Sunday 10 April 2016

Pilhagem de África: o que ficou da descolonização



Metódico e sem escrúpulos. O processo de pilhagem do continente africano é uma história de horror que só agora começa a ser contada. Das cliques governamentais aos chefes tribais, passando por intermediários elegantemente vestidos que residem nas grandes capitais da finança, todos querem uma fatia do saque, e todos a obtêm. Todos, menos os desgraçados do costume.

Os norte-americanos despertaram recentemente para a catástrofe humanitária angolana, o que não deixa de ser irónico tendo em conta que foram dos principais causadores, e beneficiários, da mesma. Angola esteve em guerra de forma quase ininterrupta desde 1961, quando a URSS e os EUA incentivaram e financiaram os primeiros movimentos terroristas na então próspera Província portuguesa. Muitos desses “combatentes da liberdade”, muitos sem sequer qualquer ligação prévia a Angola, são os antepassados do actual regime que oprime o país.
Angola, no entanto, não é um caso isolado. Por toda a África são visíveis os resultados desastrosos das descolonizações dos anos 60 e 70 do século XX, feitas atabalhoadamente e sem qualquer preparação séria, apressadas pelos interesses geoestratégicos e pela cobiça das grandes potências. E enquanto os povos morrem de fome nas ruas, as Nações Unidas continuam a aplaudir o “sucesso total” da descolonização de África. Ou, melhor dizendo, da re-colonização de África.
Em relação a Angola, em apenas um mês duas publicações de topo dos EUA, o “The New Yorker” e o “The New York Times”, divulgaram relatos da miséria vivida no país controlado por José Eduardo dos Santos. Mas é talvez o livro “A Pilhagem de África” (titulo original: “The Looting Machine”), de Tom Burgis, um jornalista de investigação de renome mundial, que melhor conta a história de como o continente mais rico do mundo está a ser hoje brutalmente saqueado pelos mesmos grupos que em tempos diziam que os europeus tinham de sair… para o continente deixar de ser “saqueado”.
A maldição dos recursos


Como é possível que um continente tão rico seja tão pobre? O livro de Burgis abre com esta simples pergunta. África apenas representa 2% do PIB mundial: o Reino Unido teria de perder a Escócia para ficar com uma economia tão pequena como a africana. E, no entanto, mais de metade dos recursos industriais mundiais provêm de África. O petróleo é abundante, mas não passa da ponta do ‘iceberg’. Apesar de menos conhecidos ou referidos, outros recursos constituem a grande parte da riqueza do continente africano: alumínio, cobalto, cobre, diamantes, gás, ouro, ferro, platina, estanho, titânio e urânio.
Burgis é apenas um entre muitos autores que defendem a teoria da maldição dos recursos, ou seja, a ideia de que quanto mais rico em recursos um país é, menos necessidade a elite tem de sustentar o Estado com dinheiro dos impostos, distanciando-se do povo e das suas necessidades. Vários autores defendem, mesmo, que o excesso de riqueza natural retira às nações a necessidade de investirem no trabalho, na indústria e nos serviços.
Existem precedentes históricos para sustentar esta teoria. Um deles portas adentro, visto que foi na época em que Portugal foi supostamente mais rico, as décadas do ouro do Brasil, que também ficou mais pobre. As manufacturas e o fabrico de navios foram abandonados, deixados à argúcia dos holandeses, enquanto os portugueses se dedicavam exclusivamente a garimpar ouro e a construir palácios. No fim, a República dos Países Baixos cresceu à nossa custa, chegando a roubar-nos o comércio asiático, enquanto os industriosos ingleses ficavam com (quase) toda a Índia e o domínio soberano dos mares.
Angola é um caso moderno desta maldição. Antes de 1974, a então Província portuguesa tinha uma economia diversificada e em franco crescimento. Chegou a ser o maior produtor de café do mundo, um dos maiores exportadores agrícolas, e a industrialização seguia a grande velocidade, atraindo grupos económicos com enorme capacidade de investimento. A economia do Estado de Angola (nome oficial desde 1972) era tão florescente que o lucro da exploração do petróleo representava apenas uma pequena parte dos rendimentos do território. Só em 1973, ano de grande subida nos preços do “ouro negro”, é que o petróleo superou o café como exportação mais lucrative.
Máquina de fazer dinheiro


Hoje, o petróleo totaliza 98% das exportações do país, que importa quase toda a comida de que necessita. A produção de café quase desapareceu e a indústria é inexistente. Durante décadas de conflito, o MPLA financiou-se com o dinheiro do petróleo, que foi quase todo consumido pela compra de equipamento de guerra. O fim da longa guerra civil deixou o partido reinante com uma fonte de rendimentos controlada por si (através da Sonangol), uma máquina de fazer dinheiro que ainda por cima era de pouca exigência. Já restaurar a produção agrícola e mineira exigiria competências que o regime liderado por José Eduardo dos Santos claramente não tinha, nem tem. O poder ficou concentrado na pequena elite de Luanda, alcunhada de “Futungo”, por referência ao velho palácio que hoje alberga a presidência.
Angola não é um caso único, apenas é o regime onde o saque acontece de forma mais descarada, tendo até a duvidosa “honra” de merecer todo o primeiro capítulo do livro de Burgis dedicado a si. E, claro, é um exemplo caro aos portugueses, muitos dos quais nascidos em Angola e com raízes no território muito mais antigas do que a de muitos “libertadores”.
Falar de Angola é também falar do Congo, país onde se extraem os precisos minérios essenciais para os telemóveis de que os portugueses tanto gostam. A África do Sul, riquíssima em recursos, afinal não conseguiu dar o “grande salto em frente” que era esperado com o fim do anterior regime. O estudo de Tom Burgis ocupa-se também detalhadamente da Nigéria, país onde se vive abaixo do nível da miséria e que, não obstante, possui das maiores e mais ricas reservas de petróleo do planeta.
Sistema infernal


O actual sistema de pilhagem é extremamente complexo, mas encontra-se facilitado pela total desregulação do mundo das finanças, fenómeno derivado da globalização.
Por todo o mundo aparecem e desaparecem empresas-fantoche, criadas com o objectivo de esconder os verdadeiros donos de África. Grande parte do livro de Burgis é dedicada a descreve-nos em detalhe algumas das intrincadas operações financeiras postas em prática para que as pequenas elites africanas continuem a pilhar a riqueza do continente.
Por exemplo, os chineses, que estão sedentos de recursos naturais, usam a força do China International Fund (CIF) para conquistar África. Ao longo dos anos, o CIF tem financiado várias ditaduras africanas em troca de recursos, mas ninguém sabe bem quem lidera esta empresa, visto que ela é propriedade de outra, que por sua parte está ligada a 30 outras subsidiárias. Sabe-se, no entanto, que partilha gestores e diretores com a Sinopec, empresa estatal de petróleo, que é proprietária de metade da China-Sonangol, que explora os imensos poços de petróleo angolano. O objetivo dos chineses parece mesmo ser manter o petróleo a jorrar, visto que uma parte do lucro se perde na extrema corrupção de Angola. Estima-se que mais de 30 mil milhões de dólares desaparecem do PIB todos os anos, o equivalente à sexta parte de toda a riqueza nacional de Angola.
Mas os ocidentais não estão isentos de culpa. O livro de Burgis revela como uma empresa texana de exploração de petróleo cedeu, como se de uma “taxa normal” se tratasse, uma enorme fatia dos lucros a vários grupos locais dominados por importantes figuras políticas do regime de José Eduardo dos Santos – caso contrário, o negócio possivelmente nunca teria sido possível. Quem conhece a realidade angolana afirma que a imensa riqueza de Isabel dos Santos nasce da fama de “senhor dez por cento” do seu pai.
Outro excelente livro para se compreender a realidade do saque em curso é “Diamantes de Sangue/Corrupção e Tortura em Angola”, da autoria do corajoso jornalista Rafael Marques. Aí se afirma, em relação ao negócio dos diamantes, que “a inclusão da filha do presidente José Eduardo dos Santos, Isabel, como accionista da Ascorp conferiu à empresa as credenciais políticas para agir com impunidade.”
Os casos são igualmente escabrosos noutras partes de África, como Tom Burgis denuncia. Na Nigéria multiplicam-se os “movimentos de libertação”, financiados por uma ou outra empresa privada, e cujo objectivo é roubar petróleo para vender aos grandes conglomerados ocidentais e chineses. No centro deste núcleo encontra-se novamente a China Sonangol, nome que se repete constantemente no livro.
Miséria e arranha-céus


Luanda é a cidade mais cara do planeta, mas mais de 40% dos angolanos vivem com menos de 1 euro por dia, ou seja, em miséria extrema. Apesar de o país ser imensamente rico em propriedades externas, em diamantes e em rendimentos do petróleo, a mortalidade infantil é hoje das mais elevadas do mundo, superando largamente a mortalidade dos tempos coloniais, quando as tecnologias médicas eram consideravelmente menos avançadas. Os jornalistas do “The New York Times”, chocados, chegam mesmo a usar um título que dificilmente agradaria às autoridades de Lisboa, sempre preocupadas em evitar tudo o que “incomode” o regime de Eduardo dos Santos: “A corrupção está a matar crianças em Angola”.
Os 30 mil milhões que “desaparecem” todos os anos das contas públicas angolanas têm destinos mais “importantes” do que o bem-estar do povo. Um ministro angolano, por exemplo, comprou um Rolls-Royce que só pode ser usado na marginal de Luanda e num ou noutro troço de estrada em condições de acolher tão delicada preciosidade automóvel. O carro tem de ser transportado de camião até aos escassos pedaços de asfalto onde pode circular durante uns minutos, para depois ser recolhido e regressar à garagem.
Os arranha-céus, cobertos de materiais modernos e brilhantes, contrastam com os imensos bairros de barracas, os “musseques”, que constituem a maior parte da cidade. Não deixa de ser curioso como estes edifícios são pequenas cidadelas coloniais modernas, inclusive equipadas com geradores próprios, visto que a rede energética falha constantemente, algo que tem a ver com o facto de não ser actualizada desde a época portuguesa. Nas suas fachadas vislumbra-se sempre uma bandeira estrangeira, na maioria dos casos chinesa.
As grandes obras são maioritariamente “para inglês ver”, como a enorme cidade de Kilamba, que ainda hoje está praticamente vazia, porque os angolanos não têm dinheiro para comprar comida, quanto mais casas, e o Hospital Central de Luanda, que entrou em colapso após apenas alguns anos de uso.
No Congo, as crianças são “recrutadas” por empresas militares privadas como mão-de-obra barata na extracção do minério. Milhares delas ficam sem mãos, outros milhares contraem cancro, a maioria não sobrevive além dos 20 anos. Na Nigéria, os outrora maravilhosos rios que os britânicos descreviam nos seus relatos de viagem são agora mais tóxicos que muitos esgotos europeus. Os pescadores locais, e os agricultores, foram condenados a procurar outro emprego, ou a morrer à fome, enquanto a elite governamental vive feliz e contente.
Repressão


A queda abrupta do preço do petróleo deixou estas oligarquias em apuros, e preocupadas com o seu eventual derrube. Quando deixarem de ser relevantes para os ocidentais e para os chineses, estes não terão qualquer dificuldade em deixá-los para trás, para enfrentarem a fúria do seu povo. Os últimos meses têm sido de terror, enquanto em países como a Nigéria e o Congo mercenários espalham morte e medo entre as populações. Em Angola, o jornalista Rafael Marques foi julgado, e condenado, por dizer a verdade, e não será certamente o fim da sua perseguição. Activistas de todos os tipos estão a ser reunidos durante a noite e levados para os calabouços. A justificação: “estavam a conspirar para derrubar o regime”. Nos próximos meses a repressão apenas ficará pior.
Existe muito mais para dizer sobre toda a questão do saque a África, muito mais do que é possível escrever nestas páginas, mas a questão começou finalmente a ser discutida nos meios de comunicação internacionais. Os livros “A Pilhagem de África” e “Diamantes de Sangue/Corrupção e Tortura em Angola” (este último disponível gratuitamente na internet) ajudam-nos a compreender uma realidade trágica, e que está muito próxima de nós.
De cada vez que compra um telemóvel, o cidadão ocidental está a participar na máquina de saque e pilhagem. De cada vez que enche o depósito do carro, está a participar na máquina. Ao abrir conta num dos bancos com participação angolana, está a participar na máquina. Até mesmo ao comprar serviços de televisão e internet pode estar a participar na máquina.
Mesmo que pareça muito distante, a máquina de pilhagem de África está muito perto de nós: convivemos diariamente com ela.




O Diabo

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