Thursday, 23 May 2013

Uma análise política da disputa sobre a “Lei Eleitoral”, entre a Frelimo e a Renamo

A partir da informação tornada pública, desde o dia 16 de Outubro de 2012, quando Afonso Dhlakama, passou a viver na sua antiga base militar de Gorongosa, tudo faz crer que o objecto de contenda entre o partido no poder, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e o partido Resistência Nacional de Moçambique (Renamo) - que poderá precipitar o povo moçambicano numa nova guerra civil - seja a Lei eleitoral, julgada prejudicial pela oposição, por não garantir a paridade na representação na Comissão Nacional de Eleições (CNE). Para alguns moçambicanos, assim como para alguns observadores internacionais, tanto as exigências da Renamo, como a resistência da Frelimo em satisfazer tais exigências, podem parecer ridículas: Analisando a posição da Renamo, pode parecer estranho por ser só hoje, em vista da IV Legislatura, que essa pretende condicionar, de modo intransigente, a sua participação ao processo eleitoral a uma revisão da Lei eleitoral. Com a excepção só de alguns retoques insignificantes, a Lei eleitoral moçambicana foi sempre favorável ao partido no poder e a Renamo sempre queixou-se dela mas nunca adoptou nenhuma posição inegociável, como desta vez. Contudo, embora esta não seja a primeira vez em que, nas vésperas das eleições, Dhlakama ameaça não tomar parte no processo e depois, contrariamente ao dito, de facto participa, quando em Outubro de 2012 ele estabeleceu-se em Gorongosa, com cerca de 800 homens, os moçambicanos se aperceberam que, na sua contínua luta pelo poder, Dhlakama e a Renamo tinham mudado da estratégia e dos objectivos a alcançar. 
Julgando a contraposição a partir da resistência manifestada pela Frelimo em adoptar o princípio de paridade nos órgãos eleitorais, parece estranho que um partido que sempre se apresentou como o paladino da democracia moçambicana e, além disso, ostenta ter uma enorme base popular, manifeste dificuldades em abraçar um dos mais nobres princípios da democracia, ou seja, o princípio da transparência no processo eleitoral. Para encontrar uma resposta a estas interrogações convido-vos a analisar o processo histórico do nascimento e da democratização do Estado moçambicano. 
Desde a sua origem, o partido no governo fundou o próprio poder em três pilares principais: A força da mistificação da realidade, a administração de tipo neopatrimonial e a intimidação.
Este modo de empostar o poder político começa a delinear-se já com a fundação da Frente de Libertação de Moçambique, em 1962. Segundo a história oficial, a Frelimo nasce como uma necessidade sentida pelos moçambicanos, de unificar as forças dos três movimentos nacionalistas de carácter étnico-regional, anteriormente existentes – a União Democrática Nacional de Moçambique (UDENAMO), o Mozambique African National Union (MANU) e a União Nacional Africana de Moçambique Independente (UNAMI) – para fazer uma única fronte contra o regime colonial português. Este organismo (a Frelimo) que desde sempre se nos foi apresentado como símbolo de tão desejada unidade nacional, é, na verdade, um monumento histórico do desfecho que teve a luta pela hegemonia que contrapunha, de um lado, o presidente ganês Kwame Nkrumah e o tanzaniano Julius Nherere e, do outro lado, as elites dos três movimentos nacionalistas moçambicanos. 
O sonho de uma África unida, capaz de cancelar as feridas causadas pela parêntese da ocupação colonial e pelas fronteiras geométricas decididas na Conferência de Berlim em 1885, misturado com ambições hegemónicas, tinham levado a Nkrumah a idealizar a criação de uma federação de Estados Unidos de Africa e ele próprio seria o primeiro presidente. Daí que a sua política externa dos anos Sessenta era fundamentalmente concentrada na criação da consciência africana e por isso apoiava a luta dos povos que ainda estavam sob o domínio colonial. De facto, embora o UDENAMO tivesse sido fundado e tivesse a própria sede na Salisbúria, capital da então Rodésia do Sul, o seu financiamento provinha dos países comunistas da Europa Oriental, através do Gana de Nkrumah. Por sua vez, o presidente tanzaniano, Julius Nherere, conquanto não tivesse ambições hegemónicas em todo o subcontinente africano, nutria ambições hegemónicas em relação às regiões de Africa oriental e austral. Avantajado pela posição estratégica que o seu país ocupava, no caso de uma solução armada para a questão colonial portuguesa em Moçambique, Nherere conseguiu arrastar o UDENAMO da Salisbúria, e o UNAMI de Malawi, para o território tanzaniano e, juntamente com o MANU, que tinha já a sua sede na Tanzânia, fundar a Frelimo. A elite da Frelimo, como a conhecemos desde a assinatura dos Acordos de Lusaka em 1974 até hoje, é constituída por aqueles que tirando vantagens da luta entre as políticas externas de Nkrumah e de Nherere, e do processo da fusão (não de união) dos três pré-existentes movimentos nacionalistas, conquistaram a posição do domínio.
O vício aberrante que caracteriza o partido no poder, de mobilizar as ajudas internacionais e os recursos nacionais para incrementar o poder do controlo da classe dirigente e do partido, deixando os cidadãos na situação de pobreza e dependência absoluta, teve a sua origem já na fundação em si da Frente. As ajudas financeiras e materiais provenientes dos países da Europa oriental e aqueles que, no período sucessivo começaram a chegar dos Estados Unidos, quando Eduardo Mondlane e sua esposa transferiram-se para Tanzânia, eram administrados de forma patrimonial; beneficiando àqueles que manifestavam uma provada disposição de submeter-se à elite emergente, ou para comprar as almas daqueles que se mostravam indecisos a entrar no jogo dos interesses. 
Fortalecida pelo poder que tinha sobre as pessoas e sobre as ajudas provenientes dos vários países e organizações que tinham esposado a causa nacionalista dos moçambicanos, a elite da Frelimo introduziu o instrumento da intimidação que passou através de uma sistemática eliminação política e/o física de todos aqueles que não estavam dispostos a submeter-se ao autoritarismo da elite. A purga (descrita minuciosamente por Barnabé Lucas Ncomo, 2003, Edições Novafrica) que visava, em primeiro lugar, purificar o movimento de todos os elementos indesejados, e, em segundo lugar, abater todos os indivíduos e entidades políticas que representavam uma ameaça (real ou presumida) para os projectos totalitaristas da Frelimo, teve a sua fase crucial no período entre 1960 (ano da morte de Mondlane) e a independência. 
Os Acordos de Lusaka (assinados no dia 7 de Setembro de 1974), que deveriam ter assinalado o fim oficial das hostilidades entre o governo colonial português e a Frente de Libertação de Moçambique, transformaram-se num momento oficial da transferência da ocupação do território moçambicano da parte do governo português, para a elite da Frelimo. Para justificar a usurpação do direito de todos os moçambicanos de eleger os próprios governantes, e de ser eleitos para administrar o património comum, a Frelimo logo depois da assinatura dos Acordos de Lusaka, intensificou a perseguição dos desertores da guerra, de todos aqueles que no seio do movimento manifestavam tendências políticas contrárias à linha oficial, e de todos os expoentes civis que se organizavam em partidos de oposição para se apresentarem e pedir o voto do eleitorado. Criou-se em todo o País o clima de terror, e todas as estruturas sociais foram paralisadas. Os cidadãos começaram a ter medo até das próprias sombras, como se estas fossem capazes de informar às forças armadas aquilo que cada um deles pensava no seu silêncio. 
A viagem triunfal “do Rovuma ao Maputo”, realizado por presidente Samora Moisés Machel, antes da proclamação da independência, tinha um objectivo preciso: Escrever nas mentes dos moçambicanos a história de Moçambique, segundo a óptica do pensamento oficial da Frelimo e capaz de justificar os crimes cometidos pela elite política do partido; fortalecer o monopólio do poder e condenar para sempre as forças políticas banidas e aquelas que poderiam nascer no futuro. O fim das hostilidades entre o governo colonial e a Frelimo foi apresentado, não como associado à queda do Fascismo em Portugal, mas simplesmente como fruto da superioridade militar das Forças Populares de Libertação de Moçambique (FPLM). Este modo de representar a força militar da Frelimo atingia “dois alvos com uma só pedra”: criar a imagem de um exército da Frelimo invencível e, paralisar qualquer tentação de rebelião. Os “reaccionários” foram apresentados, não como aqueles que tinham tendências políticas contrárias às do governo, mas como aqueles que eram contrários à proclamação da independência. 
A proclamação da independência, seguida pelo Decreto das nacionalizações, completou o processo que faria de Moçambique um feudo da classe dirigente da Frelimo: A concentração do poder político através do sistema de partido único e o uso do instrumento da intimidação representado pelos “campos de reeducação”, e a concentração do poder económico e dos meios de produção, atuada pelo instrumento das nacionalizações, colocaram os moçambicanos na posição indefesa e de total vulnerabilidade contra todo o tipo de abuso perpetrado pela máquina do governo. O pior dos prejuízos que o sistema neopatrimonial da Frelimo causou aos moçambicanos, mais do que privá-los dos meios de produção e da participação política, foi imprimir neles uma ideia mistificada do Estado e da relação existente entre um governo e um cidadão. O partido foi governando o País como se se tratasse de um património privado de um clube ou de uma associação e os cidadãos começaram a comportar-se como se fossem parte integrante do património do partido. 
Ainda na linha da mistificação, a Renamo foi apresentada, não como um grupo de descontentes que contestava as opções políticas do partido no governo, mas como agentes ao serviço dos governos segregacionistas de Rodésia e da África do Sul. Como se a falsificação da identidade da Renamo não bastasse, o partido no governo incutiu nos moçambicanos um sentimento de ódio e de repugnância em relação a tudo aquilo que se referia à Renamo. A dificuldade que alguns moçambicanos manifestam, ainda hoje, de respeitar as regras democráticas encontra a sua explicação no instrumento da mistificação utilizada pelo partido no poder por muitos anos, contra os seus adversários políticos. Os homens e as mulheres que hoje tomam parte nas brigadas de vandalização das sedes dos partidos de oposição, em Manjacaze, na Macia, em Muxúnguè, em Gondola, no Chimoio e em muitos outros lugares, representam parte de moçambicanos que ainda continua sob o efeito da propaganda mistificante do regime da Frelimo, segundo a qual a Renamo é um grupo de bandidos ao serviço dos interesses externos. Nessa perspectiva, quando esses moçambicanos ouvem falar de Dhlakama ou de Deviz Simango, não conseguem vê-los como moçambicanos insatisfeitos com o modo com que o País tem sido governado desde a independência, mas como traidores, reaccionários e vendedores da pátria, segundo a doutrina da Frelimo. Todavia, como diz o povo Macua, “a mentira tem pernas curtas”. O facto que o regime de Ian Smith e do Apartheid já não existem e a Renamo continua a ser uma “pedra no sapato da Frelimo” e, ao lado da Renamo continua a crescer o número de moçambicanos (inclusivo dentro do partido no governo) insatisfeitos com o modo com o qual a classe dirigente da Frelimo governa o País, é a “prova dos noves” que a Renamo, embora tenha sido utilizada pelos governos segregacionistas da região, ela nunca foi sua criatura. É tempo de retirar a máscara para mostrar a face verdadeira. Não se pode viver no engano eternamente. 
 
Os vícios dos Acordos Gerais de Paz e do processo de transição democrática
 
O percurso que fizemos até aqui, foi um esforço para perceber porquê é que um princípio muito compatível com o modelo democrático, como aquele de “paridade na representação na CNE, possa comprometer os Acordos Gerais de Paz (AGP) assinados em Roma entre os rebeldes da Renamo e o governo da Frelimo, e reconduzir os moçambicanos a uma nova guerra fratricida. Este percurso é necessário e indispensável porque, em conformidade com a nossa natureza de animais racionais, não nos contentamos de falar das coisas como elas se manifestam nos nossos olhos, queremos também saber as suas causas, se necessário, saber as causas das suas causas. 
Em Moçambique, a transição democrática foi aviada simultaneamente com as negociações de paz entre a Renamo e a Frelimo. Pode parecer estranho que a questão da Lei eleitoral não tenha sido discutido e concordada pelas partes interessadas já na mesa das negociações em Roma. Ora bem, isso não deve surpreender a ninguém. As negociações de paz e a introdução do modelo democrático no grande jogo político moçambicano foram também, em certos aspectos, uma outra mistificação da realidade. Desta vez, não só da parte do partido no governo, mas da parte da Frelimo e da Renamo que, ambos tinham em mente intenções de enganar o povo moçambicano e a comunidade internacional e enganar-se reciprocamente. 
Muito antes de 1989, o território moçambicano tinha já ficado dividido entre as cidades, controladas pelo exército governamental, e as regiões rurais, controladas pela Renamo. Nenhum dos dois tinha capacidade militar suficiente para resolver o impasse. Por isso, tanto para o governo, como para a Renamo, a solução negociada era a única alternativa disponível. 
Com a caída do Muro de Berlim em Novembro de 1989 – símbolo do fim da Guerra Fria – a prioridade da comunidade internacional que contava (EUA e EU), era encontrar uma solução negociada para a questão sul-africana e, para tal, o fim da guerra civil em Moçambique era um pré-requisito. Forçados a negociar pelas circunstâncias da ordem doméstica e as da ordem internacional, os beligerantes moçambicanos esperavam lograr na mesa das negociações aquilo que não tinha sido possível conquistar com a força das armas: o poder total e em todo o território. 
Embora Dhlakama tenha conseguido arrancar da boca da delegação do governo o reconhecimento do seu movimento armado como um interlocutor válido, o verdadeiro vitorioso na mesa das negociações foi a Frelimo de Joaquim Chissano. Contrariamente à agenda pacifista, sem vencedor nem vencido, que o líder da Renamo pensava fazer valer na mesa das negociações, a Frelimo obteve o reconhecimento, da parte de Dhlakama e da Renamo, do seu aparelho estatal, as suas leis e a sua organização, como tinha sido constituído desde a independência. As próprias negociações de paz e o processo em si de transição democrática – a formação e o registo dos partidos de oposição, a constituição das comissões eleitorais e a composição do primeiro parlamento democrático – foram regulados pelas normas da Constituição de 1990, aprovada unilateralmente pelo Parlamento da Frelimo. Os AGP permitiram igualmente que a Frelimo continuasse a controlar de modo absoluto os seus instrumentos mais eficazes da intimidação: o Ministério do interior e os Serviços de Segurança. A Comissão mista de segurança que foi criada no período entre a assinatura dos AGP e as primeiras eleições não tinha nenhuma função executiva e não foi prevista a integração dos elementos da Renamo no aparelho da segurança. Os AGP só conseguiram mudar o nome do Serviço Nacional de Segurança Popular (SNASP), para Serviço de Informação e Segurança do Estado (SISE), mas as funções e a composição dos seus elementos continuaram a ser um instrumento de intimidação nas mãos da Frelimo. Não é por acaso que em 2012 o eis-presidente da República, Joaquim Chissano, tenha, descaradamente, declarado numa entrevista que, para desbloquear o impasse na qual se encontravam os mediadores e os negociadores, na mesa das negociações, os últimos três Protocolos dos AGP tinham sido concebido por ele, para depois fazê-los chegar a Dhlakama por mão dos mediadores, como se tivessem sido elaborados por eles. Não existe nada de estranho nesta declaração de Chissano: a maior parte (se não todos) os mediadores do processo de paz para Moçambique não eram políticos nem de carreira, nem de formação. E, provavelmente, mais do que criar bases credíveis do processo negocial, o interesse maior duma entidade como a Comunidade de Santo Egídio e o Estado italiano era de conquistar a fama internacional de serem os “solucionadores” de conflitos africanos, com instrumentos um tanto quanto atípicos. Não é por acaso que o Secretários geral das Nações Unidas, na altura Boutros Boutros-Ghali, classificou aquelas negociações de “insólitas”. 
Além das netas vantagens que a Frelimo teve no processo negocial de Paz com a Renamo, os dois partidos beligerantes “sequestraram” o processo de transição democrática. O processo que, para o bem em si mesmo da Democracia, devia ter envolvido todas as forças politicas e movimentos da sociedade civil que exprimem a diversidade do povo moçambicano, foi monopolizado pelos dois partidos envolvidos no processo negocial de paz. A Comissão mista criada pelas disposições dos AGP, que tinha a responsabilidade de monitorar o processo das primeiras eleições, além dos representantes da comunidade internacional, não integrou nenhuma outra força politica para além dos elementos indicados pelos dois partidos que tinham assinado os AGP. Aos outros partidos, se lhes foi reservado só a consultação (não vinculante) sobre o projecto da Lei eleitoral. Para evidenciar a preocupação que a Renamo e a Frelimo tinham de reduzir ao máximo a participação das outras forças políticas, o Protocolo III dos AGP estabelece um tecto de 5 a 20% dos votos expressos a nível nacional, para obter uma representação no Parlamento. Paradoxalmente, os únicos partidos que eram conhecidos a nível nacional, graças à guerra, eram só os dois, a Frelimo e a Renamo.
Eis a moral da legenda: Bocas a abondar de palavras magníficas, quer da parte da Renamo, quer da parte da Frelimo. Na verdade nenhum dos dois submeteu-se ao processo negocial de paz por amor à democracia. Para os dois partidos, cada um no seu segredo, a instauração da democracia era um instrumento estratégico. Movido pelo seu espírito pragmático e avantajado pelo conceituado conhecimento dos circuitos da diplomacia internacional, Chissano persuadiu o próprio partido a aceitar a introdução do modelo democrático guiado fundamentalmente por duas exigências: de um lado enganar os ocidentais, fazendo-os acreditar que a Frelimo se tinha convertido do autoritarismo do cunho maoista-soviético para abraçar o liberalismo democrático ocidental. E com esta táctica, a classe dirigente podia vender uma bonita imagem de si mesmo no âmbito internacional, e garantir-se a ajuda financeira dos países ocidentais. E, a nível interno, continuar a governar os moçambicanos com punho de ferro. E do outro lado, a introdução do modelo democrático era, para Chissano, o modo melhor para desarmar a Renamo, na presença das tele-câmaras dos canais televisivos de todo o mundo, e transferir Dhlakama para o campo de batalha político, onde, com a vantagem do controlo institucional, do controlo dos recursos económicos e a experiência de administração, a Frelimo tinha a certeza de vencer, e a Renamo estava destinada a sofrer uma derrota sem nenhuma possibilidade de apelo. Por sua vez, Dhlakama e a Renamo submeteram-se ao processo negocial como a melhor forma para desembaraçar-se duma situação de guerra que além de ser insustentável, já tinha perdido as suas motivações originárias. Iludido pelo controlo que tinha sobre as vastas regiões rurais do País, e pensando (erradamente, claro) que poderia manter tal controlo mesmo depois do cessar-fogo, Dhlakama esperava poder valer-se das primeiras eleições democráticas, para derrubar a Frelimo e ocupar a Ponta Vermelha. 
Para sermos coerentes com o actual primeiro-ministro que prefere que sejam os terceiros a provar a veracidade das acusações movidas contra alguns membros do seu governo, e não ele a provar a sua inocência, passemos a analisar o percurso do refluxo da democratização da sociedade moçambicana, actuado pelo partido no governo, nos anos sucessivos às primeiras eleições. Quando nas eleições gerais de 1999, Chissano venceu (sem convencer) com apenas 52, 3% dos votos, contra 47, 7 atribuídos a Dhlakama; e a Frelimo venceu com 53, 2% dos votos (correspondentes a 133 dos 250 lugares no Parlamento), contra 46, 8% (117 lugares no Parlamento) atribuídos á Renamo - União Eleitoral, os “camaradas”, sobretudo os mais radicais, acusaram Chissano de ser demasiado remissivo em relação às exigências da Renamo e de ter sido pouco incisivo nas dinâmicas necessárias para conservar e aumentar o controlo do poder. Graças a esta possível (mas “proibida”) vitória de Dhlakama, Moçambique subtraiu-se, até agora, da lista dos Estados africanos cujos presidentes democraticamente eleitos provocam a alteração da Constituição, no fim dos seus segundos mandatos, para procurar um terceiro mandato, ou uma continuidade sem limite. De facto, quando Chissano consultou aos “camaradas” se podia procurar o terceiro mandato, recebeu uma resposta negativa. Para a eleições de 2004, portanto, o Comité Central apresentou Armando Emílio Guebuza, reconhecido dentro e fora do partido pela sua radicalidade, intransigência e capacidade organizativa. 
Uma vez confirmado Secretário-geral do partido e candidato à presidência, Guebuza iniciou logo a percorrer o País para revitalizar (violando os princípios democrático) as células do partido e os secretários das aldeias e dos bairros. Uma vez no poder, Guebuza intensificou a partidarização do Estado, através da incorporação no partido dos empregados públicos, das campanhas da “presidência aberta” e a aliança do tipo feudal com os antigos régulos, que passaram a ser chamados “líderes comunitários”. 
Quando em 2009 os moçambicanos foram chamados, pela terceira vez, às urnas, para eleger no chefe do Estado e os membros do Parlamento nacional, todos – desde os funcionários públicos, passando pelos Magistrados, líderes comunitários, camponeses, comerciantes, ONGs, empresários, até aos vendedores informais – tinham já aprendido que em Moçambique não tinha espaço para quem não possuía o “cartão vermelho”. De facto, além do aparelho estatal, Guebuza também mobilizou igualmente as ONGs na campanha permanente a favor do partido. Os projectos realizados pelo financiamento das ONGs são, quase sempre, inaugurados pelo presidente ou pela sua esposa e, durante a cerimónia da inauguração, a obra é apresentada ao público come uma resposta do partido e do presidente Guebuza às necessidades das populações locais. 
 
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Julgando a partir da análise que até aqui fizemos, se poderia concluir que a dificuldade que a Renamo e a Frelimo encaram para chegar a um acordo sobre a Lei eleitoral, encontra a sua explicação na dificuldade, que desde sempre lhes caracterizou, de observar os princípios democráticos na sua generalidade. A Lei eleitoral é apenas uma das expressões do exercício da democracia. E onde o sistema democrático é invocado só para legitimar comportamentos autoritários e neopatrimoniais, a Lei eleitoral torna-se automaticamente objecto de contenda entre os interessados. 
Já vimos, precedentemente, que os instrumentos que deram o sucesso ao partido no poder, desde a sua fundação, e continuam a assegurar a sua perpetuidade no poder foram fundamentalmente três: a mistificação da realidade, o controlo neopatrimonial dos recursos económicos e das instituições administrativas, e a intimidação. O medo é um instrumento muito eficaz nas mãos de uma classe política que intende utilizar o poder político para fins pessoais. O medo desestabiliza os cidadãos; tira-lhes o poder de iniciativa e coloca-os na condição de “monadas” de Leibiniz, na qual não existe comunicação nem entre operários da mesma fábrica, nem entre moradores da mesma aldeia, nem entre professores da mesma universidade, nem entre os cristãos da mesma paróquia, nem entre os filhos da mesma mãe e nem entre o marido e a esposa. Ficam todos petrificados. Vivem na mesma cidade e vendem o mesmo tomate no mesmo mercado informal, mas cada um vive na sua solidão. Esta solidão oferece uma ilimitada margem de domínio e abuso da parte do poder político estabelecido porque a única relação existente é aquela entre a pesadíssima máquina institucional e cada um dos indivíduos na sua solidão. Este tipo de relação é comparável àquela que se estabelece entre a força de um tsunami e um pé isolado de caniço. 
Ora, segundo os estudiosos dos comportamentos humanos, o medo é a ausência de segurança. A presença de uma mãe dá segurança absoluta ao seu filho de idade menor, e por isso, quando uma criança dá falta da mãe, sobretudo em ambientes desconhecidos, entra em pânico. O medo é também uma sensação de vulnerabilidade; a sensação de estar exposto a um ou vários perigos que ameaçam o próprio bem estar ou a própria vida. 
Mas o poder do medo é exercitável só sobre aquelas pessoas que sofrem dum desconforto médio. O medo domina quem é vulnerável, tem a possibilidade de contrair uma determinada epidemia mortal. Quem já está efectivamente infectado, perde o medo e desenvolve o sentimento de zanga. Quem possui um bem e, todavia, existe uma ameaça real ou presumida de poder perder-lho, é geralmente dominado pelo sentimento de medo. Quem já possui a certeza de perder o bem que receia perder, desfazer-se do medo e começa a desenvolver a zanga. 
E, ainda segundo os estudiosos dos comportamentos humanos, a zanga, mais do que qualquer outra emoção, ajuda a unir as pessoas para agir. A zanga é essencialmente uma emoção que estimula as energias e as capacidades de iniciativa. O professor Brett Ford, da Universidade de Califórnia, afirma que a zanga estimula as pessoas a procurar uma gratificação. Na mesma linha, o professor Nicole Taush, da Universidade de St. Andrews, afirma que a zanga é um elemento de coesão dos movimentos sociais.
Se for verdade o que dizem os psicólogos, então o futuro de Moçambique é risonho. Quase todas as categorias sociais do povo moçambicano já têm a certeza que com este governo não têm futuro: Estão todas derrotadas! Esta “derrota” cria a zanga nos moçambicanos: Os camponeses e os habitantes das regiões rurais estão zangados com um governo que, num gesto de extrema insensibilidade em relação ao seu sofrimento, arranca-lhes sistematicamente as suas terras agrícolas – único meio da sua sobrevivência – para aluga-las às empresas agrícolas multinacionais ou às indústrias extractivas. O que está na base desta zanga é a consciência que eles têm do objectivo desta operação. Esta operação é o golpe final para eles. Sabem que esta venda tem em vista o enriquecimento ulterior da classe dirigente e não o melhoramento das suas vidas. Os camponeses sabem também que um dos incentivos oferecido pelo governo para encorajar as multinacionais a investir (em consórcio com a mesma classe dirigente) foi a promessa do fornecimento de mão-de-obra a baixo custo, sobretudo nos serviços não especializados. Portanto a presença das multinacionais representa também uma modalidade de exploração. 
O exército e a polícia estão zangados com um estado que lhes trata como cães de guarda de um patrão que devora sozinho toda a caça, inclusivo os ossos que, segundo a ordem natural das coisas, deveriam ser para eles. Os “chapeiros” estão zangados com um governo que, em vez de pagar convenientemente os seus oficiais da polícia, permite que cada um destes se sustente como pode à custa do seu sacrifício. Os vendedores (sobretudo as vendedeiras) dos mercados informais estão zangados com uma classe política que, vivendo do luxo, condenou a eles a viver eternamente do lixo. Mesmo aqueles moçambicanos, tais como os Magistrados e outros funcionários públicos que, por causa das vantagens que o sistema lhes reservava, guardaram o silêncio cúmplice durante muitos anos, estão actualmente zangados com um governo que, escondendo-se atrás das leis manipuladas e da burocracia, continua a cometer crimes contra os moçambicanos e quem responde diante de Deus e da própria consciência é o actor material do crime. 
Inclusivos os bispos de Moçambique estão zangados. O que justifica a zanga dos bispos é que, embora a missão fundamental da Igreja seja aquela de libertar o Homem da escravidão do pecado e da morte eterna, Ela (a Igreja) preocupa-se igualmente com todo o tipo de escravidão que possa desfigurar o Homem, em quanto imagem e semelhança de Deus. Esta foi a razão pela qual as Igrejas locais de América Latina e da Europa oriental (juntamente com os cristãos de todo o mundo) participaram diplomaticamente e activamente no desmantelamento do autoritarismo e da ditadura naqueles quadrantes geopolíticos. As relações entre o partido no governo e a Conferência Episcopal de Moçambique (CEM) foram sempre de tipo “punho de ferro”. O primeiro presidente de Moçambique independente chamou os bispos de Moçambique de “macacos”, o terceiro os chama “profetas de desgraças”. Mas a CEM deu um contributo muito significativo no processo dos AGP de Roma, que puseram fim à guerra civil dos 16 anos. Nas vésperas da assinatura dos AGP, a Igreja de Moçambique, através das suas Paróquias e agentes de pastoral, organizou campanhas de reconciliação entre os moçambicanos divididos pela guerra. Hoje, os bispos estão zangados com um chefe de Estado que para manter-se no poder e continuar a concentrar a riqueza do País nas próprias mãos, nas mãos dos membros da sua família e nas mão das pessoas do seu cerco, não se importaria de anular todos os esforços que culminaram com a assinatura dos AGP em 1992, e os sucessivos anos de paz e transição democrática. Nas duas últimas “Notas Pastorais” – Construir a democracia para preservar a paz (Agosto de 2012); Não à violência, não à guerra (Abril de 2013) – dirigidas às comunidades cristãs, aos homens e mulheres de boa vontade, e às autoridades civis, religiosas e politico-militares, os bispos manifestam de maneira explicita a própria zanga. Só faltou instruir os cristãos e os homens/mulheres de boa vontade sobre o comportamento a adoptar para instituir um governo capaz de oferecer uma estabilidade política no País. Mas uma atitude destas seria considerada “politically incorrect”, e por isso diplomaticamente não tolerável. De facto, os bispos, embora, por um lado, cada um deles goze de plenos direitos de cidadania no próprio país, por outro lado, representam, nas suas dioceses, a Igreja católica. A Igreja Católica goza das prerrogativas dos Estados soberanos. E o Vaticano tem relações diplomáticas com o governo de Moçambique. Por isso, uma posição mal calculada da parte da CEM pode deteriorar as relações entre o regime moçambicano e o Vaticano. Uma tale situação pode expor os sacerdotes, os religiosos, as religiosas e os cristãos a abusos gratuitos e/ou repreensões. Todavia, nas duas Notas acima citadas, além de implorar os seus sacerdotes, religiosos e religiosas, para acompanhar o mais de perto possível o processo de consolidação da democracia, os bispos exortam os mesmos para que na sua actividade pastoral priorizem a formação dos cristãos, para o exercício da cidadania activa, ética e responsável. 
Por último, a própria Renamo que ficou prejudicada, ou que se encontrou na posição desprivilegiada durante o processo negocial, e por isso teve que “engolir sapos” durante todos os últimos 20 anos da experiência democrática, já está zangada com o partido no poder que a trata como se fosse uma organização constituída por imbecis. Capitalizando sobre o actual estado de ânimo da maior parte dos Moçambicanos, o comportamento da Renamo pode ser interpretado em dois modos: Se Dhlakama e os mais importantes expoentes da Renamo ainda continuam a pensar o grande jogo político segundo as antigas categorias, então, já que os últimos 20 anos demostraram a impossibilidade de substituir o autoritarismo e o neopatrimonialismo da Frelimo com o autoritarismo e o neopatrimonialismo da Renamo, através das eleições, a actual aposta seria destinada a forçar a Frelimo a partilhar o bolo da apropriação da riqueza e do poder político com o seu histórico adversário. Neste caso, o acordo consistiria fundamentalmente em integrar a Renamo no conjunto daqueles que ilegalmente e ilegitimamente acumulam em nome privado os bens que deveriam estar ao serviço de todos os moçambicanos. No caso a Renamo queira, efectivamente, promover as instituições e as regras democráticas, então, estaria a querer repropor-se como líder e catalisador da zanga operativa, renovando desse modo a sua posição de maior partido de oposição que, nos últimos anos, tem sido ameaçada pelo partido de Deviz Mbepo Simango, o Movimento Democrático de Moçambique. 
O que provavelmente o partido no poder ainda não percebeu é que a Renamo de hoje não é aquela de 20 anos atrás. A Renamo de 20 anos atrás era composta de uma classe dirigente maioritariamente “graduada” nas operações militares dos 16 anos de rebelião. A Renamo de hoje integra nas suas fileiras muitos quadros com diversificada formação jurídica e política. Para exigir a aplicação do princípio da paridade na representação na CNE, a Renamo recorre a uma interpretação autónoma e coerente da Constituição da República de Moçambique (CRM), aprovada pela maioria parlamentar da Frelimo. Segundo tale interpretação, a Renamo diz que, já que o nº 3 do artigo 135 da CRM não fixa nenhum critério particular para a composição da CNE, e remete a sua regulamentação à lei ordinária, não existe nenhum fundamento – nem constitucional, nem legal, nem doutrinária – para rejeitar a composição da CNE observando o princípio de paridade. Ora bem, tratando-se do “único” princípio (pelo menos na situação política actual de Moçambique) capaz de garantir a igualdade dos partidos políticos nos processos eleitorais, deveria também receber a aprovação no seio do partido no governo porque a aplicação deste princípio prova igualmente a “inocência” da Frelimo das “falsas” acusações de manipular a seu favor o processo eleitoral.
 
O resultado final da zanga operativa
 
O resultado construtivo que poderá emergir da zanga da maior parte dos moçambicanos é a mudança radical da lógica que, até aqui, é utilizada para estruturar o voto no momento das eleições. Fundamentalmente, os eleitores moçambicanos estruturam o próprio voto a partir de dois princípios: princípio regional, e o princípio do cálculo “racional”. Segundo o princípio regional, muitos moçambicanos originários do Norte, se sentem no dever de votar pela Renamo, pelo facto de serem originários do Norte, enquanto os do Sul tendem a votar pela Frelimo, pela razão idêntica, de serem originários do Sul. Os restantes moçambicanos eludem-se, calculando “racionalmente” que votar pela Frelimo seja útil porque tendo já acumulado muita riqueza, a classe dirigente deste partido está com maior disposição para empregar as futuras entradas estatais para o desenvolvimento do País. 
As duas estratégias estão erradas. E estão erradas, não só porque não são democráticas, mas sobretudo porque produzem efeitos contrários. Em primeiro ligar, ninguém recebe qualquer benefício do partido Frelimo por ser do Sul. A maioria esmagadora das populações do Sul de Moçambique vivem de switsakato (verdura sem temperos) desde a independência até hoje, e a Frelimo esteve sempre no poder. Aliás, precisamente porque nesta região o voto já está garantido pela filiação étnica-tribal, a Frelimo não faz nenhum esforço para conquistar a simpatia dos eleitores. Os que se beneficiam do poder neopatrimonial e clientelar da Frelimo são aqueles que (independentemente da sua origem) estão dispostos, sem o mínimo de escrúpulo, a sacrificar os seus compatriotas para servir os interesses do chefe. 
O princípio do cálculo “racional” é errado porque a experiência mostra que onde a concentração da riqueza é derivante do poder político, este último (o poder político) tende sempre a ser utilizado como instrumento para a concentração ulterior da riqueza e dos meios de produção, de modo que, tal concentração possa, por sua vez, garantir a perpetuidade do domínio político. Um governo fundado na base do “cabritismo”, na base do “cabritismo” será fundada a sua administração pública durante toda a sua existência. 
Os eleitores que agem, movidos pelo fenómeno de Zanga operativa, não estruturam o seu voto segundo nenhum dos dois princípios analisados. Pelo contrário, eles adoptam a lógica de “castigo-prémio” para estruturar o próprio voto. Neste tipo de lógica, a maioria parlamentar e o executivo que foram incapazes de actuar as políticas públicas satisfatórias durante os 5 anos do seu mandato (no caso da Frelimo serão 39 em 2014), são automaticamente punidos (castigados), privando-lhes do voto. O voto negado ao partido e ao chefe de Estado cessantes (os reprovados), e que será atribuído ao partido alternativo, tem um carácter estratégico. Por um lado, ele (o voto) incentiva o partido derrotado a renovar-se para poder apresentar-se novamente nas sucessivas eleições para pedir o voto dos eleitores. Por outro lado, o voto estratégico obriga o vencedor (o partido alternativo) a governar da melhor forma possível, para assegurar-se a preferência nas eleições sucessivas. 
O que faz da lógica de “castigo-prémio” a melhor das lógicas da estruturação do voto, num sistema democrático, é que quem sai a ganhar do grande jogo político, não são os políticos, mas os cidadãos. A lógica do “castigo-prémio” não olha para a língua ou origem étnica-tribal dos líderes políticos ou dos partidos a votar, olha só e só para as suas obras enquanto governantes, ou a alternativa política que eles propõem.
Alfredo Manhiça , Professor de Filosofia na Universidade Pontifícia Antonianum de Roma

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