Saturday 31 October 2015

Versão Recente de um Filme Antigo


 
O pano de fundo, o enredo e o desfecho são basicamente os mesmos. Os protagonistas também, embora em cada uma das três versões já conhecidas surja sempre um actor novo a desempenhar o papel de mau. O autor do guião vem da mesma escola, a realização e a produção levam selo Made in Mozambique.
A primeira realização é de 1974. Tudo começa em Dar es Salaam, onde se discute o futuro de Moçambique e a sorte dos moçambicanos. Em reunião à porta fechada, as partes acordam em cooperar na detecção e neutralização de todos os agentes reaccionários. Há os que conseguem escapar. O Departamento de Segurança da Frelimo recorre aos préstimos de Nqumayo, patrício do dirigente máximo. Une-os a expansão e as razias nguni. Ele é o homem forte da segurança malawiana, a eliminação por “acidente de viação” a especialidade dos serviços que dirige. Os outros, menos sofisticados: tiro na nuca, ponta de baioneta que entra por um ouvido e sai por outro ou a morte por asfixia; poesia de combate a ornamentar. (Rui Knopfli reduziria a obra de poético combatente a singular e nauseabunda palavra.) Nqumayo é solícito: Dá instruções à missão diplomática do Malawi em Nairobi para informar Uria Simango de que está para breve importante reunião de alto nível. Banda o anfitrião, Mamã Cecilia Kadzamira a official hostess. Discutir-se-á Moçambique, sendo imprescindível a presença do Reverendo. O governo malawiano predispõe-se a custear as despesas de deslocação de Simango. Ignorando conselhos e avisos, Simango embarca para o Malawi em Novembro. À chegada ao Aeroporto de Chileka é preso e depois entregue à Frelimo na fronteira de Milange. O Camarada Comandante Honwana é quem o recebe, de braços abertos – o beijo, das poucas coisas que diferencia a organização siciliana dos métodos da Frente.
A segunda versão do filme é de Outubro de 1975. O novo actor também é clérigo e igualmente refugiado em Nairobi: Mateus Pinho Gwengere. De novo os intermediários – não são malawianos, mas tanzanianos. Trabalham para a TIS, a segurança do Mwalimu. Agentes dessa polícia política agregados à representação tanzaniana junto da sede da East African Community em Nairobi apresentam-se a Gwengere como oponentes do Mwalimu. Um deles, J. H. K. Matola, é conhecido do Padre desde os tempos de Dar es Salaam. Propõem um encontro com exilados tanzanianos e moçambicanos para se concertarem estratégias comuns. Partem de Nairobi, num carro do governo tanzaniano. Cinco ao todo, Gwengere estrategicamente sentado atrás, entre dois capangas do TIS. Em vez de rumar para Mombaça conforme o planeado, o Ford Cortina de cor verde, matrícula KMK596, segue em direcção a Namanga, posto fronteiriço entre o Quénia e a Tanzânia. Passam Gwengere para o outro lado da fronteira, que depois é entregue à Segurança da Frelimo. Perde-se-lhe o rasto a partir daí.
Quarenta anos depois, a terceira versão. O mesmo intróito: a reunião, os intermediários – agora orgulhosamente nacionais e com a bênção do Senhor – , a viagem da vítima por estrada até ao destino final, a perfídia e o ardil. Ao raiar da manhã do dia seguinte, o guião é de Sexta-Feira 13: no terreno, blindados Made in ex-apartheid R.S.A., Toyotas de caixa aberta al-Qaeda style, RPG-7 a tiracolo, os eternos brutamontes em evidência, dedos prontos a «gatilhar a cena». Dispensam-se mandados de busca e captura. Duma não tuge nem muge – a palavra está reservada a Dina que é quem explica, à maneira: é para evitar eventual aproveitamento maléfico. Por motivos de força maior, o filme termina assim, inesperadamente: ergue-se uma barreira de protecção entre o alvo e os atiradores – são os intermediários que ainda não deixaram a urbe e a eles se juntam mais dois clérigos e igual número de presidentes de município. Os da UE emitem aviso, voltando a incomodar os G40 de aquém e além-mar. Entra depois a pró-consulesa. Com meiga e suave voz desbobina a ladainha decorada em casa, a mesma antes escutada de Canhenze e Dina: todos preocupadíssimos com a segurança e o bem-estar do alvo a abater. De rompante, qual búfalo em xitolo de porcelana chinesa, entra o chefe da rápida e pontual unidade. O que tem para dizer estala o verniz da porcelana antes de fazê-la em cacos, encavacando a mandatária provincial e embasbacando os intermediários e os demais: o aparato lá fora é para “recuperar as três armas pesadas roubadas às FDS no incidente do dia 25 de Setembro em Gondola”, como reporta insuspeito pasquim dominical.







Joao Cabrita, Facebook

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