente para a legislação sobre desvios de fundos ou bens do Estado. Os recentes casos julgados despertaram-nos para uma realidade que urge alterar: a lei 1/79 não se mostra adequada para proteger o património do Estado e punir severamente os que dele se apropriam.
Saúde-se, contudo, o Governo, pelo passo dado agora.

Jeremias Langa, O País

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