Thursday 8 December 2016

Como Fidel Castro se tornou herói em África


 


O contraste entre as imagens de cidadãos cubanos com um semblante carregado e prestando homenagem ao único líder que conheceram durante quase cinquenta anos, e outra de indivíduos empunhando bandeiras cubanas, em caravanas celebrativas nas artérias da cidade norte americana de Miami, na Flórida, é o testemunho de um Fidel Castro, por um lado, reverenciado pelos seus admiradores, mas, por outro, visceralmente odiado pelos seus opositores.
São duas histórias reais, que permanecerão sobre um homem que marcou profundamente o panorama político mundial da última metade do século XX.
De um lado a história de um revolucionário que lutou para libertar o seu país e reafirmar a independência do seu povo, confrontando, quando tal se tornou necessário, o elefante vizinho que para Cuba sempre foram os Estados Unidos da América.
No outro extremo, um ditador que durante 47 anos se impôs no poder com um punho de ferro, combatendo e reprimindo todas as forças que lhe eram opostas.
Durante todos os anos em que Fidel Castro esteve no poder, nunca se sujeitou ao voto popular. E quando em 2006 se sentiu ncapacitado de continuar a dirigir o país, escolheu o seu irmão Raul, para o substituir. Nenhuma outra força política, para além do Partido Comunista, está autorizada a contestar o poder em Cuba. As ilberdades individuais só são permitidas se forem para exaltar os feitos da revolução e dos seus líderes.
Opositores da revolução de 1959 foram extinguidos por pelotões de fuzilamento ou viram-se obrigados a partir para o exílio, onde alguns continuam vivos até aos dias de hoje. Centenas de outros, incluindo jovens mais ambiciosos e inconformados com a repressão interna, seguiram o mesmo destino. Foram alguns destes, ou seus descendentes, a maioria deles agrupados em Miami, que comemoraram a morte de Fidel Castro como um importante marco na história do seu país, encarando-a mesmo como o início da possibilidade do país vir a iniciar a sua longa caminhada pela democracia.
É difícil reunir consenso sobre o percurso político de Fidel Castro. Mas mesmo nessa situação, é impossível negar o seu estatuto como uma figura que influenciou muito o mundo político em que vivemos.
Em contraste marcante com o tamanho do seu país, uma pequena ilha imersa no Mar das Caraíbas, Fidel Castro distinguiu-se pelo seu inconformismo perante a versão ocidental de democracia e direitos humanos, colocando-se, no seu entendimento, do lado dos povos oprimidos que lutavam pela sua independência.
Apesar dos magros recursos de que o país dispõe, em grande parte resultado do bloqueio económico imposto há décadas pelos Estados Unidos, os cubanos gozam de uma qualidade de vida que deve constituir inveja para a maioria dos cidadãos de muitos países africanos e do Terceiro Mundo agraciados com imensos recursos naturais. A educação e a saúde são disponibilizadas gratuitamente pelo Estado, e pelo menos 85 por cento dos cubanos tem habitação própria.
Fora de Cuba, foi em África onde o espírito de solidariedade internacional de Fidel Castro se fez sentir com maior intensidade; oferecendo oportunidades de ensino e de formação a milhares de jovens africanos em escolas cubanas, e enviando equipas médicas para ajudar a colmatar carências básicas nos serviços nacionais de saúde do continente.
Em Angola, a intervenção cubana na guerra civil ajudou a impor o MPLA como a força que viria a tomar o poder depois da independência, em 1975. Para além do MPLA, a luta pela independência de Angola teve como protagonistas a FNLA, dirigida por Holden Roberto, e a Unita, liderada por Jonas Savimbi.
Depois de tentativas fracassadas para que os três movimentos partilhassem o poder como parte de um processo de transição para a independência, Cuba interveio com uma força militar de mais de três mil homens, apetrechados com equipamento bélico soviético, contribuindo assim para obliterar os dois outros movimentos nacionalistas. A FNLA desapareceu completamente, mas a Unita viria depois a aliar-se ao regime do apartheid na África do Sul,
que ocupava ilegalmente a Namíbia, e como parte da matriz da guerra fria, com o apoio americano continuaria com uma guerra que só terminou com a morte de Savimbi em 2002.
Foi em parte resultado da intervenção cubana em Angola que o regime do apartheid na África do Sul tornou-se conformado com a inevitabilidade da independência da Namíbia, e começou a encarar com algum realismo a necessidade de pôr fim ao sistema de segregação racial na própria África do Sul.
Cuba pode não ser o modelo de democracia e de prosperidade económica que muitos países africanos e do Terceiro Mundo pretendem seguir, mas a imagem de um Fidel Castro preocupado e empenhado com a sua liberdade e desenvolvimento é o factor que torna o líder da revolução cubana num herói também para os povos destes países. E é por isso que choram a sua morte.


 
Editorial, Savana 02-12-2016

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