É pouco provável que os destinos de Joacine Katar Moreira e de Isabel dos Santos alguma vez se tenham cruzado. Uma nasceu “negra, gaga e pobre” , e, confessou-o, mal sabe como veio parar a um lugar de destaque na vida política portuguesa. A outra, negra, “inteligente, perseverante”, acha que o lugar de mulher mais rica de África é seu por mérito, fruto do trabalho árduo e de um precoce instinto para o negócio. Mas por estes dias, colocadas em contexto de pressão, ambas se vitimizam, ambas fazem do ataque a sua defesa, e ambas lançam mão de argumentos desesperados: o preconceito contra a cor da pele, os tiques neocolonialistas portugueses e a discriminação das mulheres.
Isabel dos Santos não foi apanhada desprevenida pela investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas, que o Expresso e a SIC ontem tornaram pública, em parceria com mais 36 órgãos de comunicação social, e estava preparada para ripostar. A mulher que durante anos evitou jonalistas e confiscou câmaras a fotógrafos, ensaiou um momento ‘trumpiano’ e disparou 28 mensagens de uma assentada no twitter. Para acusar os jornalistas de mentira, de “racismo” e de “preconceito”, e convocar “a era das colónias em que nenhum africano pode valer o mesmo que um Europeu”.
Uma das linhas de investigação desenvolvidas por Micael Pereira e Luís Garriapa gravita em torno da Sonangol - curiosamente a empresa que a imprensa angolana apelidou em 2017 de “a mais portuguesa de todas as empresas públicas angolanas”, pela preferência que era dada a quadros portugueses em detrimento de angolanos. Os jornalistas contam como Isabel dos Santos transferiu pelo menos 115 milhões de euros para o Dubai, para uma sociedade que alegadamente prestou serviços à Sonangol mas que, à luz dos ficheiros analisados, era uma entidade que tinha a empresária como beneficiária efetiva (aqui na versão longa, com documentos que podem ser úteis às autoridades, aqui na versão televisiva, e aqui para um resumo telegráfico).
Os principais protagonistas que gravitam à volta desta história são Paula Oliveira, uma portuguesa próxima da angolana, os advogados portugueses Jorge Brito Pereira e Mário Leite Silva, e Sarju Raikundalia, o braço direito de Isabel dos Santos na administração da petrolífera e que, tal como a empresária, desde 2018 que não voltou a Angola, e cujos perfis pode ler aqui.
O banco português Eurobic, com Fernando Teixeira dos Santos ao leme, terá sido usado como plataforma de circulação de dinheiro. Boston Consulting Group (BCG), PricewaterhouseCoopers (PwC), Mckinsey e o escritório de advogados Vieira de Almeida (VdA), em Portugal, também estiveram envolvidos no processo, expondo a ligação estreita do meio da consultoria nacional e internacional à empresária que, à sombra do pai, montou um império com mais de 400 empresas.
Tal como Isabel dos Santos, também Joacine Katar Moreia sabia ao que ia quando entrou na junta de freguesia de Alvalade para o congresso do Livre. Acusada de ter uma agenda demasiado pessoal, de ignorar as estruturas do partido e de cavalgar uma mensagem excessivamente identitária, a deputada carregou no tom, na mensagem e não resistiu à tirada racista. Diz estar a ser vítima de “perseguição absoluta”, acusa os ex-amigos de usarem o ódio do qual tem sido alvo para tentarem afastá-la e de a terem instrumentalizado – elegeram “uma mulher negra que foi útil para a subvenção”.
Joacine Katar Moreira luta por estes dias pela sua sobrevivência política, Isabel dos Santos pela preservação do seu império empresarial. Mesmo que os milagres aconteçam, e Joacine se reconcilie com o Livre e Isabel com o Estado angolano, a história de ambas já não será contada da mesma maneira.
( ELISABETE MIRANDA, Expresso )