O escritor moçambicano Mia Couto alertou para uma eventual "banalização da injustiça" que pode tornar "invisível a miséria material e moral", considerando que perpetua a pobreza e paralisa a história de Moçambique.
Falando na semana passada numa aula inaugural da Escola de Comunicação e Artes, da Universidade Eduardo Mondlane, intitulada "Da cegueira colectiva à aprendizagem da insensibilidade", Mia Couto citou o exemplo do transporte semi-coletivo (vulgo chapa) que "circula superlotado com dezenas de pessoas que se entrelaçam apinhadas num equilíbrio inseguro e frágil" em Maputo.
"Aquilo parece um meio de transporte. Mas não é. É um crime ambulante. É um atentado contra a dignidade, uma bomba relógio contra a vida humana. Em nenhum lado do mundo essa forma de transporte é aceitável. Quem se transporta assim são animais. Não são pessoas. Quem se transporta assim é gado. Para muitos de nós, esse atentado contra o respeito e a dignidade passou a ser vulgar", considerou.
Recentemente, as autoridades municipais da capital moçambicana, Maputo, autorizaram a circulação de viaturas de caixa aberta, sem licença para o exercício da actividade, visando responder à gritante falta de transporte que se regista nas horas de ponta.
"Achamos que é um erro. Mas aceitamos que se trata de um mal necessário dada a falta de alternativas. De tanto convivermos com o intolerável, existe um risco: aos poucos aquilo que era errado acaba por ser ´normal`. O que era uma resignação temporária passou a ser uma aceitação definitiva. Não tarda que digamos: ´nós somos assim, esta é a maneira moçambicana`. Desse modo nos aceitamos pequenos, incapazes e pouco dignos de ser respeitados", afirmou o escritor.
Mia Couto disse ainda que, nos últimos tempos, em Moçambique reina "um clima de impunidade", apelando a que se dê uma resposta de cidadania e cultura.
"Tenhamos uma resposta de cidadania, cultura, que impeça que essa gente tenha um reinado que possa fazer e desfazer, como se nós fossemos o tal gado que é transportado nas traseiras de um chapa", defendeu.
Para Mia Couto, "há muitos que olham para o país como se fosse um ´chapa`, aliás, "eles guiam o país como se guia um chapa, não obedecem leis, passam à frente, tendo carros à frente, e o povo é aquele que vai atrás e eles não conhecem e não se importam que morram" em acidentes.
"Se convertermos isso - e a lógica é esta e isso é que é o drama: é que essa gente que está a ser conduzida nos ´chapas` sabe que pode morrer, mas não deixa de andar no chapa, não deixa ela própria de mandar parar o ´chapa`. Quando isso acontecer, provavelmente, alguma coisa poderá começar a mudar", considerou o escritor.
Diário de Notícias e RM
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