Thursday 25 September 2014

50 anos de mentiras


Até os mortos mudam o lugar em que morreram.
Durante uns anos, um homem, fundador de uma organização, morreu num certo lugar. Uns anos depois, já não morreu naquele lugar, morreu em outro lugar.
Não é o morto quem mente. Os mortos não mentem. São os vivos que mentem, servindo-se dos nomes dos mortos para fins abomináveis. Será que aqueles que morreram durante a guerra pela Independência Nacional deram as suas vidas motivados pelo objectivo de que estes vivos se tornassem “empresários de sucesso” e “princesas milionárias”? A legitimidade da linha “Não Ter Medo de Ser Rico” está assente sobre o alicerce do silêncio dos mortos. E estes não ressuscitam para virem pedir contas aos vivos.
Agora aparece uma organização a dizer que tem 50 anos na luta contra a pobreza.
O Programa da Frelimo aprovado no II Congresso (1968) não contém nem
uma única vez a palavra “pobreza”. O Programa do partido Frelimo aprovado no III Congresso (1977) contém aproximadamente sete mil palavras. Entre essas sete mil palavras não houve lugar para a palavra “pobreza”. A palavra “pobreza” não pertence ao vocabulário da Frelimo.
A luta da Frelimo, durante 10 anos, foi contra o colonialismo. Será que querem varrer essa luta para debaixo do tapete, para que não seja fonte de inspiração para os dias de hoje?
Então, e em 50 anos de luta contra a pobreza ainda não conseguiram vencê-la? Eh, pá! Isso é o grau máximo da incompetência! E um currículo desses é uma fortíssima garantia de que a pobreza vai durar mais 50 anos. E quem é que está interessado em votar em mais 50 anos de pobreza?
Nesta campanha eleitoral, é usada uma enorme bandeira branca, que tem no lado esquerdo uma fotografia do candidato do grupo “Não Ter Medo de Ser Rico”. No lado direito, tem uma frase com três linhas. Na terceira linha está escrito: A POBREZA CONTINUA.
Primeiro, diziam que foi o povo moçambicano que lutou para se libertar do colonialismo e conquistar a Independência. Agora aparecem a dizer que, afinal, não foi isso o que aconteceu. Foi uma casta especial que libertou o povo – como se algum povo pudesse ser libertado por algum grupo – e ofereceu senhorialmente a Independência ao Maravilhoso Povo. E, por via disso, determinam que o Maravilhoso Povo tem para com eles uma dívida eterna. Convertem um direito em dívida.
Mas essa dívida exclui do povo todos aqueles que tenham menos de 39 anos de idade, visto que esses não foram libertados por ninguém, pois já nasceram livres. Ou não? Ou pretendem dizer que esses nasceram já escravizados pelos “libertadores” do tal povo que, afinal, não lutou?
“Ah, mas se não fossemos nós…”. Bem! Esse é um raciocínio do estilo: “Se Samora Machel não tivesse morrido, ainda era vivo”.
Mas se isto se mede em dívidas, então é preciso perguntar: quando é que vão pagar a dívida histórica que têm para com todos aqueles que morreram – e também os que sobreviveram – em defesa do Governo, durante a Guerra Neocolonialista dos 16 anos, e que, com o sacrifício das suas vidas contribuíram para que esta casta feudalista se mantivesse no poder até hoje?
Onde estaria hoje esta casta feudalista, se não fosse o sacrifício daqueles que lutaram, não durante 10 anos, mas sim durante 16 anos? Quem é que sacrificou a sua juventude, afinal?
E como é que uma guerra de 10 anos gerou tantos nomes de heróis, e uma guerra de 16 anos não gerou nem um só nome?
Esta campanha orquestrada em torno de um marco temporal de 50 anos significa que, neste ano de 2014, foi tomada a decisão de cortar dois anos na data da fundação da Frente de Libertação de Moçambique (1962) e criar uma nova data de fundação: 1964. Porquê?
Depois de terem sido extintos os fundadores de 1962, a casta feudalista pretende passar do estatuto de “libertadores” ao estatuto de “fundadores” em 1964. Em breve, nos manuais escolares será escrito que a Frente de Libertação de Moçambique foi fundada em 1964.
Nesses próximos manuais escolares, a História da guerra pela Independência Nacional vai ser contada assim: houve o “Primeiro Tiro” e depois houve a Independência Nacional.
Não houve outros combates nem houve quem os comandou, e que tiveram
o papel principal nessa guerra. Não houve Oswaldo Tazama, não houve Sebastião  Mabote, não houve Cândido Mondlane. Houve um tiro que foi disparado depois dos outros, e que recuou no tempo, para se transformar magicamente em “Primeiro Tiro”.
Nos manuais de História virá escrito também que houve uma “princesa milionária” que recuou no tempo, e que se transformou magicamente em Antiga Combatente Pré-natal. Como se vê, o paralelismo dos casos revela uma estratégia de manipulação que é uniforme.
Dando largas à infinita capacidade de reinventar a mentira, a cada dia que passa reescrevem a História conforme os seus apetites de protagonismo e de exibicionismo, atolados numa ego-estima que não conhece limites racionais.
A contínua produção de mentiras leva a que os praticantes desse vício, a partir de um certo momento, passem a acreditar nas suas próprias mentiras. Esta é uma doença que se chama mitomania e que está devidamente descrita nos manuais de psicopatologia.
Mas uma guerra que tem uma Sessão de Abertura, com o “Primeiro Tiro”, de certeza que tem uma Sessão de Encerramento, com o “Último Tiro”. Toda a nação aguarda ansiosamente que seja revelado o nome do herói do “Último Tiro”.
 
Afonso dos Santos, Canal de Moçambique, 24 de Setembro de 2014

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