Sunday, 25 May 2014

Fátima e a crise

O que move tanta gente a pé para Fátima? Trinta e cinco mil, este ano, segundo consta. No fundo, diria que é a Mãe. Ele há tanto sofrimento - físico, psicológico, moral, próprio, dos filhos, do marido, da mulher, da mãe, do pai... E a Mãe não há-de entender e socorrer?
Depois, lá chegados, homens e mulheres, agradecem à Mãe as graças, gritam lá no mais íntimo, suplicam, choram, cumprem as promessas, de joelhos ou mesmo arrastando-se. E a gente comove--se. E é preciso respeitar o sofrimento das pessoas e manifestar--lhes compaixão activa na sua dor. Quem se atreverá, perante o sofrimento, por vezes extremo, a ridicularizar, em vez de tentar compreender e ajudar?
Mas, dito isto, deve-se acrescentar que é preciso evangelizar Fátima e o Deus de Fátima, mesmo sabendo que se trata de uma tarefa quase impossível. Foi o famoso antigo bispo de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto, que me contou que, encontrando-se em Fátima, se deparou com uma senhora que, de joelhos, se arrastava a custo para a Capelinha das Aparições. Na tentativa de demovê-la, pois o Evangelho não é a favor de promessas nem do sacrifício pelo sacrifício, foi-lhe dizendo que Deus não queria aquilo e que ele, bispo, até podia substituir a promessa, por exemplo, pela ajuda a uma obra social. Insistiu, sublinhando até que assumia a responsabilidade. Mas a senhora atirou-lhe: "Vá com Deus, senhor bispo. Não foi a si que eu fiz a promessa." O bispo voltou-se para dentro de si e ter-se-á interrogado como é que o Evangelho tem dificuldade em entrar na Igreja.
As pregações em Fátima, apelando à penitência e ao sacrifício, nem sempre estão de acordo com o Evangelho. Até etimologicamente, a palavra Evangelho significa notícia boa e felicitante. O Evangelho segundo São Marcos começa assim: "Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus. Jesus pregava o Evangelho do Reino de Deus e dizia: o Reino de Deus está próximo; mudai de mentalidade e acreditai na Boa Nova." O que lá está é: Evangelho enquanto notícia boa e feliz. Habitualmente, aquele "mudai de mentalidade" é traduzido por "fazei penitência". Mas, no original grego, está: "metanoeîte", que significa: "mudai de mentalidade, de pensamento, de coração". Não está: "fazei penitência". E Jesus também dizia: "Ide aprender o que isto quer dizer: Deus não quer sacrifícios, mas misericórdia."
Mas, muitas vezes, talvez porque ao poder interessa o cultivo do medo, o Evangelho tornou-se de facto uma má notícia. Deus, que Jesus proclamou como Amor, Liberdade criadora, Fonte de alegria e de realização plena, acabou por ficar associado a tristeza, tédio, medo, castigo, infantilismo, vida tolhida, sentimento de culpa. Para esse "Disangelho" (notícia má e paralisante), como lhe chamou Nietzsche, foi decisiva a infiltração da ideia de que Deus, para aplacar a sua ira e reconciliar-se com a humanidade, precisou da morte do próprio Filho na cruz. E aí está um deus vingativo, cruel e monstruoso, contradizendo o que Jesus disse e fez: Deus é Amor incondicional. Mas, se Deus fosse vingativo e cruel, também os seres humanos poderiam exercer vingança e crueldade. Que pai ou mãe sadios exigiriam a morte de um filho para reconciliar-se com os outros filhos? Note-se que o teólogo J. Ratzinger, mais tarde Bento XVI, rejeitou a noção de um Deus "cuja justiça inexorável teria exigido um sacrifício humano, o sacrifício do seu próprio Filho. Esta imagem, apesar de tão espalhada, não deixa de ser falsa".
Há ligação entre a crise e as peregrinações a Fátima? Não me custa admiti-lo. Mas, seguindo o Evangelho, isso não pode acontecer no sentido das promessas e do sacrifício pelo sacrifício, mas do que realmente deve ser: o sacrifício da conversão para uma nova mentalidade, um pensamento novo e um coração novo. Em Portugal, ainda há 80% que se confessam católicos. Se todos se convertessem, também no Parlamento, no Governo, nos Tribunais, na Banca, na Igreja, isso havia de ter consequências. E teríamos uma sociedade mais reflexiva, mais justa, mais solidária, mais empenhada no trabalho, menos corrupta, mais confiante.



DN

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