Carlos Adrião Rodrigues- Começando a descobrir a história da descolonização.
Esta carta terá sido elaborada para o Presidente Samora Machel no segundo semestre de 1977....
Contribuições para a História de Moçambique
Carta de demissão do primeiro Vice-governador do Banco de Moçambique
Após a independência de Moçambique foi criado um banco central sobre
os alicerces do então Banco Nacional Ultramarino (BNU). Alberto
Cassimo viria a ser o primeiro governador do novo banco emissor - o
Banco de Moçambique. Carlos Adrião Rodrigues, advogado com cartório na capital moçambicana e ligado ao sector progressista da burguesia
colonial, ascendeu à posição de vice-governador daquela instituição
bancária.
Membro do grupo de pressão denominado «Democratas de Moçambique»,
Adrião Rodrigues havia-se evidenciado, conjuntamente com João Afonso
dos Santos, Pereira Leite e William Gerard Pott, num famoso processo
jurídico conhecido pelo «Caso dos Padres do Macúti» em que dois
prelados católicos, detidos na Beira pela PIDE/DGS no âmbito duma
conspiração engendrada por Jorge Jardim, eram acusados da prática do
"crime contra a harmonia racial", algo não contemplado no Código
Processual então em vigor na colónia portuguesa do Índico.
Desiludido com a política seguida pelo regime da Frelimo, mormente no
tocante à perseguição movida contra as minorias étnicas do país,
Carlos Adrião Rodrigues optou por se demitir do cargo para o qual
havia sido nomeado pelo governo de Samora Machel.
Idênticos passos viriam a ser dados por outros membros daquele grupo
de pressão, como Pereira Leite, Sérgio Espadas, entre outros.
William Gerard Pott, causídico moçambicano oriundo da Zambézia, viria
a ser detido pelo SNASP. Como consequência dos maus tratos e sevícias de que fora alvo por parte da polícia política, Pott viria a falecer poucas semanas depois, vítima de colapso cardíaco.
A seguir se transcreve o texto integral da carta de demissão que
Carlos Adrião Rodrigues endereçou ao Presidente Samora Machel:
Carlos Adrião Rodrigues
Rua de Infantaria 16, n° 103 2° Dto.
LISBOA
Exmo. Sr.
Presidente da República Popular de Moçambique
Excelência,
Venho apresentar a V.Exa a minha demissão do cargo de Vice-governador do Banco de Moçambique.
Em resumo as razões que me levam a tomar esta decisão, são as seguintes:
1. - A política de afastamento das minorias étnicas residentes em
Moçambique. Esta política - cuja determinação voluntária por parte do
governo não me oferece dúvidas e é facilmente demonstrável - além de
pôr em causa a existência de uma sociedade pluriracial em Moçambique,
em que eu pessoal-mente apostara, empurrou o país para o caos económico e social.
Por virtude de uma injustiça decorrente da situação colonial, mas que
ao governo revolucionário seria fácil corrigir, parte importante dos
conhecimentos necessários ao país estavam concentrados nessa gama
populacional (brancos, indianos, chineses e mulatos).
Ora, grande parte dessas minorias étnicas ficaria no país, caso lhes
fossem dadas determinadas garantias básicas (direito a não ser preso
excepto nos casos permitidos por lei, respeito pela sua propriedade
pessoal, garantias de julgamento rápido e de defesa em caso de prisão
legal, respeito da sua identidade cultural própria.
Em troca destas garantias fundamentais (que não seriam uma excepção
porque se deveriam aplicar a toda a população) elas dariam ao país o
seu trabalho, que enquadrado numa economia socialista, era essencial
para o arranque económico.
Em vez de se aproveitar essa parte da população, preferiu-se
acossá-la. Multiplicaram-se as prisões arbitrárias, as violências
verbais, o desrespeito pelos bens pessoais. Procurou-se substituir
essa população pelos cooperantes e por uma apressada formação de
quadros, mais apregoada que executada.
Escorraçou-se do país para fora homens que eram absolutamente
insubstituíveis, para já, e que num outro contexto teriam ficado.
Lembro só para exemplo os quadros agrícolas e veterinários escassos
mas extremamente importantes, apostados em ficar mas que um a um se
foram embora, bem contra vontade; os quadros de geologia e minas,
falsamente acusados de desvio de ouro, nas primeiras páginas dos
jornais locais, e que depois de se ter constatado a sua inocência
jamais mereceram uma reparação.
Os Zecas Russos, os Macamos e outros marginais ainda em circulação
foram promovidos a autênticos heróis nacionais, só porque espoliavam
as pessoas de seus teres e haveres o que, parece, era considerado
altamente patriótico e revolucionário. Verdade que eles espoliavam as
maiorias e as minorias, o que resulta em fraco consolo para umas e
outras.
E, neste caminho, acabou-se na pequena truculência anti-branco ou
anti-mulato, como foram os casos da expulsão dos agricultores brancos
do Vale do Limpopo - gente pobre que trabalhava a terra - e a expulsão dos chamados "comerciantes de nacionalidade" isto é, de pessoas que ao
abrigo de uma lei ridícula e que devia ser revogada, mas que existia e tinha sido publicada pelo governo da República Popular de Moçambique, tinham mudado de nacionalidade, para se garantirem um pouco mais contra as arbitrariedades que apontei. Ora, esta expulsão veio afectar a economia do país, na medida em que afastou os últimos operários com alguma especialização e de capacidade de direcção que não fossem negros. E quanto a estes últimos ainda está por fazer o balanço dos que fugiram. Mas segundo me consta, a zona do Rand, na África do Sul, está cheia de carpinteiros, mecânicos, electricistas, operários da construção civil, fugidos de Moçambique.
Durante muito tempo convenci-me que esta política era, não uma
política mas sim erros, próprios do processo. Ou tentei convencer-me.
Mas a constância dos erros e sobretudo o reforço da posição das
pessoas que eram o esteio desta política, surgido do 3° Congresso,
convenceu-me que se tratava de uma política sistematicamente
prosseguida. Ora eu tinha apostado noutra: a manutenção das minorias
étnicas, o respeito pelos seus direitos, mas contrariando severamente
todos os privilégios que, indiscutivelmente os beneficiava.
E Moçambique, porque um país onde tais minorias étnicas eram em número reduzido, podia ser o laboratório experimental de uma política que me parecia poder ser exemplo extremamente importante para a África Austral.
Por outro lado a força e o prestígio da FRELIMO permitiam-lhe fazer a
experiência. Não se fez e o resultado está à vista: o fracasso
económico, e a redução quase a zero das possibilidades de recuperação; um profundo desengajamento do povo, tanto no trabalho da construção do país como na actividade política; uma cada vez maior dependência da África do Sul que hoje, mais que no tempo colonial é a grande fonte das nossas disponibilidades externas e o grande fornecedor dos bens de consumo essenciais que a nossa produção reduzida torna vitais.
2 - Convencido como fiquei de que a sobrevivência das minorias étnicas e o projecto de uma sociedade pluriracial estavam condenados em Moçambique em virtude da política prática seguida - que contrariava a linha política anunciada - cheguei à conclusão que eu, como branco e ainda por cima não nascido em Moçambique, não tinha lugar nessa sociedade, pelo menos enquanto não mudar a sua praxis e não se decidir a assumir como sua toda a população (que era escassa) habitante do território. Portanto saio. Creia que não lhe minto se lhe disser que faço com a morte na alma.
E saio já porque também devo pensar um pouco mais em mim e que os meus anos se vão passando para iniciar vida nova utilmente noutro país.
3 - A pressão sobre as minorias não resultou em qualquer benefício
para a maioria. Antes pelo contrário - a quebra na produção e a
incapacidade de recuperação que se nota em quase todos os sectores da
economia, fazem prever um acentuado decréscimo no nível de vida da
população.
Postas as razões convém-me ainda esclarecer que considero V.Exa ainda
hoje, apesar das reservas expostas à política seguida, como o mais
autêntico representante do povo moçambicano, o verdadeiro líder
nacionalista de que Moçambique precisa.
Por outro lado, e como vacina contra boatos, quero afirmar que nas
minhas actuações sempre procurei defender com toda a honestidade os
interesses que me foram confiados por Moçambique.
Mas a corrupção a alto nível dentro do aparelho de estado existe, e
dela tive confirmação em Lisboa.
Pelas razões que exponho para a minha saída, acho ser meu direito, e
também meu dever, pedir a V.Exa que autorize a saída dos meus bens
pessoais que me fazem mais falta e que só com dificuldade poderia
substituir: mobílias, electrodomésticos, livros, discos e um carro
Simca 08-75, com 5 anos de uso. Caso V.Exa autorize, pessoa amiga, que indico ao Cassimo, tratará das demarches necessárias.
Mas se V.Exa achar que não deve autorizar, também passarei sem elas.Aceite V.Exa os cumprimentos meus e de minha mulher e os nossosdesejos das maiores prosperidades para o Povo Moçambicano.
Carlos Adrião Rodrigues
( Préstimos de A. Velho )
Esta carta terá sido elaborada para o Presidente Samora Machel no segundo semestre de 1977....
Contribuições para a História de Moçambique
Carta de demissão do primeiro Vice-governador do Banco de Moçambique
Após a independência de Moçambique foi criado um banco central sobre
os alicerces do então Banco Nacional Ultramarino (BNU). Alberto
Cassimo viria a ser o primeiro governador do novo banco emissor - o
Banco de Moçambique. Carlos Adrião Rodrigues, advogado com cartório na capital moçambicana e ligado ao sector progressista da burguesia
colonial, ascendeu à posição de vice-governador daquela instituição
bancária.
Membro do grupo de pressão denominado «Democratas de Moçambique»,
Adrião Rodrigues havia-se evidenciado, conjuntamente com João Afonso
dos Santos, Pereira Leite e William Gerard Pott, num famoso processo
jurídico conhecido pelo «Caso dos Padres do Macúti» em que dois
prelados católicos, detidos na Beira pela PIDE/DGS no âmbito duma
conspiração engendrada por Jorge Jardim, eram acusados da prática do
"crime contra a harmonia racial", algo não contemplado no Código
Processual então em vigor na colónia portuguesa do Índico.
Desiludido com a política seguida pelo regime da Frelimo, mormente no
tocante à perseguição movida contra as minorias étnicas do país,
Carlos Adrião Rodrigues optou por se demitir do cargo para o qual
havia sido nomeado pelo governo de Samora Machel.
Idênticos passos viriam a ser dados por outros membros daquele grupo
de pressão, como Pereira Leite, Sérgio Espadas, entre outros.
William Gerard Pott, causídico moçambicano oriundo da Zambézia, viria
a ser detido pelo SNASP. Como consequência dos maus tratos e sevícias de que fora alvo por parte da polícia política, Pott viria a falecer poucas semanas depois, vítima de colapso cardíaco.
A seguir se transcreve o texto integral da carta de demissão que
Carlos Adrião Rodrigues endereçou ao Presidente Samora Machel:
Carlos Adrião Rodrigues
Rua de Infantaria 16, n° 103 2° Dto.
LISBOA
Exmo. Sr.
Presidente da República Popular de Moçambique
Excelência,
Venho apresentar a V.Exa a minha demissão do cargo de Vice-governador do Banco de Moçambique.
Em resumo as razões que me levam a tomar esta decisão, são as seguintes:
1. - A política de afastamento das minorias étnicas residentes em
Moçambique. Esta política - cuja determinação voluntária por parte do
governo não me oferece dúvidas e é facilmente demonstrável - além de
pôr em causa a existência de uma sociedade pluriracial em Moçambique,
em que eu pessoal-mente apostara, empurrou o país para o caos económico e social.
Por virtude de uma injustiça decorrente da situação colonial, mas que
ao governo revolucionário seria fácil corrigir, parte importante dos
conhecimentos necessários ao país estavam concentrados nessa gama
populacional (brancos, indianos, chineses e mulatos).
Ora, grande parte dessas minorias étnicas ficaria no país, caso lhes
fossem dadas determinadas garantias básicas (direito a não ser preso
excepto nos casos permitidos por lei, respeito pela sua propriedade
pessoal, garantias de julgamento rápido e de defesa em caso de prisão
legal, respeito da sua identidade cultural própria.
Em troca destas garantias fundamentais (que não seriam uma excepção
porque se deveriam aplicar a toda a população) elas dariam ao país o
seu trabalho, que enquadrado numa economia socialista, era essencial
para o arranque económico.
Em vez de se aproveitar essa parte da população, preferiu-se
acossá-la. Multiplicaram-se as prisões arbitrárias, as violências
verbais, o desrespeito pelos bens pessoais. Procurou-se substituir
essa população pelos cooperantes e por uma apressada formação de
quadros, mais apregoada que executada.
Escorraçou-se do país para fora homens que eram absolutamente
insubstituíveis, para já, e que num outro contexto teriam ficado.
Lembro só para exemplo os quadros agrícolas e veterinários escassos
mas extremamente importantes, apostados em ficar mas que um a um se
foram embora, bem contra vontade; os quadros de geologia e minas,
falsamente acusados de desvio de ouro, nas primeiras páginas dos
jornais locais, e que depois de se ter constatado a sua inocência
jamais mereceram uma reparação.
Os Zecas Russos, os Macamos e outros marginais ainda em circulação
foram promovidos a autênticos heróis nacionais, só porque espoliavam
as pessoas de seus teres e haveres o que, parece, era considerado
altamente patriótico e revolucionário. Verdade que eles espoliavam as
maiorias e as minorias, o que resulta em fraco consolo para umas e
outras.
E, neste caminho, acabou-se na pequena truculência anti-branco ou
anti-mulato, como foram os casos da expulsão dos agricultores brancos
do Vale do Limpopo - gente pobre que trabalhava a terra - e a expulsão dos chamados "comerciantes de nacionalidade" isto é, de pessoas que ao
abrigo de uma lei ridícula e que devia ser revogada, mas que existia e tinha sido publicada pelo governo da República Popular de Moçambique, tinham mudado de nacionalidade, para se garantirem um pouco mais contra as arbitrariedades que apontei. Ora, esta expulsão veio afectar a economia do país, na medida em que afastou os últimos operários com alguma especialização e de capacidade de direcção que não fossem negros. E quanto a estes últimos ainda está por fazer o balanço dos que fugiram. Mas segundo me consta, a zona do Rand, na África do Sul, está cheia de carpinteiros, mecânicos, electricistas, operários da construção civil, fugidos de Moçambique.
Durante muito tempo convenci-me que esta política era, não uma
política mas sim erros, próprios do processo. Ou tentei convencer-me.
Mas a constância dos erros e sobretudo o reforço da posição das
pessoas que eram o esteio desta política, surgido do 3° Congresso,
convenceu-me que se tratava de uma política sistematicamente
prosseguida. Ora eu tinha apostado noutra: a manutenção das minorias
étnicas, o respeito pelos seus direitos, mas contrariando severamente
todos os privilégios que, indiscutivelmente os beneficiava.
E Moçambique, porque um país onde tais minorias étnicas eram em número reduzido, podia ser o laboratório experimental de uma política que me parecia poder ser exemplo extremamente importante para a África Austral.
Por outro lado a força e o prestígio da FRELIMO permitiam-lhe fazer a
experiência. Não se fez e o resultado está à vista: o fracasso
económico, e a redução quase a zero das possibilidades de recuperação; um profundo desengajamento do povo, tanto no trabalho da construção do país como na actividade política; uma cada vez maior dependência da África do Sul que hoje, mais que no tempo colonial é a grande fonte das nossas disponibilidades externas e o grande fornecedor dos bens de consumo essenciais que a nossa produção reduzida torna vitais.
2 - Convencido como fiquei de que a sobrevivência das minorias étnicas e o projecto de uma sociedade pluriracial estavam condenados em Moçambique em virtude da política prática seguida - que contrariava a linha política anunciada - cheguei à conclusão que eu, como branco e ainda por cima não nascido em Moçambique, não tinha lugar nessa sociedade, pelo menos enquanto não mudar a sua praxis e não se decidir a assumir como sua toda a população (que era escassa) habitante do território. Portanto saio. Creia que não lhe minto se lhe disser que faço com a morte na alma.
E saio já porque também devo pensar um pouco mais em mim e que os meus anos se vão passando para iniciar vida nova utilmente noutro país.
3 - A pressão sobre as minorias não resultou em qualquer benefício
para a maioria. Antes pelo contrário - a quebra na produção e a
incapacidade de recuperação que se nota em quase todos os sectores da
economia, fazem prever um acentuado decréscimo no nível de vida da
população.
Postas as razões convém-me ainda esclarecer que considero V.Exa ainda
hoje, apesar das reservas expostas à política seguida, como o mais
autêntico representante do povo moçambicano, o verdadeiro líder
nacionalista de que Moçambique precisa.
Por outro lado, e como vacina contra boatos, quero afirmar que nas
minhas actuações sempre procurei defender com toda a honestidade os
interesses que me foram confiados por Moçambique.
Mas a corrupção a alto nível dentro do aparelho de estado existe, e
dela tive confirmação em Lisboa.
Pelas razões que exponho para a minha saída, acho ser meu direito, e
também meu dever, pedir a V.Exa que autorize a saída dos meus bens
pessoais que me fazem mais falta e que só com dificuldade poderia
substituir: mobílias, electrodomésticos, livros, discos e um carro
Simca 08-75, com 5 anos de uso. Caso V.Exa autorize, pessoa amiga, que indico ao Cassimo, tratará das demarches necessárias.
Mas se V.Exa achar que não deve autorizar, também passarei sem elas.Aceite V.Exa os cumprimentos meus e de minha mulher e os nossosdesejos das maiores prosperidades para o Povo Moçambicano.
Carlos Adrião Rodrigues
( Préstimos de A. Velho )
No comments:
Post a Comment