Saturday, 3 May 2014

Carta Aberta a Armando Guebuza

• A propósito das regalias e reformas do PR e dos deputados da AR


Escrevo-lhe, Senhor Presidente da República (PR), a coberto da inclusividade governativa que sempre apregoa, sobretudo quando está a levar a cabo as acções que designa de “Presidência Aberta e Inclusiva”, com o propósito de solicitar que considere fortemente a não homologação das leis que conferem regalias e reforma de luxo, férias inclusas, aos antigos e actuais PRs, bem como aos 250 deputados da Assembleia da República (AR).
Escuso-me, Senhor Presidente, de recuperar os detalhes desses pacotes ao todo problemáticos num país em que a maioria conjuga, mesmo sem querer, o verbo sofrer na primeira pessoa do singular e do plural, mas de uma coisa lhe recordo: a defesa da colectividade, Senhor Presidente, se acha inserta naquilo que são as suas obrigações constitucionais, termos em que, diferentemente dos pessimistas, eu prefiro confiar no seu sentido de missão e de Estado, sobretudo agora que ambos os projectos de revisão das sobreditas leis já devem estar sobre a sua mesa.
Tenho fé que o Senhor Presidente recorda-se da atitude que Joaquim Chissano, seu antecessor, tomou quando foi chamado a pronunciar-se sobre coisa idêntica em meados de 1998, numa altura em que o Senhor era chefe da Bancada da Frelimo na AR. Para facilitar a sua vida, Senhor Presidente, já repleta de assuntos de capital importância, não me coíbo de resumir, aqui e agora, o essencial do que sucedeu naquela altura.
Tendo recebido a Lei de Previdência Social do Deputado já aprovada pela AR, Joaquim Chissano cuidou de, antes de a homologar e mandar publicar, ouvir a opinião de renomados economistas, salientando-se, no seu seio, a de Rui “Ruca” Baltazar, já falecido, que confirmaram o que ele já desconfiava: se a homologasse como estava, ela teria um impacto sócio-económico e financeiro muito acima do concebível e de duvidosa sustentabilidade. A questão, Senhor Presidente, nada tinha que ver com a constitucionalidade da mesma em termos formais, mas com todo um projecto de sociedade, que, como bem sabe, se deve compatibilizar com o mínimo ético ou o mínimo aceitável.
Nesses termos, a 21 de Agosto daquele ano [1998], o então PR devolveu formalmente aquela lei à AR, para efeitos de reexame, conforme se achava expresso em ofício por ele endereçado ao na altura Presidente da AR, Eduardo Mulémbwè. Assim se posicionou Joaquim Chissano:
“[A lei] carece de ser reexaminada pela própria AR, por me parecer que poderá ter um impacto sócio-económico negativo e um difícil cumprimento em termos financeiros. [Ela deve ser] reexaminada à luz da sua sustentabilidade financeira e da aplicação do princípio de justiça social”.
A decisão de Joaquim Chissano, como seria de esperar, foi massivamente saudada, senhor Presidente. E parece óbvio o que terá motivado reacções tais.
Comentando a posição tomada pelo então PR, Carlos Cardoso, jornalista assassinado em 2000, referiu, em declarações ao SAVANA (edição de 28 de Agosto de 1998), que “nunca tinha visto o Presidente Chissano a tomar uma decisão do género. Ele tem razão de fazer exactamente isso. Eu gostei…creio que aquela lei é impopular…basta dizer que lá para os anos de 2020 o custo natural dos nossos deputados vai ser de 330 milhões de dólares norte-americanos”.
Tendo em conta que se estava em ano eleitoral, houve quem associasse, o senhor Presidente há-de estar recordado, o posicionamento de Joaquim Chissano a um eventual eleitoralismo. Sobre isso, Máximo Dias disse, em declarações ao SAVANA [NB: ainda não tinha sido deputado da AR], o seguinte: “Claro que não [tem que ver com eleitoralismo]. Nem pretendo especular sobre o assunto. [Há que] considerar que o PR recebeu a lei vinda da AR em finais de Julho e ele possui 30 dias para se pronunciar”. Sobre o mesmo ponto, Carlos Cardoso afirmou: “Sim, sim; esta decisão tem uma forma de eleitoralismo. Mas eu, pessoalmente, acho que esta decisão tem outra coisa mais do que o eleitoralismo”.
O semanário SAVANA, que me parece ser uma fonte natural de informação para o Senhor Presidente, precisou na altura, em editorial, publicado na sua edição de 28 de Agosto de 1998, que “Em nosso entender, o Parlamento devia ser realista e aceitar que a sua iniciativa legislativa foi um fiasco autêntico e devia constituir vergonha pública para quem já ganha muito acima da média nacional e trabalha muito abaixo da média nacional”.
No mesmo editorial, o SAVANA referia e/ou questionava: “Por outro lado, é fundamental que se questione a postura de alguns dirigentes da bancada da Frelimo, que, antes de conhecerem o sentimento do seu presidente relativamente à matéria a legislar, avançam para propostas (SIC) de leis controversas. Afinal, Chissano dirige ou não a Frelimo que está no Parlamento? Quantas Frelimos existem, afinal? Será que existe a Frelimo de Chissano e Moçambique (que parece que manda mais), uma Frelimo de Guebuza (cuja imagem fica afectada com a inviabilização das suas propostas pela primeira Frelimo) e a Frelimo de Manuel Tomé (que parece que só serve para dinamizar actividades culturais)?
Coincidentemente, senhor Presidente, estamos igualmente em ano eleitoral, tal como foi o caso em 1998. Será que uma eventual homologação de leis tais não irá prejudicar o seu partido, Senhor Presidente? Bem, nem deveria me preocupar com o seu partido, mas vejo-me na obrigação de o fazer por o Senhor Presidente amiúde usar a plataforma da “Presidência Aberta e Inclusiva” para apresentar o pré-candidato da Frelimo …
Gostaria de lhe recordar, Senhor Presidente, que na altura nem havia Lei de Probidade Pública alguma! Mas a ética, o bom senso, a razoabilidade, o mínimo aceitável, que vão para além de um texto legal, sempre existiram.
Termino, Senhor Presidente, pedindo desculpas pelo incómodo. Reitero, Senhor Presidente, que confio no seu sentido de amor à Prátria, sobretudo enquanto Chefe do Estado!


Atentamente,
Ericino de Salema
Cidadão

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